(Versão modificada de artigo publicado em O Estado de São Paulo, 22 de novembro de 2024)
José Murilo de Carvalho, em “Os bestializados”, lembra como o povo do Rio de Janeiro, sem saber do que se tratava, assistiu à mobilização dos militares que implantaram a República em 1889. Foi assim que me senti ao acompanhar de perto, na Zona Sul do Rio de Janeiro, as grandes movimentações da reunião do G20, só comparáveis às da Olimpíada e da Copa do Mundo em 2014 e 2016. Mais uma vez o Brasil, e especialmente o Rio de Janeiro, se colocavam no centro do mundo, e eu, tão pertinho, não havia sido convidado…
Não é que o povo, desta vez, tivesse ficado totalmente de fora. A Cúpula Social do G20, alguns dias antes, contou com a presença de milhares de participantes de 271 entidades da sociedade civil, que em três dias aprovaram, por unanimidade, um documento que foi encaminhado ao Presidente Lula para ser incluído na pauta da reunião. Além disso, inúmeros grupos de trabalho e de engajamento foram mobilizados, e a declaração final foi um documento com 85 recomendações e compromissos assinados pelos chefes de estado das maiores economias do mundo, sob a coordenação do governo brasileiro. A proposta de taxação das grandes fortunas não foi aprovada, mas em compensação ficou registrada a criação da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Fala-se em mais de 40 bilhões de dólares a serem mobilizados até 2030, com recursos já existentes em agências como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e outros a serem levantados. Para gerenciar a aliança, o Brasil desde já vai financiar a instalação de um escritório em Brasília e outro em Roma. Um grande sucesso, e mais uma vez não só a Europa, como o mundo, se curvam diante do Brasil
Será? Criado 25 anos atrás como um fórum para lidar com as crises financeiras internacionais, reunindo ministros de finanças e presidentes de bancos centrais das grandes potências e países emergentes, o G20 evoluiu para uma reunião anual de chefes de Estado e de Governo, tendo como prioridade o fortalecimento da governança internacional da economia, mas ampliando a agenda para temas como crescimento sustentável, redução da pobreza e desigualdade e clima. Na reunião do Rio de Janeiro predominou a ideia de que ela deveria contribuir para a instalação de uma nova ordem internacional, baseada no consenso e na participação ampla de países do “sul global” e da sociedade civil, que substituiria a ordem criada depois da Segunda Guerra, com as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial. Nesta nova ordem países de porte médio, ou “emergentes”, como o Brasil, Índia, México, África do Sul e Indonésia, assumiriam posições de liderança em um sistema multipolar no qual os Estados Unidos e a Rússia teriam menos importância do que até agora. Com a Rússia isolada pela guerra da Ucrânia e a eleição de Trump apontando para um novo isolacionismo americano, esta nova ordem seria claramente liderada pela China. Não é à toa que a figura em destaque da reunião foi Xi Jinping, que vem liderando os esforços de criação de uma um novo sistema internacional multipolar e globalizado liderada por Pequim.
Sem Vladimir Putin e com Joseph Biden em final de mandato, nada de novo surgiu em relação às guerras da Ucrânia e de Gaza, e as propostas de reformular as Nações Unidas, reforçando o peso da Assembléia Geral e a composição do Conselho de Segurança, simplesmente reiteram o que representantes do Brasil e de outros países vêm dizendo há anos, e não há nenhuma indicação de que elas serão implementadas desta vez. Neste como nos temas de mudança climática e as questões emergentes das novas tecnologias de informação e da inteligência artificial, a maioria das decisões e compromissos do documento final são recomendações gerais, inexequíveis ou já em andamento de alguma outra forma.
A pergunta que fica é se grandes mobilizações de pessoas e recursos como esta, que culminou com dois dias de caos na Zona Sul do Rio de Janeiro – com tropas e caminhões do exército nas esquinas, aeroporto fechado, motocicletas e sirenes abrindo caminho para as autoridades, sem falar no dinheiro gasto – produz resultados que justificam o esforço, ou não são simplesmente um grande exemplo de turismo diplomático. A resposta está em algum lugar entre os extemos do entusiasmo e do ceticismo total, e eu tendo a ficar mais próximo do segundo. Não há dúvida que juntar pessoas para discutir e elaborar propostas sobre temas importantes é sempre útil, e contatos entre representantes de governos e outras entidades públicas e privadas podem gerar novas modalidades de cooperação. As reuniões servem também para colocar em evidência alguns temas relevantes que algum dia podem gerar políticas e mecanismos específicos de cooperação.
O velho sistema bipolar do pós-guerra já não existe, mas a construção desta nova ordem é uma tarefa difícil, que passa entre outras coisas pela capacidade de a comunidade internacional administrar conflitos locais como as guerras da Ucrânia e Gaza e cooperar efetivamente em grandes temas de comércio, meio ambiente, pobreza e valores democráticos. É uma construção complexa e incerta, que depende mais de negociações técnicas bi e multilaterais do que por conferências de grande visibilidade como as do G20.
Tomara que as recomendações da reunião do Rio de Janeiro se cumpram. Enquanto isto, se houver lugar, me candidato para trabalhar no novo escritório em Roma que o governo brasileiro vai abrir.
Em Roma já existe a FAO criada depois da segunda Guerra Mundial com estrutura militarizada para combater a fome de pós guerra e o desabastecimento que ela provocou. Já trabalhei para essa instituição que já foi comandada por um brasileiro puxado pelo Lula. Agora servirá para alguma coisa a nova FAO 2 ou continuará na mesma mesmice. A fome diminui pelo desenvolvimento, o avanço da democracia e o combate a corrupção quando há doações. Não é uma questão de por dinheiro a mis ou a menos.
Obrigado pelo testemunho, é exatamente o que penso.