Pé de Meia

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de fevereiro de 2014)

Com a reforma do ensino médio estancada, o governo resolveu instituir o programa “pé-de-meia”, pelo qual estudantes de baixa renda do ensino médio que frequentem as aulas receberão duzentos reais por mês e mais mil reais por ano completado, a serem recebidos ao final do curso. Pelo anúncio, o custo seria de 7.1 bilhões ao ano, atendendo a 2.5 milhões de estudantes. Pelos dados da pesquisa do IBGE que consultei para este artigo (Pnad contínua 2021), existiriam cerca de 5.7 milhões de jovens entre 15 e 24 anos com renda familiar per-capita de até ¼ de salário-mínimo, dos quais 2.8 milhões no ensino médio, número próximo ao divulgado pelo governo.

Os objetivos da lei são genéricos – democratizar o acesso, mitigar a desigualdade, estimular a mobilidade social, promover o desenvolvimento humano – e em nenhum lugar se indica como o incentivo contribuirá para estes fins.  O que está de trás, aparentemente, é a ideia de que existe muita evasão escolar no ensino médio, que ela afeta sobretudo jovens de baixa renda, e que isto pode ser corrigido com um estímulo financeiro. Nada disso é certo.

A ideia de dar um dinheiro para manter as crianças na escola é antiga e vem do Bolsa Escola, que deu origem ao Bolsa Família. O que se viu, no entanto, foi que as chamadas “condicionalidades” praticamente não funcionavam. Com bolsa ou sem bolsa, havendo escolas, as famílias mandavam os filhos, da mesma maneira que buscavam atendimento de saúde se havia serviços disponíveis. Com suas limitações, o Bolsa Família é importante como política de renda, mas não tem como solucionar problemas não resolvidos das áreas de educação e saúde.

A outra coisa que sabemos é que o problema da deserção escolar é muito menor do que se pensa. Os trabalhos de Philip Fletcher, Sérgio Costa Ribeiro e Ruben Klein mostraram, na década de 80, que o problema não estava no abandono, e sim na repetência. As crianças permaneciam na escola, mas aprendiam pouco e iam ficando para trás.  Depois se pensou que o abandono  ocorria principalmente a partir do ensino fundamental 2, aos 11 anos de idade, e se acentuava no ensino médio. Mas os dados atuais mostram que praticamente não existe abandono até os 15 anos, e que ele não é maior entre os mais pobres. Para estes, aos 14 anos, a percentagem que não estuda é de 0,6%. Há um pequeno aumento aos 15, para 2,6%, e só a partir daí cresce –  4,8%, 14,2% e 49,3% para 16, 17 e 18 anos de idade. Dos 19 anos em diante, mais da metade dos jovens está fora da escola. Aos 19 anos, 27% só estudam, 12% estudam e trabalham, 27% só trabalham,  e 33% engrossam o exército dos “nem-nem”.  Isto ocorre em todas as faixas de renda. Mesmo nas famílias mais ricas, de mais de 5 salários mínimos mensais per capita, um terço dos jovens já está fora da escola aos 19 anos.

Existe claramente um efeito de idade. Ao se aproximar da maioridade, os jovens precisam decidir o que fazer da vida, e a opção para a maioria é deixar de estudar. Há os que deixam a escola para trabalhar, mas poucos conseguem de fato uma ocupação. A maioria abandona simplesmente porque ficou para trás, não entende e nem se motiva pelo que é ensinado, e não vê perspectiva na corrida de obstáculos que é concluir o ensino médio, fazer o ENEM e tentar uma faculdade. É improvável que uma pequena bolsa de permanência tenha mais do que um efeito marginal, já que ela é desnecessária para os que continuam matriculados e incapaz de fazer com que os que já desistiram voltem à escola.

A reforma do ensino médio de 2019, agora condenada pelo MEC, tentou lidar com parte deste problema ao abrir caminho para um ensino médio com conteúdos modernos, mais possibilidades de escolha e o fortalecimento de um ensino técnico mais prático e apropriado para os milhões que não querem ou não conseguem seguir os cursos tradicionais. Passar de um modelo único, que deixa milhões pelo caminho e se baseia em um currículo elitista moldado pelo ENEM, para um outro com a complexidade requerida por uma educação de massas, com profundas desigualdades e em meio a uma revolução tecnológica, não seria fácil. Teorias pedagógicas à parte, tenho para mim que a principal razão da resistência que a reforma encontra foi que ela mexe com as rotinas de trabalho do Ministério, das secretarias de educação e dos professores das redes públicas. Apesar disto, várias tentativas foram feitas de experimentar com currículos inovadores, pluralidade de trajetórias e cursos técnicos, que precisam ser avaliadas e valorizadas.

Uma  alternativa  que tem sido apresentada é a escola média de tempo integral.  Hoje, nas redes estaduais, somente 20% dos alunos estão nestes cursos, enquanto um número muito maior (que não aparece mais nas estatísticas do INEP) estuda em cursos noturnos em condições precárias.  Quando escolas de tempo integral são bem geridas e o currículo é inovador,  o resultado pode ser interessante, mas isto pode ser também feito, a menor custo, com escolas diurnas regulares. Um bom uso do dinheiro do pé-de-meia, aliás, seria destiná-lo a reduzir o ensino noturno.

Duas frases simples resumem a moral desta história.  No ensino médio, não é o mercado que atrai os jovens, é a má qualidade e inadequação dos cursos que os expele. E não há como melhorar o que está ruim colocando dinheiro para ter mais do mesmo.

A CAPES e suas avaliações

Concordo com Robert Verhine, em sua resenha do livro de André Brasil sobre o sistema brasileiro de avaliação da pós-graduação, de que se trata de uma contribuição importante para o entendimento do tema. Embora tenha também lido o livro, este comentário não pretende ser uma outra resenha, mas uma reflexão mais geral sobre a questão da pós-graduação brasileira e o sistema da CAPES.

Minha principal observação é que os diferentes aspectos e modalidades da avaliação, apresentados no livro e mencionados na resenha, são tratados sobretudo como se fossem questões técnicas, quando na verdade elas refletem concepções diferentes sobre temas como a autonomia universitária, o papel do governo no apoio e ou indução da qualidade e produtividade dos programas de pesquisa e pós-graduação, e inclusive sobre a própria natureza dos cursos de pós-graduação.  Isto aparece com clareza na parte em que se contrastam os sistemas holandês e brasileiro de avaliação. O sistema holandês tem como base a autonomia das universidades, que competem entre si mostrando suas qualidades e com isto atraindo estudantes, recursos públicos e privados etc.  O governo participa tornando explícitos determinados padrões, e financiando diferentes programas ou instituições conforme seus resultados. O modelo brasileiro é hierárquico, top-down, e tem por objetivo controlar e regular o sistema.

É importante lembrar que este modelo foi criado na década de 1970, concebido inicialmente como um mecanismo para a formação de professores pesquisadores para as universidades que estavam sendo reformadas segundo o modelo norte-americano das “research universities” e para os centros de pesquisa que estavam sendo estruturados segundo as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da época. Data daqueles anos a distinção entre a pós-graduação “estrito senso”, para a formação de pesquisadores, e “lato senso”, para qualificação profissional mais avançada para pessoas com diplomas de nível superior . Com o tempo, ao se ampliar, o setor estrito senso passou a incorporar cada vez mais pessoas interessadas em obter uma qualificação profissional ou um título que pudesse levar a uma promoção e maior salário na carreira, e não se qualificar como professor pesquisador. Isto ocorreu sobretudo nos mestrados, concebidos inicialmente como substitutos provisórios para os doutorados que o país ainda não tinha, mas que se tornaram permanentes. Além disto, na década de 90 a CAPES começou a incentivar a criação de “mestrados profissionais” que se afastavam ainda mais do conceito original de pós-graduacão estrito senso.

