(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2023)
Entre 1980 e 2019, a economia chilena foi a que mais cresceu na América Latina, enquanto a proporção de pessoas vivendo em situação de pobreza baixou de 53 para 6%. Esta história de sucesso se explica pelas políticas que Sebastian Edwards, em livro recente, chama de “neoliberais”, entendidas não somente como a aposta nos benefícios da economia de livre mercado, mas também pela convicção de que as regras competitivas devem valer para outras áreas como as da educação, saúde, habitação e previdência social (The Chile Project: the story of the Chicago Boys and the downfall of neoliberalism, Princeton, 2023). Estas políticas foram introduzidas nos anos da ditadura militar de Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, e continuadas nos 20 anos seguintes em que o Chile foi governado democraticamente pela “concertación” de socialistas e democratas cristãos. Além de manter a economia de mercado, estes governos passaram também a investir nas áreas de saúde pública e educação, e foi a partir daí que a economia mais cresceu, a pobreza mais se reduziu, e a qualidade da educação melhorou.
E no entanto, a partir de 2016 a política chilena se polarizou cada vez mais, com os governos de esquerda e direita de Michelle Bachelet e Sebastian Piñera se alternando. Em 2019 o país foi sacudido por violentas manifestações populares que resultaram em um novo e jovem presidente, Gabriel Boric, oriundo dos movimentos de protesto. Com ele foi eleita uma assembléia constituinte que elaborou uma nova constituição que prometia pôr fim ao neoliberalismo e implantar uma nova sociedade baseada na garantia dos direitos sociais, economia social de mercado e estado plurinacional, com o reconhecimento da autonomia das populações indígenas. O texto, no entanto, foi rechaçado pela maioria da população em um plebiscito, e agora uma outra constituição, muito mais conservadora, está sendo preparada, com a chance de ser também desaprovada em um plebiscito no próximo dia 17 de dezembro.
A preocupação de Edwards, com este livro, foi entender por que uma história inicial de sucesso redundou no aparente consenso de que havia sido um fracasso, e o que se pode esperar para o futuro não somente para o Chile, mas para todos os países da região que, nos últimos tempos, têm alternado entre governos de direita e esquerda, liberais (ou neoliberais) e estatistas, sem que mostrem resultados consistentes. As políticas pró-mercado dos Chicago Boys tiveram o pecado original de terem sido implantadas à sombra de uma ditadura sangrenta, mas a manutenção de muitas destas políticas pelos governos democráticos nos anos posteriores indicava que devia ser possível separar uma coisa da outra.
Parte do problema foi que, ao lado dos indicadores de sucesso, estas políticas tiveram pelo menos dois resultados negativos: a desigualdade, que continuou alta, e o sistema previdenciário de capitalização, em que as aposentadorias dependem dos rendimentos de investimentos privados de cada um ao longo da vida. Edwards mostra que os que apoiavam estas políticas não acreditavam que a desigualdade seria um problema, desde que a pobreza diminuísse, e não consideravam os profundos efeitos negativos de uma sociedade econômica e socialmente dividida. E o fracasso do sistema previdenciário, em que as pessoas chegavam à aposentadoria sem o mínimo de condições para se manter, colocou a classe média, que aparentemente se beneficiava do crescimento da economia, em situação de grande insegurança.
São problemas que poderiam, em princípio, ser administrados com políticas mais adequadas de saúde, educação e proteção social, que os diversos governos democráticos buscaram implantar. Mas Edwards crê que o problema era mais profundo, e tinha a ver com as grandes desigualdades sociais e com a arrogância dos políticos e economistas que não atentaram para os problemas e tensões que vinham se acumulando. Ele não acredita, como eu também não, que economias fortemente estatizadas e apoiadas em movimentos sociais, como tentado por Salvador Allende no passado e por outros governos de esquerda mais recentemente, consigam produzir melhores resultados. Mas não é fácil chegar a um equilíbrio adequado entre incentivos de mercado e políticas sociais, e os economistas não têm instrumentos para entender e lidar com as desigualdades que ele chama de “horizontais”, de natureza social e cultural, que vão muito além das diferenças de renda e dividem tão profundamente a sociedade chilena e de outros países da região. Em última análise, diz ele, os defensores da economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das ideias, incapazes que foram defender seus resultados e lidar com os temas emergentes da perda de identidade, insegurança e ressentimento que muitas vezes são a outra cara do desenvolvimento capitalista. Edwards não cita, mas seu livro faz lembrar um livro clássico, A Grande Transformação, de Karl Polanyi, de 1944, que fala sobre a fratura entre sociedade e economia trazida pelo capitalismo selvagem, à qual ele atribui as guerras grandes que destroçaram a Europa. Vale a pena reler