(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro, 2024)
Quando Gustavo Capanema quis fundar a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcelo Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lúcio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O Edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro. Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papeis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da California em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.
A ideia de que universidades são feitas por comunidades de pessoas, e só depois por leis e edifícios, foi o fio condutor de uma série de estudos em que participei ao longo dos anos. Claro, elas precisam de prédios, equipamentos, pessoal administrativo, e atender às expectativas dos estudantes, da sociedade e das profissões. Mas seu principal capital, que faz a diferença, é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual e da competência técnica, que desenvolvem e transmitem a seus alunos e a toda sociedade. Se isto é verdade, então os professores universitários formariam uma espécie de profissão das profissões, uma comunidade cuja identidade central seriam estes valores, que transcenderiam outras identidades institucionais, profissionais e mesmo nacionais.
Existe, no entanto, outra visão, a de que o ideal das profissões autônomas é um mito, que elas na prática são ou acabam sendo controladas pelas grandes burocracias públicas e privadas. Os profissionais autônomos de transformariam em empregados, e as comunidades profissionais, em sindicatos de um proletariado letrado. Quando, na década de 90, fizemos uma pesquisa sobre os professores universitários no Brasil, constatamos que havia, no país, um pequeno grupo de professores de alta formação, pesquisadores, que compartilhavam os valores de autonomia e liderança intelectual da comunidade acadêmica; um grupo bem maior, de formação intermediária, funcionários das universidades públicas, em que prevalecia a identidade corporativa e sindical; e um terceiro grupo fragmentado, sem identidade própria, trabalhando de forma precária para o mercado de ensino superior privado.
O que aconteceu com os professores universitários brasileiros desde então? Olhando os dados, algumas coisas chamam a atenção. Entre 2010 e 2023, o número de estudantes universitários passou de 6 para 10 milhões, mas o número de professores permaneceu praticamente o mesmo, cerca de 350 mil, metade no setor público, metade no privado. A razão é que o sistema público cresceu pouco, e o sistema privado aumentou sua eficiência pelo uso mais intensivo de seus professores, sobretudo através do ensino à distância. O número de alunos por professor no setor privado subiu de 22 para 40, enquanto, no setor público, permaneceu entre 10 e 12. Desapareceu, praticamente, a figura do professor horista no setor privado, substituído pelos contratos em tempo parcial.
Depois, os professores ficaram mais velhos e mais qualificados. Esta é a tendência geral, mas existem grandes diferenças por setor. No setor privado, a proporção de professores de 40 anos ou menos passou de 46% para 35%. Nas universidades federais, de 37% para 26%; e nas universidades paulistas, de 16% para 9%. A proporção de professores com doutorado passou de 56% para 75% no sistema federal, de 15% para 33% no sistema privado, e permaneceu acima de 95% no sistema paulista.
Ao mesmo tempo, a posição relativa dos professores universitários em termos renda piorou. Para demonstrar essa mudança, comparei três rendas médias: a das pessoas com educação superior em geral, a dos professores universitários do sistema privado e a dos professores do sistema público, todas em relação à renda média do país. A análise foi feita com dados de dois anos: 2012 e 2023.
Assim, tomando a renda média do país em cada ano como referência (igual a 100), em 2012, as pessoas com diploma universitário ganhavam, em média, 253% da renda nacional — mais do que duas vezes e meia a média do país. Professores universitários do setor privado recebiam 300%, e os do setor público, 400%. Já em 2023, essas proporções caíram para 202%, 268% e 357%, respectivamente, conforme os dados da PNAD.
Essa redução indica um enfraquecimento da vantagem salarial tanto para os portadores de diploma quanto, em maior medida, para os professores universitários.
Só com estes dados não dá para dizer quanto ainda persiste, entre eles, o modelo das comunidades profissionais autônomas, das corporações profissionais ou dos sindicatos. Mas temos indicações, por outros lados, que o prestígio dos professores tem caído e sua autoridade, e da ciência que incorporam, contestada. No setor privado há um processo de profissionalização fragmentada que parece se consolidar: os professores trabalham mais, ganham menos, não têm estabilidade no trabalho, e formam um “precariado” que não consegue se organizar para defender seus interesses. No setor público, com a maior qualificação, envelhecimento e a perda relativa de vantagens, podemos entender que prevaleça entre muitos uma atitude defensiva e de ressentimento, mais do que a de uma profissão autônoma e altiva. E mal temos lareiras para nos sentarmos a seu pé para conversar.