O resultado foi que se estabeleceu, na pós-graduação, uma dualidade semelhante à que havia também na graduação:  por um lado, um sistema regulado, subsidiado, baseado quase totalmente em instituições públicas, e por outro um sistema aberto, desregulado e pago, baseado quase que totalmente no setor privado. Hoje, o setor público tem cerca de 450 mil estudantes, dos quais 300 mil em programas de mestrado e o privado, cerca de 1.300 mil, segundo os dados da Pnad contínua. Embora, nos extremos, os dois setores sejam muito diferentes, com os doutorados e programas de excelência em pesquisa concentrados no setor público, e a proliferação de cursos de aperfeiçoamento, como os MBAs, no setor privado, existe uma grande área de superposição, sobretudo nos mestrados, que faz com que esta dualidade precise ser revista.

Reconhecendo que a formação para a pesquisa científica havia deixado de ser o objetivo principal da maioria dos programas, a CAPES começou a buscar outros critérios de avaliação além dos relacionados à produção  científica, o que foi tornando o sistema de avaliação cada vez mais complexo, com várias tentativas de combinar diferentes dimensões, mecanismos de avaliação, fontes de dados etc., apresentados no livro e discutidos na resenha de Verhine. Mas a questão fundamental, que precisaria ser discutida, é se já não seria a hora de desmontar este sistema criado meio século atrás e substitui-lo por um sistema semelhante ao que existe na Holanda e outras partes do mundo, em que as instituições oferecem os cursos e programas que consideram mais adequados, e os governos se responsabilizam por manter um marco regulatório amplo e programas específicos de fomento para atividades consideradas prioritárias, sem pretender regular e controlar, no detalhe, o funcionamento das instituições.

O  antigo argumento em defesa do sistema centralizado da CAPES, de que o sistema universitário brasileiro é novo e incipiente, poderia fazer sentido meio século atrás, mas hoje a CAPES é uma anomalia,  sem similar em outros países, e com disfunções importantes. Uma delas é complexidade cada vez maior do sistema de avaliação que procura ainda manter, que se torna cada vez caro de implementar,  difícil de entender e estimula comportamentos conformistas por parte dos programas, muitas vezes mais preocupados com seus conceitos do que com os resultados de seus trabalhos. A outra é a artificialidade da separação entre os dois setores, o público/subsidiado/estrito senso e o privado /pago / lato senso. O terceiro é captura dos sistemas internos de avaliação da CAPES pelas corporações profissionais das diferentes áreas de conhecimento, que faz com que os critérios externos de qualidade (pelo qual os programas de nível 7 deveriam ter um padrão de qualidade internacional, etc.)  sejam constantemente relativizados. O quarto é o cerceamento da autonomia universitária, na criação de programas inovadores de pesquisa, formação avançada e inovação. Outra disfuncionalidade é a inequidade do sistema, já que os alunos dos cursos de pós-graduação, tanto no setor público quanto no privado, provêm de nível social elevado, e não há justificativa para que os do setor público tenham seus cursos subsidiados e recebam bolsas, enquanto os do setor privado tenham que pagar. Hoje, a maior parte dos recursos das agências federais de apoio à pesquisa universitária, CAPES e CNPq, se destina a bolsas de estudo, restando pouco para o apoio à pesquisa propriamente dita. E agora, como seria inevitável, começam as políticas de cotas para o setor estrito senso. Muito parecido com o que já acontece com os cursos de graduação, com um setor público minoritário, subsidiado e controlado, e um setor privado cada vez maior, competitivo e quase totalmente desregulado.

Ao não tratar destas questões mais fundamentais sobre papel do governo, autonomia universitária,  setor privado, espaço para a regulação etc., a discussão sobre avaliação acaba se perdendo em tecnicalidades que na verdade não têm maior importância.  Um exemplo é a questão dos rankings, ou conceitos agregados, de 1 a 7  – por que eles existem e são mantidos no Brasil, mas não na Holanda? Isto tem a ver, claramente, com a regulação top-down do sistema brasileiro, que estimula comportamentos conformistas e acaba, em última análise, perdendo sentido, por causa dos interesses conflitantes das diferentes corporações e a própria complexidade do sistema de indicadores.  Outro é a questão da autoavaliação. Ela é importante para instituições que precisam competir por qualidade em suas diversas dimensões e ante uma ampla clientela de usuários e potenciais financiadores, mas se transforma em um ritual sem relevância se sua única função é atender aos critérios formais estabelecidos pela burocracia reguladora. Não é uma questão “técnica” nem de “cultura acadêmica” enquanto tal, e não há como resolvê-la através de diretrizes ou formulários de um ou outro tipo.

Em conclusão, o que precisa ser entendido é a verdadeira natureza do setor de pós-graduação no Brasil, sua relação com o sistema de pesquisa e inovação (que não são duas faces da mesma moeda) e o papel da CAPES, que não pode continuar sendo o mesmo de meio século atrás. É a partir daí que podemos entender melhor as virtudes e defeitos de seu sistema de avaliação.

Polarização e calcificação da política brasileira – críticas e comentários

O texto sobre Polarização e calcificação da política brasileira, com observações a respeito do livro Biografia do Abismo, estimulou vários comentários que contribuem para ampliar o entendimento do tema, alguns dos quais estou compartilhando.  Isto me permite também explicar melhor algumas ideias possam ter ficado pouco claras.

Começo pelo registro da mensagem de Felipe Nunes, um dos autores do livro. Escreve Felipe que “do ponto de vista teórico, o paradigma que você apresenta não diverge do nosso quando evoca o Schattschneider. Aprendi a gostar do trabalho dele com o John Zaller no meu doutorado da UCLA. Na minha avaliação, o nosso livro é basicamente a aplicação dessa ideia para o Brasil de 2018 a 2022. Como as elites (pelas redes sociais), em particular o Bolsonarismo, moldaram a opinião pública brasileira, que agora está calcificada. Acho que a nossa diferença está na calcificação. Você acha que coisas como ‘anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso’ podem desfazer a calcificação. Mas pelos dados que a Quaest tem publicado, esses eventos não fazem nem cócegas na polarização da opinião pública. Está tudo calcificado. O raciocínio motivado está ajudando a explicar quase todo tipo de resposta da opinião pública no Brasil. Mas é claro que a calcificação é só uma tese. E como toda boa tese pode e deve ser refutada pela realidade. Vamos ver o que acontece daqui para frente. Queria ser otimista como o senhor sobre os efeitos dos arranjos políticos na opinião pública, mas eu confesso que como bom atleticano, estou pessimista!”.  

Eu não quiz dizer que as acomodações das elites com o fim da Lava Jato e as concessões ao Congresso podem “desfazer” a calcificação,  mas sim que elas ajudam a atenuá-la, e mostram que existem outras coisas na política além da opinião pública. Foi por isto mesmo que achei interessante o artigo comparando as teorias de Downs e Schattschneider.

Nesta linha, o empresário Stefan Bodgan Salej observa que o texto leva a muitas reflexões, uma delas “o papel de grupos empresariais ou econômicos, sejam nacionais ou estrangeiros, no sistema político brasileiro. E aí não só a aliança eleitoral, mas exercício do poder a posteriori, como no exemplo de reforma tributária mais recentemente. Nas grandes empresas brasileiras o cargo mais importante é diretor de relações institucionais, a pessoa que obtém o máximo do estado pelo mínimo de retorno”.

