Estadão: Os cortes na FAPESP

(Transcrevo abaixo o editorial do jornal O Estado de São Paulo, “Notas & Informações”, 12 de maio de 2024)

” O governo paulista ensaia medidas para realocar recursos das instituições de pesquisa e ensino superior. No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, primeiro o governo previu redistribuir uma parcela de recursos da USP, Unicamp e Unesp para outras instituições. Logo depois recuou. Mas o projeto prevê a possibilidade de uma redução de até 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Esforços para racionalizar e otimizar a dotação de recursos são legítimos. Mas não é assim que se faz, com tesouradas abruptas, sem articulação com as partes interessadas nem um planejamento de longo prazo. Tanto mais numa área a um tempo tão estratégica e tão vulnerável quanto a formação e pesquisa universitárias.

Em comparação ao resto do mundo, o sistema paulista está longe de ser ótimo, mas no Brasil ele é, em geral, o melhor. Há décadas USP, Unicamp e Unesp são as universidades brasileiras mais bem posicionadas em rankings internacionais, e o apoio da Fapesp impulsiona o Estado na vanguarda das pesquisas nacionais.

É possível melhorar? Sem dúvida. O sociólogo Simon Schwartzman, um dos pesquisadores sobre educação mais qualificados do País, há anos apresenta diagnósticos e propostas de modernização com base nas melhores práticas internacionais.

Em artigo no Estadão, Schwartzman demonstra como o sistema atual é falho tanto do ponto de vista da cobertura e equidade quanto, na outra ponta, na manutenção e garantia de excelência. O ensino estadual público é o mais qualificado, mas só atende 11% dos alunos da graduação. As políticas de ações afirmativas introduzem um fragmento diminuto de alunos vulneráveis nesse sistema de elite. O resto é obrigado a pagar por uma formação de qualidade duvidosa em universidades privadas. Assim, a ideia de investir em outras instituições acessíveis e eficientes não é impertinente. Ao mesmo tempo, o modelo do funcionalismo público vigente nas universidades públicas perpetua uma burocracia rígida que dificulta alocação mais ágil de recursos e mecanismos meritocráticos de incentivo, necessários à formação e pesquisa de alto nível.

Schwartzman sugere três aspectos cruciais para se atingir um sistema a um tempo mais equitativo e excelente: um plano diretor prevendo parcerias com outros níveis de governo e o setor privado; um mecanismo de elaboração de orçamentos plurianuais que dê previsibilidade de recursos básicos, mas também preveja alocações condicionadas a metas de desempenho; e o fortalecimento da autonomia universitária, sobretudo na flexibilidade do uso de recursos e modelos de contratação e remuneração de professores.

São medidas que podem otimizar os recursos públicos aplicados no sistema universitário, gerar novas fontes de receita e eventualmente abrir espaço para realocar recursos em áreas mais vulneráveis, como o Ensino Básico. Mas o caminho para elevar esse sistema de bom para ótimo exige planejamento e reformas. Realocações e cortes abruptos podem até economizar dinheiro no curto prazo, mas têm tudo para causar graves prejuízos no longo prazo.”

Ênnio Candotti e o Progresso da Ciência

Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de março de 2024)

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico.  Assim era e foi o que fez Ênnio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ênnio chegou no Brasil ainda criança e estudou física na Universidade de São Paulo e depois na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcelo Damy, Mario Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 40, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ênnio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não  só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além pesquisar, se valiam das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia que precisavam para trabalhar. Em 1948, sessenta cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para  “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e sociedade. Para outros ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão,  como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e temas de política universitária e acadêmica. Ênnio Candotti assumiu a vice-presidência 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de  intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a segunda guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica.  As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou em uma profissão como as outras, pressionada pela lógica de “publicar ou morrer” e afetada pela incertezas  da política.

A pandemia da Covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ênnio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje sabemos que não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e paradoxos que ela traz. É isto que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.

A CAPES e suas avaliações

Concordo com Robert Verhine, em sua resenha do livro de André Brasil sobre o sistema brasileiro de avaliação da pós-graduação, de que se trata de uma contribuição importante para o entendimento do tema. Embora tenha também lido o livro, este comentário não pretende ser uma outra resenha, mas uma reflexão mais geral sobre a questão da pós-graduação brasileira e o sistema da CAPES.

Minha principal observação é que os diferentes aspectos e modalidades da avaliação, apresentados no livro e mencionados na resenha, são tratados sobretudo como se fossem questões técnicas, quando na verdade elas refletem concepções diferentes sobre temas como a autonomia universitária, o papel do governo no apoio e ou indução da qualidade e produtividade dos programas de pesquisa e pós-graduação, e inclusive sobre a própria natureza dos cursos de pós-graduação.  Isto aparece com clareza na parte em que se contrastam os sistemas holandês e brasileiro de avaliação. O sistema holandês tem como base a autonomia das universidades, que competem entre si mostrando suas qualidades e com isto atraindo estudantes, recursos públicos e privados etc.  O governo participa tornando explícitos determinados padrões, e financiando diferentes programas ou instituições conforme seus resultados. O modelo brasileiro é hierárquico, top-down, e tem por objetivo controlar e regular o sistema.

