Um novo papel para as forças armadas

A revista Interesse Nacional, em seu número 61, traz um artigo meu e de Edmar Bacha que busca ampliar a discussão sobre o novo papel que as forças armadas poderiam ou deveriam ter na sociedade brasileira.

Iniciamos o artigo dizendo que a recente militarização do governo federal estimulada por Jair Bolsonaro, a tentativa de envolver as formas armadas em um golpe militar e a passividade, senão conivência, de muitos de seus setores com estes movimentos, trouxeram novamente para a ordem do dia a necessidade de discutir em mais profundidade o seu papel na sociedade brasileira. Não se trata somente da questão mais imediata da ameaça que houve à democracia, mas dos temas mais amplos, de médio e longo prazo, do relacionamento entre o setor militar e a sociedade civil, e do papel das forças armadas brasileiras no mundo atual para um país como o Brasil.

Uma questão central, nos parece, é a necessidade de repensar a noção de que sua principal função é a defesa do país de ameaças externas, e a questão correlata de quanto o Brasil, enquanto potência regional de renda média, precisa e tem condições de manter uma força armada convencional. Parece claro que não faz sentido manter indefinidamente um contingente militar de grande porte, com equipamento ultrapassado e pouca capacidade de mobilização. Isto leva à necessidade pensar o papel das forças armadas brasileiras em pelo menos três níveis, global, regional e local.

O nível global é o do relacionamento e confronto entre as grandes potências militares e econômicas. O Brasil não tem interesse nem condições de participar destas disputas em termos militares, mas deveria ter uma presença ativa em instituições e alianças internacionais comprometidas com os valores da democracia e do direito e cooperação internacional nas questões econômicas, ambientais e de manutenção da paz, o que requer uma capacitação militar limitada e específica.

No nível regional, não existem ameaças previsíveis de conflitos armados, mas o país precisa de uma força militar com credibilidade suficiente para intervir e enfrentar eventuais perturbações mais graves no relacionamento com seus vizinhos. Além do mais, existem questões relacionadas ao controle de fronteiras, proteção das costas, tráfico de drogas, tráfico de armas, contrabando e questões migratórias que podem preocupar. A Região Amazônica, por suas dimensões, dificuldade de acesso, e necessidade de preservar a natureza e proteger as populações originárias, necessita de uma atenção especial.

Todas estas questões têm desdobramentos internos que, em princípio, seriam de responsabilidade de instituições civis especializadas.  Mas, dada a existência de um contingente militar disponível, faz todo o sentido que ele seja capacitado e destinado a lidar com essas questões, seja na forma de missões delimitadas, seja na forma de atividades permanentes, o que exigiria  um trabalho de preparação e qualificação de seu pessoal.

Uma outra questão é o papel das forças armadas como promotoras de atividades de pesquisa e desenvolvimento que possam ter impacto no desenvolvimento da ciência, tecnologia e indústria nacionais. É conhecido, nos Estados Unidos sobretudo, o forte relacionamento entre a pesquisa militar e as tecnologias civis, muitas das quais foram desenvolvidas inicialmente para fins bélicos. O primeiro movimento do governo Lula, para tentar superar as dificuldades de seu relacionamento com o setor militar, foi oferecer mais recursos para os diferentes projetos tecnológicos das respectivas armas, e acenar para a duvidosa proposta de desenvolver um complexo industrial-militar no país, com uma indústria nacional de armamentos semelhante à tentada nos anos 1970 pelos governos militares.

O risco, aqui, é que estes investimentos se transformem em elefantes brancos de alto custo, pouco impacto na economia e de relevância duvidosa do ponto de vista militar. As forças armadas brasileiras precisam, sim, ter acesso às novas tecnologias de interesse militar, sobretudo na área computacional e cibernética, pela importância que têm e os riscos potenciais que podem representar. Mas isto, sobretudo, através de parcerias e formação técnica de seu pessoal, e não pela pretensão de atuar como indutoras do desenvolvimento econômico do país, que depende sobretudo do ordenamento fiscal e legal e da maior abertura da economia à competição internacional.

O artigo amplia um pouco a discussão destes pontos, que precisaria ser aprofundada até que se possa chegar a um entendimento mais claro sobre o papéis possíveis e necessários para as forças armadas em um país como o nosso.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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