O cientista político e brasilianista Barry Ames me escreve, em inglês, que tem duas observações sobre o artigo. A primeira é que eu deveria ver seu livro recente, com Andy Baker e Lúcio Rennó,  Persuasive Peers: Social Communication and Voting in Latin America (Princeton Univ. Press). “A pesquisa foi feita antes do crescimento dos meios de comunicação social, mas temos muito a dizer sobre o contexto social e comportamento eleitoral. O livro se baseia sobretudo em meus projetos em Juiz de Fora e Caxias do Sul”.  A segunda é que “tem um livro saindo proximamente pela Companhia das Letras por Marcos André Melo e Carlos Pereira intitulado Por que a democracia brasileira não morreu?  De Dilma ao terceiro mandato de Lula.  Eu escrevi a introdução do livro. A tese principal é que as instituições brasileiras são tão fragmentadas que é muito difícil para que um movimento anti-demorático consiga ganhar força no legislativo. Eles argumentam, e eu concordo, qiue Bolsonaro nunca teve chance de instalar o tipo de regime autoritário como os Levitsky e Ziblatt, entre outros, mencionam. A polarização do eleitorado nos Estados Unidos reforça e é reforçada pelo sistema bipartidário. No Brasil isto não pode acontecer (…). Em certo sentido, seu texto reflete a contrapartida do ‘copo meio vazio’ da tese do ‘copo meio cheio’ de Carlos Pereira. Você diz que o sistema brasileiro impede que o país desenvolva as políticas púbicas que tirariam o país da armadilha de renda média. Carlos argumenta que o sistema brasileiro minimiza as chances de um encaminhamento autoritário”. 

Concordo que seria difícil no Brasil fazer uma transição gradual da democracia parlamentar para o autoritarismo como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán, mas um golpe militar simplesmente fecharia o Congresso.

O economista e imortal Edmar Bacha, comentando uma primeira versão do texto, pergunta “se a calmaria se deve à acomodação dos interesses relevantes pelo lulopetismo, significando isto que o bolsonarismo seria uma carta fora do baralho”. “Merecia atenção a diferença do caso americano, onde o trumpismo se alimenta de uma insatisfação com a emigração (como na Europa), com a desindustrialização (provocada pela China e pelas novas tecnologias), e com o identitarismo abraçado pelo Partido Democrata. Quais as “causas”  econômicas correspondentes que alimentam o Bolsonarismo no país? Faltou essa análise, que teria ver possivelmente com a ascensão do agronegócio, além da frustração com o PSDB, cujo lugar agora ocupa o PSD, por enquanto como linha auxiliar do bolsonarismo light”. E conclui dizendo que, “francamente, 60% nem de um lado nem de outro eu queria acreditar, mas me parece um exagero. Será que as eleições municipais deste ano ajudarão a compreender o enigma? Se eu fosse um empirista norte-americano, lhe diria para formular uma hipótese sobre a calcificação que poderia ser falsificada pelas próximas eleições municipais”.

O sociólogo Bernardo Sorj, também comentando uma versão inicial, observa que “o PT  certamente foi um dos construtores da polarização (a herança maldita, as elites, etc.).  A pergunta é porque foi Bolsonaro quem conseguiu mobilizar o  polo  adversário ao PT nas eleições presidenciais, nas quais o binarismo ideológico no Brasil tem  peso.    Acredito que um elemento central foi explicitar uma agenda que conseguiu  aglutinar os evangélicos e católicos conservadores, algo a que o polo tradicional ao PT, o PSDB,   nunca foi sensível. Você está certo de que a eleição de 2018 foi o momento alto da polarização, em particular pelo  efeito Lava-jato. Bolsonaro, apesar de 4 anos na presidência ,não conseguiu manter o nível de polarização”. E finalmente observa que “o problema histórico é sobre o papel do game changer (Mussolini, Hitler casos extremos). Quanto estava escrito na estrutura social e quanto depende da iniciativa dos operadores políticos? O razoável é pensar que se trata de uma mistura de ambos em cada situação histórica.  E o papel do efeito demonstração.  O efeito Trump e da nova extrema direita nos Estados Unidos e suas técnicas de atuação, ao igual que o fascismo, se espalharam pelo mundo”.

O cientista político Sérgio Fausto comenta que  “o ‘acordão’ por cima pode perfeitamente coexistir, até o início do novo ciclo d eleições gerais, com a polarização na sociedade. Ou seja, a tese da calmaria não conflita necessariamente com a da ossificação (em tempo: quando falo em eleições gerais, me refiro às presidenciais, para o Congresso e os governos estaduais). Penso que a tese da ossificação (um termo excessivo por indicar uma rigidez que o quadro não parece ter) é compatível com o modelo do ‘semi-sovereign people’. Os dois campos estão assentados em organizações bem estruturadas e capilares: família militar, inclusive polícia, e igrejas evangélicas, de um lado; PT, sindicatos, movimentos e ONGs de esquerda, de outro. Acho que a polarização depende muito dos personagens do drama. A ausência de Bolsonaro do cenário eleitoral, mas não político, abre uma brecha; enquanto o Lula aí estiver, porém, a brecha não se abrirá muito. Você tem toda razão que o que conta é o cálculo eleitoral e não uma ‘intervenção esclarecida das elites’ (a inclinação autoritária do argumento não passa despercebida). Em termos práticos, penso que devemos insistir na tese de que o quadro é mais maleável do que pintam os autores. E ir plantando. Colher mesmo, acho que só depois de 2026.”

O cientista político Edson de Oliveira Nunes escreve, no Facebook, que “quem sabe vale lembrar também o trabalho de Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage, 2020) que argumenta que a cosmovisão à nova destra é mais ‘completa’ que aquela à sinistra em termos de apelo popular”. Fica a recomendação.

Finalmente, o cientista político Paulo Elpídio Menezes Neto também se vale do Facebook para questionar se de fato o 8 de janeiro de 2023 pode ser descrito como tentativa de golpe de estado. Segundo ele, “associar as manifestações de 8 de janeiro a uma ‘tentativa de golpe de estado’ constitui uma redução desviante, muito parecida com outros episódios da história recente. Vide Weimar”. “Não se pode falar em golpe de estado”, argumenta, “por conta de algumas vidraças e de um relógio de antiquários. Ademais, a infiltração por grupos black blocs nunca foi suficientemente esclarecida. Nem as armas do ‘levante’ encontradas entre os 1400 derrotistas recolhidos à Papuda…”

Eu acredito que houve realmente uma tentativa de golpe de estado, da qual a invasão do Planalto seria somente o estopim para que as forças armadas assumissem o poder e suspendessem o resultado das eleições invocando seu suposto  “poder moderador”.  Não faltam outros elementos para corroborar isto, como as tentativas anteriores de desmoralizar as urnas eletrônicas, o abandono intencional da segurança do Planalto pelo governo do Distrito Federal e setores do Exército, assim como a minuta do golpe encontrada na residência de Anderson Torres, as reiteradas referências de Bolsonaro a “minhas forças armadas” e os encontros pouco explicados com figuras estranhas como Daniel Silveira, Marcos do Val e Walter Delgatti.  Mas, como tantas outras ações do grupo de Bolsonaro, foi tudo feito incompetentemente, como um exército Brancaleone que nunca conseguiu se organizar. Nenhum dos mentores desta tentativa estava entre os 1400 que acreditaram neles e acabaram sendo levados para a Papuda, e nenhum destes mentores foi indiciado pela justiça até agora.

