Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de março de 2024)
Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico. Assim era e foi o que fez Ênnio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ênnio chegou no Brasil ainda criança e estudou física na Universidade de São Paulo e depois na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcelo Damy, Mario Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 40, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ênnio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e criador da revista Ciência Hoje.
Eles eram não só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além pesquisar, se valiam das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia que precisavam para trabalhar. Em 1948, sessenta cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.
Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e sociedade. Para outros ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.
A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão, como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e temas de política universitária e acadêmica. Ênnio Candotti assumiu a vice-presidência 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de intelectual público, divulgador e defensor da ciência.
O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a segunda guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica. As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou em uma profissão como as outras, pressionada pela lógica de “publicar ou morrer” e afetada pela incertezas da política.
A pandemia da Covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ênnio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje sabemos que não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e paradoxos que ela traz. É isto que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.
Caro Simon,
O seu artigo hoje no “Estadão” é um subsídio útil para uma história do papel da SBPC no país que não foi escrita ainda. Por essa razão – e por que valorizo muito as suas opiniões – desejo fazer dois comentários sobre o artigo:
1. Os objetivos da SBPC não são meridianamente claros a não ser pelo fato de ter sido criada seguindo a tradição das associações similares nos Estados Unidos e Inglaterra. Cada um dos presidentes que a SBPC teve deu uma direção compatível com a sua formação e visão do mundo, mas a meu ver um traço comum foi a defesa da importância da ciência e dos cien/stas. Me alinho fortemente com essa visão próxima da visão de colegas como Mauricio da Rocha e Silva, Warwick Kerr e Crodowaldo Pavan.
2. A presidência de Enio Candotti se caracterizou por uma ênfase especial na aproximação com movimentos sociais e, a meu ver, indesejável com o Governo. Considero esta tendência indesejável porque há outros grupos sociais e partdos políticos para fazê-lo e o envolvimento da SBPC não só não faria uma grande diferença como também reduziria a sua legitimidade “como defender a liberdade científica e incentivar a responsabilidade científica” (que entendo como a valorização do mérito).
O papel que a SBPC representou em 1977-1981 foi extraordinário ao enfrentar o autoritarismo do governo militar e, a meu ver, só pode fazê-lo sem sofrer uma repressão mais violenta (como ocorreu com muitas outras organizações) devido à sua legitimidade. Ao perder esta legitimidade a SBPC perde a influência notável que teve em todo o processo de democratização.
Abraços, J.G.
Ao falar sobre cientistas, físicos, pesquisadores e mencionar os grandes avanços nessa área na época da pós-guerra dentro da conjuntura nacional, achei curioso não mencionar o nome de Cesar Lattes. Parabéns pelo texto.
Fica feito o registro.