(Artigo de Sérgio Fausto, publicado em O Estado de São Paulo, 2 de março de 2024)
Nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin. Num caso e noutro, o ataque ao Ocidente parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum.
Aqui me interessa o campo da esquerda. Mal ou bem, com muitas contradições, nele se situaram forças que, desde a Revolução Francesa, impulsionaram conquistas civilizatórias da humanidade. Nele está uma nova geração de ativistas, ainda em formação, com energia para levar adiante, atualizando, o legado de gerações anteriores. Por isso, preocupa ver que ela se encanta com uma confusa ideologia antiocidental, que bateu asas a partir de uma vertente respeitável das ciências humanas: o “decolonialismo”, termo incorporado no Brasil diretamente do inglês e do francês, sem o “s” que permitiria descolonizá-lo.
Para os adeptos do “decolonialismo”, o Ocidente não seria a revolução científica, o Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa, a democracia e os direitos humanos, e sim o colonialismo e a escravidão que, sob novas formas, continuariam a ser os fatores principais da opressão no mundo contemporâneo. Nessa visão binária, o salto científico e tecnológico produzido na Europa a partir dos séculos 16 e 17 é visto como mero instrumento para a expansão brutal do colonialismo. Já o Iluminismo, no século seguinte, é reduzido à condição de ideologia justificadora da opressão colonial, do trabalho escravo e do racismo.
Da Revolução Francesa, os “decolonialistas” destacam seletivamente o restabelecimento da escravidão nas colônias francesas, com Napoleão, em lugar da sua abolição em 1794. A Revolução Americana, mãe das guerras de independência e parteira da primeira República no Novo Mundo, é desvalorizada em seu conjunto pela nódoa da escravidão.
O erro dessa visão é supor que um processo histórico tão complexo e longo quanto a modernidade ocidental possa ser compreendido em bloco e submetido a um juízo moral condenatório com base na ideia de que a “parte boa” nada mais é do que uma ilusão a encobrir a “parte má”, esta sim reveladora da essência opressiva da modernidade ocidental. Trata-se de uma ideia avessa à compreensão das contradições que constituem a realidade social, no passado e no presente.
É verdade – e nisso o “decolonialismo” está coberto de razão – que a Europa se serviu da ciência e da tecnologia para conquistar territórios, submeter e frequentemente escravizar populações autóctones da África, América e Ásia e da distorção das ideias iluministas para justificar o empreendimento colonial, primeiro, a expansão imperialista, depois, e teorias absurdas e abjetas de superioridade racial. Não menos verdadeiro, porém, é que os avanços científicos e tecnológicos e os novos valores da liberdade e da igualdade produzidos no Velho Continente permitiram e impulsionaram conquistas civilizacionais que beneficiaram a humanidade em seu conjunto nos séculos seguintes. E continuam a beneficiá-la.
Os mesmos valores professados de modo seletivo e praticados de maneira excludente, ao início, motivaram e orientaram grande parte das lutas emancipatórias que progressivamente expandiram a esfera dos direitos fundamentais e ampliaram a sua aplicação no transcurso posterior da história. O fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que as forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta.
Sim, Thomas Jefferson foi um senhor de escravos. Mas o Preâmbulo da Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrito por ele, abriu um horizonte para lutas emancipatórias que se desdobram até hoje, incluídas as dos grupos (negros e mulheres, em especial) cujos direitos eram então negados. A ideia de que os seres humanos, além de iguais e livres, têm o direito à busca da felicidade (pursuit of happiness) ativou uma revolução silenciosa duradoura contra formas explícitas e implícitas de dominação e cerceamento da subjetividade. Essa concepção dos seres humanos é própria do Iluminismo, impensável fora da sua tradição.
Transformando-se em ideologia, o “decolonialismo” substitui a perspectiva crítica pertinente pela fúria moral condenatória incapaz de separar o joio do trigo. Inadvertidamente, rejuvenesce velhas ideologias anti-imperialistas e autoritárias presentes na esquerda, ao entusiasmar uma nova geração de ativistas de muito valor, mas frágil formação.
O resultado é que parte significativa da esquerda silencia diante das atrocidades cometidas pelo Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia, dá de ombros diante da diferença crucial, para o mundo, entre dois homens igualmente brancos, héteros e idosos que disputarão a presidência dos Estados Unidos, apoia qualquer iniciativa feita em nome do “Sul Global” e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com as suas marcas próprias e singulares.