Polarização e calcificação da política

Em artigo recente, escrito um ano após a tentativa de golpe de estado de janeiro de 2023, afirmei que a polarização ideológica, que teria dominado a política brasileira até as eleições de 2022, parecia ter arrefecido.Vários leitores discordaram, se referindo à Biografia do Abismo – como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro recente de Felipe Nunes e Thomas Traumann (Harper Collins, 2023).  O livro faz uso abundante de dados de pesquisas de opinião realizadas pela empresa Quaest, dirigida por Nunes, e busca interpretar o que está ocorrendo no Basil no contexto mais amplo de fortalecimento da direita e de polarização política em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. A tese principal do livro é que a política brasileira se calcificou em polos antagônicos, cuja radicalização transbordou para outros campos de atividade como a educação, a economia e as relações sociais. A principal explicação para o que está ocorrendo seria o “novo ecossistema de comunicação política”, centrado nas redes sociais, e alimentado por duas figuras carismática opostas, Lula e Bolsonaro. Neste sistema, as pessoas tenderiam a se fechar em bolhas que se autoalimentam, sujeitas à avalanche de informações falsas e mecanismos que tendem a reforçar ideias pré-concebidas.  A democracia está se rompendo, e só um reconhecimento do problema e uma ação deliberada das elites, restabelecendo as regras e os limites da convivência, poderia, quem sabe, deter este processo.

A principal evidência que tenho para a hipótese que a polarização política está se arrefecendo é a grande conciliação que tem ocorrido entre as elites políticas de esquerda e direita, pela anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso. Os principais atores da direita política brasileira não são mais Jair Bolsonaro e seus filhos, mas Arthur Lira, Tarcísio Freitas e Valdemar da Costa Neto, para os quais as questões ideológicas têm muito menos relevância do que as questões de poder. Esta conciliação está sendo feita a um alto custo e com consequências imprevisíveis, mas isto é um outro tema.

O livro de Nunes e Traumann é excelente ao mostrar como a polarização política se deu e ao descrever em detalhe a lógica das eleições de 2022, mas me parece que deixa a desejar na interpretação do que está ocorrendo. O problema, me parece, tem a ver com a teoria implícita que ele adota a respeito de como os processos político-eleitorais ocorrem. Para entender isto, uma pequena incursão à literatura existente precisa ser feita.

A teoria mais tradicional sobre comportamento eleitoral, de origem marxista, é que os eleitores votam conforme seus interesses de classe – operário vota em operário, burguês vota em burguês. A política seria uma disputa de classes,  e, como os pobres e operários são a maioria, eles sempre ganhariam as eleições, não fosse o problema da “falsa consciência”, em que eles são iludidos e não percebem quais são seus verdadeiros interesses e quem verdadeiramente os representa.   Esta teoria refletia, ainda que de maneira muito imperfeita, as divisões eleitorais da Europa ocidental até meados do século XX, mas nunca conseguiu dar conta de fenômenos como o nacionalismo, os partidos de base religiosa e, na América Latina, o populismo em suas diversas manifestações, interpretados como uma espécie de aberração em relação ao comportamento “esperado” dos diferentes setores.

As ciências sociais norte-americanas abriram uma outra perspectiva ao procurar entender diretamente o comportamento do eleitor, e, a partir daí, o funcionamento do sistema eleitoral e do regime democrático, fazendo uso de pesquisas de opinião e dados eleitorais.  Estas pesquisas se iniciam com os trabalhos pioneiros da “escola de Columbia”, de Robert K. Merton, Paul Lazarsfeld e Elihu Katz, na década de 40, sobre comunicação de massas (Katz and Lazarsfeld 1964; Lazarsfeld, Berelson and Gaudet 1968) e mais adiante com as pesquisas eleitorais da “escola de Michigan”, com os trabalhos de Angus Campbell,  Phillip Converse, Donald Stokes e outros (Campbell et al. 1960). Dois artigos tiveram grande influência nesta literatura, o do economista Antony Downs, de 1957, que propunha um modelo simples de decisão dos votos dos eleitores e de comportamento dos partidos (Downs 1957), e outro de Phillip Converse, de 1964, sobre como os eleitores entendem e pensam as questões da política (Converse 1964; Friedman and Friedman 2018).

O que estas pesquisas mostram é que, em geral, os eleitores tomam suas decisões a partir de fragmentos muitas vezes desconexos de informações, que não se estruturam de forma coerente como uma ideologia ou um entendimento mais profundo do sistema político. A pergunta, então, é como o sistema democrático, que se pretende representativo, consegue funcionar sobre uma base tão precária. A resposta é que os eleitores se informam com pessoas ou fontes em que confiam, e votam com os candidatos que melhor refletem seus interesses. Os textos pioneiros de Merton, Lazarsfeld e Katz falavam no “two steps flow of communication”, em que líderes de opinião explicavam e legitimavam as informações que chegavam pelos meios de comunicação à massa, e Converse, na mesma linha, identifica uma pequena percentagem de eleitores que organizam as informações políticas em uma “ideologia”, ou quadro de referência coerente, e pessoas próximas seguem. No modelo de Downs, as preferências dos eleitores tendem a se distribuir conforme uma curva normal, em um contínuo da esquerda à direita, o que faz com que os partidos procurem se posicionar o mais próximo possível da média de opiniões, para receber o maior número possível de votos. Isto explicaria o sistema bipartidário americano e a alternância de poder, dada a oscilação dos resultados obtidos pelos diferentes governos no atendimento às  preferências dos eleitores. Uma outra explicação para a estabilidade do sistema americano, até aquela época, era a forte tendência de os eleitores votarem  conforme sua identificação histórica com determinado partido, o que servia de amortecedor para grandes oscilações.

O que estas teorias não explicam é como este aparente equilíbrio foi sendo rompido nos Estados Unidos pela polarização crescente, que culminou na eleição de Donald Trump, um processo que também vem ocorrendo, em maior ou menor grau, em outros países.  A resposta, segundo um artigo mais recente de dois cientistas políticos, Hacker e Pierson, estaria em uma outra maneira de entender o processo político eleitoral, não mais através do comportamento dos eleitores, mas através das ações deliberadas dos grupos de interesse que disputam o poder no sistema eleitoral e, para isso, procuram organizar o eleitorado e o próprio sistema eleitoral a seu favor.  O autor de referência, no caso, deixaria de ser Antony Downs, e passaria ser E. E. Schattschneider, cujos trabalhos iniciais datam da década de 1930, e cujo texto mais conhecido, The Semi-Sovereign People, é de 1960 (Hacker and Pierson 2014; Schattschneider 1960). Na perspectiva de Schattschneider, a disputa política não se dá simplesmente pela competição pelos votos de uma massa indiferenciada de eleitores, mas pela ação de grupos que procuram moldar as opiniões e orientações de seus eleitores conforme seus interesses. No regime democrático, o eleitor continua sendo soberano, mas é uma soberania limitada e condicionada pelo trabalho de determinados grupos para conquistar o poder e exercê-los conforme seus interesses. É esta ação que pode explicar o que o modelo de Downs não consegue, a transformação da curva normal de preferências em uma distribuição bimodal, ou seja, em polarização.

Uma maneira pela qual os grupos de interesse atuam para influenciar o comportamento dos eleitores é pela criação de organizações e associações políticas destinadas a garantir determinados resultados. Um exemplo dado pelos autores é o de uma pesquisa sobre a criação de sindicatos de professores nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60. A pesquisa mostrou que estes sindicatos não surgiram de forma natural e automática pela agregação dos interesses comuns dos professores, mas foram o resultado do trabalho sistemático do Partido Democrata em determinados estados para organizá-los. Estes processos cruciais de organização e mobilização do eleitorado, e os resultados que produzem, se tornam invisíveis quando o processo político é analisado exclusivamente a partir das opiniões e atitudes dos eleitores.

