(Publicado em O Estado de São Paulo, 12/03/2021)
As decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal de anular os processos da Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportamentos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isto deixam de contribuir para a desmoralização crescente de nossos tribunais, que já vinha se acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantistas”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processados por corrupção.
A noção de que, sem procedimentos adequados, não se pode condenar as pessoas, tem como uma de suas inspirações a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos de 1966, quando um criminoso confesso teve sua sentença anulada porque seu direito à defesa não havia sido devidamente respeitado. Esta decisão foi importantíssima para colocar limites ao comportamento muitas vezes preconceituoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar sobretudo às minorias e às pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.
O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisam ser condenados. É a efetividade do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade. Para ser respeitado, o judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidades e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei. O judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isto serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial.
O “mensalão”, primeiro, e a Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedade e legitimidade à cúpula do judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na história, de julgar e condenar políticos e empresários poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimidade para administrar as crises institucionais que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachment de Dilma Rousseff. Esta legitimidade, no entanto, vem sendo corroída pela percepção cada vez mais clara de que, desde a decisão do STF sobre o fim das condenações em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimentos, que têm predominado nas cortes superiores.
É a legitimidade das instituições que distingue os estados efetivos dos estados falidos. Os estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isto é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima. Instituições são muito mais que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinados recursos, como armas, dinheiro ou conhecimentos. Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participante se sinta e atue como parte de um todo mais amplo; e dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecidas como benéficas, e não predatórias. Isto vale tanto para o judiciário quanto para os demais poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizações profissionais.
Instituições efetivas podem também existir em estados autoritários à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituições vigorosas. O grande desafio das sociedades democráticas é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituições reduzindo ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitando as diferenças e garantindo as liberdades. Isto requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil, e, quando ela fracassa, abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituições – o judiciário se transforma em instrumento de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriados por famílias e grupos poderosos, as empresas se transformam em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimento científico e técnico é substituído pela superstição e as fake news. É uma rampa inclinada na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.
Hi Simon,
Your commentary, that of my mestre (from Columbia University), couldn’t be clearer and more incisive, as your comments have always been — consistently — for decades.
I write to offer respectfully some “problems” for our consideration.
Of course, being an American political scientist, I am familiar with the Miranda decision that guarantees the accused the right to be informed of his/her rights, upon arrest: absolutely crucial to the functioning of the due process of the law. Perhaps Lula is free essentially on a technicality. This is problematic on many levels: agreed.
Of course, being a Brazilianist, I am aware of the mensalão and the corruption within the PT governments. These haunt the PT.
Of course, being the son of a Brazilianist social anthropologist, I am aware that Brazilian politicians, left and right, pursue (invariably, ad nauseum) developmentalism in Brazil’s interiors: to the detriment of its Indians, its rural workers, and its flora and fauna – to the point of threatening the planet itself.
Yet, Prof. Simon, your point about the “demoralization” of institutions — in this case, the judiciary — and the consequences of such demoralization to the future of the national democracy…. Well, I would argue that that train has long ago left the station. Even the Brazilian Portuguese language has offered the final verdict on Brazil’s judiciary — long before you, professor, and I were born — num ditado bem antigo:
“Para os amigos tudo, para os inimigos a lei.”
My questions, then: Following the birth of the Nova República — which we personally witnessed with a measure of sincere hope — did that sad situation in the judiciary really change? Endless lawsuits, dubious cartórios, unjust ‘justiça’ seem to me the norm… These feature of Brazil’s justice system suggest the answer is: no, it did not change anywhere near adequately after the Assembléia Nacional Constituente.
So, following your argument, Simon, could Brazil ever truly have a democracy, with a legal and prison system like this? The answer is lamentably, probably also no.
Brazilian friends often look to the United States (or at least they used to), exclaiming, “Na América as coisas são diferentes, não andam assim, não é Biorn?”
Black Americans, Hispanic Americans, poor Americans: they would all beg to differ.
We suffer pronounced “institutional racism” and intolerance for the poor in the USA. So, if that is the case, have we too never truly had a democracy in the USA, where, as Orwell wrote in his unforgettable line in Animal Farm, “some are more equal than others”? The answer, I’m afraid, is probably no also.
(Orwell, I know, referred to Stalinism; but the line still obtains…)
Do we not, then, live in a desperate time of COVID, death, and economic depression, with wildly inappropriate leadership in Brazil and also, at least until Jan. 2021, in the USA?
Of course we do.
Is it really, then, democracy — vital though it may be — that can truly make a difference in Brazil? Or in America?