Aplicando esta perspectiva ao Brasil, é possível observar que o getulismo e o lacerdismo, o golpe de 1964, a campanha pelas Diretas Já, as eleições de Jânio Quadros, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e os protestos de 2013 mostram que a mobilização e radicalização política, à direita e à esquerda, não são coisas novas no Brasil, mas foram mobilizações efêmeras, que não criaram raízes. A novidade importante neste cenário foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores no início dos anos 80.  O PT começou como o braço político de um setor específico do sindicalismo industrial, com uma retórica que buscava renovar o antigo discurso político da esquerda. Aos poucos, na medida em que foi conquistando posições de poder, passou a incorporar também sindicatos do setor de serviços, organizações do campo, setores da burocracia, setores da Igreja Católica, políticos tradicionais  e aliados do setor empresarial.  A primeira vitória de Lula contra José Serra em 2002 se deveu sobretudo ao desgaste do PSDB depois do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas, a partir daí, com o programa do bolsa família, o aumento dos gastos públicos e a distribuição de benefícios e vantagens a parceiros, o PT foi incorporando cada vez mais setores a seu projeto de poder, criando um arco de alianças que foi capaz de sobreviver à crise de 2015 e renascer.

Em contraste com o PT, nenhum outro partido político brasileiro, até recentemente, depois da dissolução da aliança entre o velho PSD e o Partido Trabalhista de Getúlio Vargas na eleição de Jânio Quadros, tentou ou conseguiu organizar uma parceria estável e organizada com determinados setores da sociedade. O PSDB, que a princípio poderia ter se transformado em um forte partido de massas graças ao histórico de oposição à política tradicional do antigo PMDB de Orestes Quércia e o sucesso do Plano Real, nunca deixou de ser um partido de quadros, na terminologia proposta por Maurice Duverger, e acabou por se deteriorar após a derrota de Aécio Neves para Dilma Rousseff em 2014.

A novidade do Bolsonarismo foi criar sua própria clientela organizada, aproveitando-se dos espaços deixados de fora do Partido dos Trabalhadores após a crise de 2015 e pelo fracasso do PSDB e outras correntes de centro e à esquerda de construir uma alternativa . Estes espaços foram muitos, e incluem as populações das periferias das grandes cidades, que buscavam proteção nos novos cultos religiosos e na convivência sofrida com o crime organizado; os setores da classe média baixa que não se beneficiaram da expansão da máquina administrativa e não tiveram acesso à educação pública e ao sistema de saúde público subsidiado; empresários que sofriam com os altos e baixos e a ineficiência da economia; e as polícias militares e partes das forças armadas que não recebiam os mesmos benefícios e a mesma atenção que outras partes do serviço público. Some-se a isto setores da sociedade que se sentem ameaçados pelas políticas e mobilizações identitárias que colocam em questão padrões tradicionais de comportamento, relacionamento e dominação que já vinham se desfazendo naturalmente e que, por isto mesmo, são ansiosamente defendidos.  Tal como nos Estados Unidos, estas parcerias foram estabelecidas inicialmente através do uso inovador das novas redes de comunicação social, De forma simétrica ao discurso do PT em nome do “povo” contra a “herança maldita” e as “elites”, elas foram reforçadas pela ressureição do antigo discurso integralista de Deus, Pátria e Família e contra a corrupção. Com Bolsonaro no governo, esta rede passou a ser alimentada diretamente com subsídios, distribuição de cargos e outras formas de organização e institucionalização, incluindo o estímulo ao armamento da população civil.

Estas redes de interesse e a ação sistemática de determinadas correntes políticas para estabelecer alianças e mobilizar apoios não são facilmente capturadas por pesquisas de opinião que medem as atitudes e orientações dos eleitores por amostras e grupos focais, e, por isto, não aparecem com destaque no livro de Nunes e Traumann. Mas, sem esta análise não conseguimos saber qual a profundidade e a resiliência da calcificação ideológica que eles postulam. Existem autores que estimam que o “núcleo duro” do PT, ou seja, eleitores vinculados a suas redes de organização, mobilização e favorecimento de interesses, seria da ordem de 15 a 20% do eleitorado, e as redes criadas pelo bolsonarismo teriam um tamanho semelhante. Além das pessoas que participam diretamente de suas redes, a força das diferentes correntes depende também, naturalmente, da quantidade de pessoas atraídas ou convencidas  por sua retórica, que é mais incerta. As eleições de 2022,  como o livro mostra, foram decididas em grande parte pelo voto contra, e não a favor de um ou outro lado. Isso significa que cerca de 60% do eleitorado estaria, em princípio, disponível para apoiar outras correntes políticas que conseguissem organizar e representar seus interesses de forma mais efetiva.

Um tema central nesta questão é o lugar e o que se pode esperar da democracia. Os estudos de opinião pública, comportamento eleitoral e sistemas partidários em todo o mundo mostram a fragilidade da ideia de que os governos democráticos são a  simples expressão direta da “vontade do povo”. Isto não justifica, no entanto, a tese dos movimentos políticos de extrema esquerda e direita de que os regimes políticos não importam, porque não passam de instrumentos de dominação de determinados grupos sobre outros. Um conceito mais apropriado de democracia é que ela é uma forma de governo legitimada por um processo político aberto, que garante que o poder de determinados setores não se perpetue e exerce funções importantes de administrar conflitos e garantir o pluralismo e os direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos, e sobretudo das minorias. A grande fragilidade dos regimes democráticos é que os setores mais interessados em sua manutenção são, em geral, os menos motivados e capacitados para se organizar e mobilizar a sociedade para defendê-la, em contraste com seus opositores nos extremos.  Ao final de seu livro, Nunes e Traumann falam sobre os problemas da democracia e dizem, com razão, que a única maneira de defendê-la é com mais democracia e o fortalecimento das instituições e da cidadania. É isto, e não a mera exortação às elites políticas para que se comportem e coloquem limites aos ataques mútuos, que pode reestabelecer um mínimo de convivência na política brasileira e fortalecer a democracia.

Em meu texto anterior, eu dizia que havia indícios de que polarização do início de 2023 parecia que havia se arrefecido, não que havia desaparecido. Para saber o quanto,  vamos ver em que medida os resultados das próximas eleições municipais dependerão de alinhamentos ideológicos ou de circunstâncias locais, e sobretudo como serão as eleições de 2026.

Referências

Campbell, Angus, Phillip Converse, Warren E. Miller, and Donald E Stokes. 1960. The American Voter. New York: Willey.

Converse, Philip E. 1964. “The nature of belief systems in mass publics.” Critical review 18(1-3):1-74.

Downs, Anthony. 1957. “An economic theory of political action in a democracy.” Journal of Political Economy 65(2):135-50.

Friedman, Jeffrey, and Shterna Friedman. 2018. The nature of belief systems reconsidered: Routledge.

Hacker, Jacob S, and Paul Pierson. 2014. “After the “master theory”: Downs, Schattschneider, and the rebirth of policy-focused analysis.” Perspectives on Politics 12(3):643-62.

Katz, Elihu, and Paul Felix Lazarsfeld. 1964. Personal influence the part played by people in the flow of mass communications. New York, N.Y: Free Press of Glencoe.

Lazarsfeld, Paul Felix, Bernard Berelson, and Hazel Gaudet. 1968. The people’s choice how the voter makes up his mind in a presidential campaign. New York: Columbia University Press.

Schattschneider, E. E. 1960. The Semi-Sovereign People – a realist view of democracy in America. New York: Holt. Rinehart and Winston.

A grande calmaria

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de janeiro de 2024)

O Brasil está uma maravilha, neste início de ano, com inflação e desemprego em queda, a bolsa subindo, PIB crescendo a quase 3% ao ano, e o Congresso aprovando a reforma tributária, saudada por quase todos como revolucionária. E 2023 culminou com churrasco de confraternização na Granja do Torto com a presença do presidente do Banco Central, que o Presidente Lula pouco antes acusava de sabotar a economia. Apesar das comemorações desta semana, é difícil lembrar que, um ano atrás, o país parecia rachado em dois extremos que se odiavam, tentativa de golpe de estado, as contas públicas em frangalhos, e o Congresso mais conservador já eleito na história, ameaçando tratar o executivo a pão e água.

Dois fatores parecem explicar esta reviravolta. Primeiro, a entrada inesperada de grande volume de recursos, graças ao fortalecimento do mercado internacional de commodities, melhoria da economia americana e perspectiva de arrecadação extraordinária de impostos de petróleo e gás. Segundo, a grande conciliação das elites políticas, com a desmontagem da Lava Jato promovida pelo judiciário e a entrega de grande parte do orçamento público para o congresso comandado pelo Centrão, iniciados no governo Bolsonaro e continuados no primeiro ano do governo Lula.

Os processos do Petrolão e da Lava-Jato foram importantes não somente por escancarar a corrupção que prevalecia nos altos níveis de governo, mas principalmente por acender a esperança de que estava se fortalecendo no Brasil um novo judiciário, forte e independente, capaz de criar padrões mais estritos de moralidade e uso dos recursos públicos. Independentemente dos erros formais e abuso de poder que possam ter havido, o fato é que a prevalência das doutrinas “garantistas” e o fim das condenações em segunda instância acabou por liberar a todos e consagrar a ideia de que, no Brasil, ninguém que tenha suficiente dinheiro e bom relacionamento jamais será punido. Apesar das juras, vamos ver se será diferente com os mentores da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, nenhum indiciado pela justiça um ano depois.  É este judiciário desvertebrado que agora é chamado a enfrentar a violência e o domínio do crime organizado sobre a população  dos grandes centros urbanos e regiões de fronteira, com relações pouco claras com as oligarquias locais.

No regime democrático, o Congresso tem a responsabilidade de aprovar o montante e o direcionamento dos gastos públicos, e o Executivo, sua aplicação. Mas o que vem acontecendo no Brasil, com os fundos partidários, eleitorais e emendas parlamentares, sobretudo a partir do orçamento secreto instituído no governo Bolsonaro, é que o Congresso  tem se apossado de fatias cada vez maiores dos recursos públicos para que os parlamentares distribuam conforme seus interesses pessoais. A isto se soma a apropriação privada dos recursos públicos pela proliferação dos “jabutis”, textos introduzidos em leis em benefício de grupos de interesse especiais. São estes jabutis que deformaram a lei de privatização da Eletrobrás e infestaram a emenda constitucional da reforma tributária, criando uma infinidade de privilégios. Uma característica deste Congresso insaciável é o poder crescente do presidente da Câmara de Deputados, um quase segundo-ministro que negocia apoio ao executivo em troca da distribuição de verbas, favores e privilégios.

Uma das principais consequências desta grande conciliação é que a polarização ideológica, que teria dominado a política brasileira até as eleições de 2022, parece ter arrefecido.  A esperança de muitos que apoiaram a eleição de Lula foi que ele abrisse espaço para uma grande coalizão que pudesse levar à frente políticas sociais mais inteligentes e as reformas políticas e institucionais que começaram a ser implementadas para lidar com crise de 2015 e suas causas. Mas ele preferiu tentar ressuscitar o Lula II, negar que o desastre de Dilma tivesse existido, voltar às velhas práticas e pagar o preço da governabilidade exigido pela “banda podre” da política. Foi por isto, me parece, que ele quase perdeu a eleição, com pouco apoio da população mais educada e dos estados mais desenvolvidos, quando poderia ter ganho por ampla maioria. E é por isto que suas prioridades, em temas como políticas de renda, defesa de direitos sociais e de minorias, meio ambiente, saúde pública, educação, habitação etc., ficam sobretudo no nível da retórica e na dependência das flutuações da economia internacional sobre as quais não tem controle. Isso vale também para sua política externa, com a grande distância entre o ativismo das viagens e declarações sonoras e a identificação clara dos interesses do país. A grande exceção é Fernando Haddad, que precisa matar um leão por dia, à esquerda e à direita, para  tentar manter a economia nos trilhos.

Olhando a crise profunda em que se meteu a Argentina, temos que dar graças a Deus, que é brasileiro, pela calmaria em que entramos em 2024. Com sorte, pode ser que o navio não afunde, embora seja certo que dificilmente enfunará as velas.

Ascensão e queda dos Chicago Boys

(publicado em O Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2023)

Entre 1980 e 2019, a economia chilena foi a que mais cresceu na América Latina, enquanto a proporção de pessoas vivendo em situação de pobreza baixou de 53 para 6%. Esta história de sucesso se explica pelas políticas que Sebastian Edwards, em livro recente, chama de “neoliberais”, entendidas não somente como a aposta nos benefícios da economia de livre mercado, mas também pela convicção de que as regras competitivas devem valer para outras áreas como as da educação, saúde, habitação e previdência social (The Chile Project: the story of the Chicago Boys and the downfall of neoliberalism, Princeton, 2023). Estas políticas foram introduzidas nos anos da ditadura militar de Augusto Pinochet,  entre 1973 e 1990, e continuadas nos 20 anos seguintes em que o Chile foi governado democraticamente pela “concertación” de socialistas e democratas cristãos.  Além de manter a economia de mercado, estes governos passaram também a investir nas áreas de saúde pública e educação, e foi a partir daí que a economia mais cresceu,  a pobreza mais se reduziu, e a qualidade da educação melhorou.

E no entanto, a partir de 2016 a política chilena se polarizou cada vez mais, com os governos de esquerda e direita de Michelle Bachelet e Sebastian Piñera se alternando.  Em 2019 o país foi sacudido por violentas manifestações populares que resultaram em um novo e jovem presidente,  Gabriel Boric, oriundo dos movimentos de protesto.  Com ele foi eleita uma assembléia constituinte que elaborou  uma nova constituição que prometia pôr fim ao neoliberalismo e implantar uma nova sociedade baseada na garantia dos direitos sociais,  economia social de mercado e estado plurinacional, com o reconhecimento da autonomia das populações indígenas.  O texto, no entanto, foi rechaçado pela maioria da população em um plebiscito, e agora uma outra constituição, muito mais conservadora, está sendo preparada,  com a chance de ser também desaprovada em um plebiscito no próximo dia 17 de dezembro.

A preocupação de Edwards, com este livro, foi entender por que uma história inicial de sucesso redundou no aparente consenso de que havia sido um fracasso, e o que se pode esperar para o futuro não somente para o Chile, mas para todos os países da região que, nos últimos tempos, têm alternado entre governos de direita e esquerda, liberais (ou neoliberais) e estatistas, sem que mostrem resultados consistentes. As políticas pró-mercado dos Chicago Boys tiveram o pecado original de terem sido implantadas à sombra de uma ditadura sangrenta, mas a manutenção de muitas destas políticas pelos governos democráticos nos anos posteriores indicava que devia ser possível separar uma coisa da outra.

Parte do problema foi que, ao lado dos indicadores de sucesso, estas políticas tiveram pelo menos dois resultados negativos: a desigualdade, que continuou alta,  e o sistema previdenciário de capitalização, em que as aposentadorias dependem dos rendimentos de investimentos privados de cada um ao longo da vida.  Edwards mostra que os que apoiavam estas políticas não acreditavam que a desigualdade seria um problema, desde que a pobreza diminuísse, e não consideravam os profundos efeitos negativos de uma sociedade econômica e socialmente dividida. E o fracasso do sistema previdenciário, em que as pessoas chegavam à aposentadoria sem o mínimo de condições para se manter, colocou a classe média, que aparentemente se beneficiava do crescimento da economia,  em situação de grande insegurança.