Or, is it a matter — as it has always been in our lifetimes — of getting out the “muito ruim” to reinstall o “menos mal?” In this case, President Lula?
Would Lula really give away Brazil to his friends or would he try to do something about the multiple crises that afflict this beloved nation?
In America, we may not have much of a democracy, but we are doing the best we can with what’s left of it. With Joe Biden, of all people: a long-time militarist who favored long-term incarceration of petty criminals and a center-rightwing Democratic Party throughout his career.
In Brazil, you may not have much of a choice left, but Lula is likely to be the country’s “least bad” option (again, there’s a Brazilian term for this situation: “voto útil”) .
Biden wasn’t my first choice either. In the primaries, I supported Senators Warren and Sanders.
Obviously, I voted for Biden over Trump.
Brazil needs solutions as soon as possible to grave national problems. Healing the democracy is only one of the projects as the country buries the many, many thousands of COVID victims and begins to face deep, deep poverty among its disadvantaged… reminding us of what the country was like, Simon, in 1967. Something we both remember.
In America, nobody in the Republican Party voted for President Biden’s truly transformative US$ 1.9 trillion “bottom up” Recovery Package last week. Not one. But you know what? 70 percent of Americans support it. Over 70 percent! Including millions of Republican citizens. A kind of democratic consensus, wouldn’t you agree?
There are innumerable good people in Brazil, many who have been my friends and teachers for decades, who cannot stand the idea of Lula and his smiling ministros.
But I am willing to bet that a majority of the Brazilian population will support a serious PT plan to lead Brazil out of its crisis; I would venture well over 50%.
Are Biden’s 70 percent and Lula’s likely 51 percent (plus) not indicators of some kind of national consensus, if not a full-blown democratic solution?
Biden may be the fruit of a Democratic party conluio against the rising American left: but he has the American people behind him now. We need leadership that favors ordinary people, and we are getting it.
Wouldn’t a Lula government likely favor ordinary people?
Lula may be a survivor of his own government’s serious flaws, judicial malfeasance, and Brazil’s deep and profound classism: but, I’d wager, he would enjoy massive support from the Brazilian people if he were to be elected to launch a serious national rescue effort.
You might call it “populismo,” and you’d be right. No argument.
But wouldn’t you, like me, prefer to see Brazil leave behind soon this catastrophe that has befallen it?
I am glad Biden is trying, whether the USA has a weak democracy or not.
I hope Brazil will have a decent president, probably Lula, whether Brazil has a weak democracy or not.
Both countries need “uma virada.” About that, I am quite sure.
E o resto…
Stay safe, Simon! Don’t ever stop writing! I won’t ever stop reading your thoughts!
Um abraço forte de Miami do seu estudante,
Biorn Maybury-Lewis
Caro Biorn,
Obrigado pela longa mensagem, dois comentários. Primeiro, você diz que o judiciário brasileiro sempre foi muito ruim, e assim não tem nada de novo nas decisões recentes de acabar com os processos da Lava Jato. Eu concordo que sempre foi muito ruim, mas por algum tempo havia a esperança de que havia uma nova geração de juizes e promotores mais independentes, menos tolerantes tanto com a corrupção quanto com a violência policial, que dava alguma esperança. Talvez fosse excesso de otimismo. Quanto a Lula, ele certamente seria uma melhor alternativa do que Bolsonaro em uma próxima eleição, não tem como ser pior. Mas existem vários Lulas, o de 2002, que presidiu um período e estabilidade e prosperidade econômica, e o de 10 anos depois, que levou o país à maior crise econômica de sua historia, sem falar da dilapidação da Petrobrás, etc. Qual deles teremos no futuro é difícil dizer. Um abraço,
Meus caros, creio que Lula seria o reforço desses problemas a minarem a legitimidade de nossas instituições judiciárias. Como corretamente foi apontado por ti, Simon, nós não sabemos qual Lula subiria ao poder e um Lula empenhado na vingança contra aqueles que o fizeram cair em desgraça seria mais um fator de instabilidade institucional. Além disso, nós vimos como, em seu governo, ele mais quis usufruir sua popularidade e não avançar uma série de reformas que enfrentassem nossas debilidades institucionais. Lula sob diversos aspectos deixou a desejar, mas sempre contou com um bom serviço de “relações públicas” e com mais boa vontade ao redor do mundo do que merecia como era de se esperar de uma grande liderança carismática.
Excelente Simon
Siempre con sus análisis tan lúcidos el amigo Simón