São problemas que poderiam, em princípio, ser administrados com políticas mais adequadas de saúde, educação e proteção social, que os diversos governos democráticos buscaram implantar.  Mas Edwards crê que o problema era mais profundo, e tinha a ver com as grandes desigualdades sociais e com a arrogância dos políticos e economistas que não atentaram para os problemas e tensões que vinham se acumulando. Ele não acredita, como eu também não, que economias fortemente estatizadas e apoiadas em movimentos sociais, como tentado por Salvador Allende no passado  e por outros governos de esquerda mais recentemente, consigam produzir melhores resultados. Mas não é fácil chegar a um equilíbrio adequado entre incentivos de mercado e políticas sociais, e os economistas não têm instrumentos para entender e lidar com as desigualdades que ele chama de “horizontais”, de natureza social e cultural, que vão muito além das diferenças de renda e dividem tão profundamente a sociedade  chilena e de outros países da região. Em última análise, diz ele,  os defensores da economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das ideias, incapazes que foram defender seus resultados e lidar com os temas emergentes da perda de  identidade,  insegurança e ressentimento que muitas vezes são a outra cara do desenvolvimento capitalista. Edwards não cita, mas seu livro faz lembrar um livro clássico, A Grande Transformação, de Karl Polanyi, de 1944, que fala sobre a fratura entre sociedade e economia trazida pelo capitalismo selvagem, à qual ele atribui as guerras grandes que destroçaram a Europa.  Vale a pena reler

Acendendo uma vela

Capa da revista Mosaico, do Diretório Central dos Estudantes da UFMG, 1961. (Ilustração de Amaury Guimarães de Souza).

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês, está disponível aqui.

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos

“A China não é um bom exemplo para o IBGE”

O jornal O Estado de São Paulo publicou hoje, 23/11/2023, uma entrevista minha sobre as questões de confiabilidade e divulgação dos dados do IBGE. O texto espelha razoavelmente bem a conversa telefônica que tive com o jornalista, com duas pequenas correções. Primeiro, não sou filho do jornalista Salomão Schwartzman, que era xará de meu pai. Segundo, que eu saiba, a ex-presidente do IBGE Suzana Cordeiro Guerra não foi indicada por Jair Bolsonaro, mas pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, que no entanto não lhe deu o apoio que deveria.

Um estudo detalhado sobre a qualidade dos sistemas nacionais de estatística, publicado pelo Banco Mundial em 2019, mostra que os países mais desenvolvidos em relação a isto são a Noruega, Italia, Polônia, Austria, Eslovênia e Estados Unidos, todos com perto de 90 pontos em uma escala de 100. Nesta escala, o Brasil tem 76,8 pontos, a Índia 70,4 e a China 58,2, o que significa que nem China nem India são modelos para nós. O que a Índia tem de notável foi o grande avanço na implantação do governo digital. A China seguramente não está atrás no uso de informações digitais pelo governo, mas não é o melhor exemplo de transparência.

Transcrevo abaixo o texto da entrevista, tal como publicado:

“A China não é um bom exemplo para o IBGE, diz o ex-presidente do instituto. Simon Schwartzman considera um equívoco o atual gestor, Marcio Pochmann, buscar no país asiático ideias para aplicar no Brasil, quando a Índia seria a melhor referência em digitalização.

O Estado de São Paulo. Por Carlos Eduardo Valim, 23/11/2023 | 14h30

O sociólogo Simon Schwartzman, filho do jornalista Salomão Schwartzman, presidiu o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre 1994 e 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época, já defendia uma modernização da estrutura da instituição para proteger o corpo técnico da interferência política, algo que voltou a preocupar economistas e quem trabalha com dados populacionais.

A gestão do instituto está sob os holofotes desde o apagão de dados no meio do governo de Jair Bolsonaro, com o adiamento do último Censo, e agora com a escolha do economista Marcio Pochmann, filiado ao PT, para liderar o órgão.

Este último chamou atenção após, em uma palestra para funcionários do IBGE realizada no fim de outubro, defender “modernizar” a forma de divulgação dos dados da instituição e comentou que buscou exemplos de como trabalhar com pesquisas na China. Schwartzman contesta que a possibilidade de país asiático ser uma referência para o Brasil, e que o exemplo precisaria ser buscado na Índia, que digitalizou a coleta de dados de forma inovadora.

Em entrevista ao Estadão, ele também defende que o IBGE deveria receber uma autonomia operacional e administrativa similar à do Banco Central, além ter um conselho técnico que aferisse e cobrasse da instituição a adoção de padrões internacionais.

As declarações e os posicionamentos políticos de Pochmann trazem preocupação sobre a credibilidade do IBGE?

Eu não vi o texto da conferência dele, mas estou acompanhando as notícias de jornais. Claro que existe uma preocupação de algum tempo de que o IBGE precisa garantir que produz dados confiáveis. Uma coisa muito importante da estatística é que ela precisa ser reconhecida como um dado válido. E isso acontece ao se adotar padrões internacionais, como os usados pela ONU (Organização das Nações Unidas), com a mesma qualidade dos principais centros de estatística do mundo. Também é preciso ter gente com reputação técnica adequada coordenando esse processo. Isso tudo é necessário porque a sociedade não tem como aferir o detalhe técnico e se o trabalho foi feito corretamente. Então, é preciso um mecanismo que traga a garantia de aplicação das melhores práticas internacionais, o que traz confiança para investidores e para a população, e dá segurança para que se possa utilizar os dados para fazer políticas públicas.

Historicamente, os dados do IBGE não costumam ser contestados. Ele não tem este arcabouço confiável?

O IBGE sempre buscou fazer um esforço neste sentido, mas não tem uma estrutura suficientemente sólida para garantir isso. Não tem conselho técnico e um mecanismo para garantir que as melhores práticas estão sendo aplicadas. Então, ele depende muito de quem está na presidência, que é um cargo demissível. Não é uma posição protegida. Deveria ser um cargo mais técnico. O problema da credibilidade é que, quando uma pessoa vem com uma marca ideológica muito forte, já se cria um clima de desconfiança que causa muito impacto. A credibilidade é muito fundamental.

Durante sua gestão nos anos 1990, houve esforços para se adotar uma governança modernizada e a falta de apoio para isso teria sido o motivo de sua saída?

Na minha presidência, eu insisti para evoluir nisso e não consegui. Eu tentei, mas não consegui na época implementar as modificações necessárias. Continuo insistindo que é necessária essa estrutura. Nenhum governo posterior levou isso para frente.

Sem isso, a instituição ficou muito exposta a pressões políticas?

Houve situações em que o instituto ficou à mercê de pessoas com posições de ideologias muito marcadas, sem compromisso com a precisão.

O Pochmann disse que se espelhava na coleta de dados digitalizada feita pela China. Esse é um bom exemplo?

O país notável do terceiro mundo é a Índia. E todos os países da Europa Ocidental também fazem isso. A China não é um bom exemplo para o IBGE. Ela é muito fechada. A Índia é mais interessante na digitalização, e tem hoje uma população maior até do que a China. É um desafio altíssimo coletar dados lá na Índia, mas todo mundo tem identidade digital, todo mundo usa comunicação digital. Eles avançaram muitíssimo nisso.

O IBGE está muito atrás? O Pochmann também causou polêmica ao defender que a divulgação pela imprensa não seria mais tão importante se é possível divulgar mais as pesquisas pela internet. Isso faz sentido?

O IBGE já avançou muito na informação disponível na internet. Todos os sistemas são digitais, todos podem acessar. Mas a divulgação pela imprensa é importantíssima, para traduzir os dados mais importantes para a população. Não entendo qual seria a novidade que ele gostaria de trazer em relação a isso.

De todos os presidentes entre 2003 e 2019, só em 10 meses entre 2016 e 2017 não teve alguém que não era funcionário de carreira. Seria importante voltar a isso?

Eu não sei se é fundamental. Eu como presidente vim de fora. Chegar à direção vindo do corpo técnico não é essencial. A questão é que as pessoas escolhidas sejam reconhecidas na área, que entendam do tema, de estatísticas. É até bom vir alguém de fora, com uma perspectiva diferente. O problema atual não é esse. Precisaria haver um mandato e a autonomia do presidente do IBGE, como é no Banco Central. Ou, então, o gestor fica sob influência do ministro ou dependente da indicação do presidente.

Quando a gestão do IBGE perdeu a confiabilidade? A primeira indicada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, a Susana Cordeiro Guerra, vinha de fora da instituição, mas tinha boas credenciais. Por que isso não teve sequência?

Ela foi indicada pelo Bolsonaro e não recebeu apoio do Ministério da Economia quando se resolveu cortar a verba do Censo. Ela ficou entre dois fogos e não conseguiu permanecer. Ela tinha uma agenda importante de se passar a usar mais informações administrativas, geradas por outras áreas do governo, como a área fiscal e a de dados econômicos. Assim, o Brasil poderia depender menos da pesquisa de opinião e usar mais os dados administrativos de qualidade gerados. Até por causa da pandemia isso ficou mais agudo ainda. Ela queria adotar critérios para os integrar os dados administrativos aos produzidos pelo IBGE, e fez um trabalho neste sentido.

Quem produz dados administrativos relevantes?

Os ministérios da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social e a Receita Federal, por exemplo. É parte do trabalho de várias áreas produzir essas informações. É preciso, então, desenvolver um processo mais organizado, para usar o que eles produzem como dados oficiais para efeito estatístico. O IBGE ainda tem um formato muito antigo, com agências localizadas em cidades do País, uma coisa dos anos 1930 e 1940, para coletar declarações das pessoas. Hoje não faz mais muito sentido, com os equipamentos de última geração e software modernos.

As guerras de cada um

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de novembro de 2023)

Existiram um dia a Ucrânia, Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como?  São perguntas que afloram ao ler “A Ucrânia de cada um”, livro organizado por Flávio Limoncic e Mônica Grin na emoção da guerra fraticida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fraticida batalha de Gaza. Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia, nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste Europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram suas vidas no Brasil e outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passaram. E estes, estimulados a construir suas vidas no novo mundo, olhavam para frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais.

Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar, e é preciso lembrar de onde viemos.  Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram, e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de Internet, as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antiga cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kischinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, Moldova e Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Dado o que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada em uma língua comum e instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão em uma importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas, e que aos poucos vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do “hassidismo”, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou finalmente pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fosse o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e cultura de países europeus como a Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto  o foi nos Estados Unidos e Europa Ocidental

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida  em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola,  onde nasceu minha mãe.  Meu pai se dizia romeno, nascido em uma das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disto nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, pelo menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Mônica citam a  Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da primeira grande guerra. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

A nova educação profissional

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de outubro de 2023)

Sem que quase ninguém visse, o Congresso aprovou, em agosto passado, por iniciativa da notável e incansável deputada Tábata Amaral, a Lei 14.645 que dispõe que o Brasil estabeleça, no prazo de dois anos, uma nova política nacional de educação profissional e tecnológica. É um texto curto, bastante genérico, mas que inova em pelo menos três pontos importantes, o da articulação do sistema escolar com o sistema de aprendizagem, o da organização dos itinerários formativos e o da avaliação desta modalidade de ensino.

O que se chama de “sistema de aprendizagem” é a educação que se desenvolve de forma articulada com o trabalho. Nela, o estudante está vinculado a uma empresa, ganha por isto, e ao mesmo tempo faz cursos em que adquire de forma mais sistemática os conhecimentos que pratica. Quando se forma, ele já tem, quase sempre, uma boa formação técnica e um lugar no mercado de trabalho. Este sistema se desenvolveu sobretudo na Alemanha, Suíça e outros países europeus, é responsável pela alta qualificação da mão de obra destes países, e considerado superior ao sistema de educação profissional em escolas separadas.  A principal condição para que o sistema funcione é que o setor produtivo se envolva ativamente na qualificação dos aprendizes, e se articule com as entidades responsáveis pelos cursos que os alunos devem seguir. No Brasil, a legislação de aprendizagem acabou se transformando em uma obrigação legal para que empresas contratem jovens carentes, com limitações que dificultam que a aprendizagem ocorra pela prática profissional.   A nova lei sobre ensino profissional avança no sentido de que as instituições de ensino reconheçam e validem os conhecimentos adquiridos no trabalho e que se criem estímulos para o envolvimento do setor produtivo com a formação profissional, mas ainda há que se desenvolver uma proposta mais articulada de como desenvolver um sistema de aprendizagem que possa ser uma alternativa valorizada à educação formal, e não, simplesmente, assistencial.  

A ideia principal por trás dos “itinerários formativos” é que os cursos profissionais não se transformem em becos sem saída que impeçam que o estudante que opte por esta via continue estudando e se qualificando em níveis mais altos. Assim, uma pessoa poderia começar como eletricista, e evoluir até ter uma qualificação de engenheiro, tendo seus conhecimentos e experiência prévios reconhecidos e validados.  Uma ideia importante, mas que depende, sobretudo, de que as instituições de educação superior se abram para um novo tipo de aluno com um perfil mais prático.

Finalmente, na avaliação, a novidade é que ela tome em conta, explicitamente, a eficiência das instituições em formar seus alunos e o lugar que eles ocupam depois de formados no mercado de trabalho, muito diferente da avaliação obsoleta que temos hoje no ensino superior, baseada em provas de conhecimentos e indicadores como a titulação formal dos professores.

O elefante na sala do ensino profissional brasileiro, que ninguém menciona, é que ele pretende fazer duas coisas opostas ao mesmo tempo, proporcionar uma alternativa prática de qualificação profissional para o jovem que chega ao ensino médio com grandes dificuldades de seguir os currículos tradicionais, e formar pessoas capazes de lidar com os novos requisitos de um mercado de trabalho cada vez mais exigente em termos das qualificações técnicas e socioemocionais requeridas. O Ministério da Educação, ao dar para trás com a reforma do ensino médio, insistir no ENEM unificado e no modelo elitista dos institutos federais para o ensino profissional, se nega a reconhecer que o problema existe, não cria alternativas de formação e reforça as desigualdades, que nenhuma política de cotas pode compensar. E isso sem dizer que temos pela frente uma profunda transformação no mercado de trabalho trazida pela automação e inteligência artificial, que coloca em questão toda a estrutura do sistema de educação regular e profissional que temos até aqui, criando a necessidade de micro credenciais, certificações, sistemas de educação continuada e de reciclagem profissional que não desenvolvemos.  

É difícil saber em que esta nova legislação vai resultar, porque vários de seus dispositivos são pouco mais do que expressões de desejo, em ações como “fomento à expansão da oferta de educação profissional e tecnológica em instituições públicas e privadas”  ou o “fomento à capacitação digital na educação profissional e tecnológica, de forma a promover a especialização em tecnologias e aplicações digitais”; e outros que seguramente não vão funcionar, como a “instituição de instância tripartite de governança da política e de suas ações, com representação paritária dos gestores da educação, das instituições formadoras e do setor produtivo”, e a articulação desta política com o futuro e incerto  plano nacional de educação.  Mas ela ajuda a recolocar o tema da educação profissional na ordem do dia, e, por isto, é uma contribuição importante.

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