É importante lembrar que este modelo foi criado na década de 1970, concebido inicialmente como um mecanismo para a formação de professores pesquisadores para as universidades que estavam sendo reformadas segundo o modelo norte-americano das “research universities” e para os centros de pesquisa que estavam sendo estruturados segundo as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da época. Data daqueles anos a distinção entre a pós-graduação “estrito senso”, para a formação de pesquisadores, e “lato senso”, para qualificação profissional mais avançada para pessoas com diplomas de nível superior . Com o tempo, ao se ampliar, o setor estrito senso passou a incorporar cada vez mais pessoas interessadas em obter uma qualificação profissional ou um título que pudesse levar a uma promoção e maior salário na carreira, e não se qualificar como professor pesquisador. Isto ocorreu sobretudo nos mestrados, concebidos inicialmente como substitutos provisórios para os doutorados que o país ainda não tinha, mas que se tornaram permanentes. Além disto, na década de 90 a CAPES começou a incentivar a criação de “mestrados profissionais” que se afastavam ainda mais do conceito original de pós-graduacão estrito senso.

O resultado foi que se estabeleceu, na pós-graduação, uma dualidade semelhante à que havia também na graduação:  por um lado, um sistema regulado, subsidiado, baseado quase totalmente em instituições públicas, e por outro um sistema aberto, desregulado e pago, baseado quase que totalmente no setor privado. Hoje, o setor público tem cerca de 450 mil estudantes, dos quais 300 mil em programas de mestrado e o privado, cerca de 1.300 mil, segundo os dados da Pnad contínua. Embora, nos extremos, os dois setores sejam muito diferentes, com os doutorados e programas de excelência em pesquisa concentrados no setor público, e a proliferação de cursos de aperfeiçoamento, como os MBAs, no setor privado, existe uma grande área de superposição, sobretudo nos mestrados, que faz com que esta dualidade precise ser revista.

Reconhecendo que a formação para a pesquisa científica havia deixado de ser o objetivo principal da maioria dos programas, a CAPES começou a buscar outros critérios de avaliação além dos relacionados à produção  científica, o que foi tornando o sistema de avaliação cada vez mais complexo, com várias tentativas de combinar diferentes dimensões, mecanismos de avaliação, fontes de dados etc., apresentados no livro e discutidos na resenha de Verhine. Mas a questão fundamental, que precisaria ser discutida, é se já não seria a hora de desmontar este sistema criado meio século atrás e substitui-lo por um sistema semelhante ao que existe na Holanda e outras partes do mundo, em que as instituições oferecem os cursos e programas que consideram mais adequados, e os governos se responsabilizam por manter um marco regulatório amplo e programas específicos de fomento para atividades consideradas prioritárias, sem pretender regular e controlar, no detalhe, o funcionamento das instituições.

O  antigo argumento em defesa do sistema centralizado da CAPES, de que o sistema universitário brasileiro é novo e incipiente, poderia fazer sentido meio século atrás, mas hoje a CAPES é uma anomalia,  sem similar em outros países, e com disfunções importantes. Uma delas é complexidade cada vez maior do sistema de avaliação que procura ainda manter, que se torna cada vez caro de implementar,  difícil de entender e estimula comportamentos conformistas por parte dos programas, muitas vezes mais preocupados com seus conceitos do que com os resultados de seus trabalhos. A outra é a artificialidade da separação entre os dois setores, o público/subsidiado/estrito senso e o privado /pago / lato senso. O terceiro é captura dos sistemas internos de avaliação da CAPES pelas corporações profissionais das diferentes áreas de conhecimento, que faz com que os critérios externos de qualidade (pelo qual os programas de nível 7 deveriam ter um padrão de qualidade internacional, etc.)  sejam constantemente relativizados. O quarto é o cerceamento da autonomia universitária, na criação de programas inovadores de pesquisa, formação avançada e inovação. Outra disfuncionalidade é a inequidade do sistema, já que os alunos dos cursos de pós-graduação, tanto no setor público quanto no privado, provêm de nível social elevado, e não há justificativa para que os do setor público tenham seus cursos subsidiados e recebam bolsas, enquanto os do setor privado tenham que pagar. Hoje, a maior parte dos recursos das agências federais de apoio à pesquisa universitária, CAPES e CNPq, se destina a bolsas de estudo, restando pouco para o apoio à pesquisa propriamente dita. E agora, como seria inevitável, começam as políticas de cotas para o setor estrito senso. Muito parecido com o que já acontece com os cursos de graduação, com um setor público minoritário, subsidiado e controlado, e um setor privado cada vez maior, competitivo e quase totalmente desregulado.

Ao não tratar destas questões mais fundamentais sobre papel do governo, autonomia universitária,  setor privado, espaço para a regulação etc., a discussão sobre avaliação acaba se perdendo em tecnicalidades que na verdade não têm maior importância.  Um exemplo é a questão dos rankings, ou conceitos agregados, de 1 a 7  – por que eles existem e são mantidos no Brasil, mas não na Holanda? Isto tem a ver, claramente, com a regulação top-down do sistema brasileiro, que estimula comportamentos conformistas e acaba, em última análise, perdendo sentido, por causa dos interesses conflitantes das diferentes corporações e a própria complexidade do sistema de indicadores.  Outro é a questão da autoavaliação. Ela é importante para instituições que precisam competir por qualidade em suas diversas dimensões e ante uma ampla clientela de usuários e potenciais financiadores, mas se transforma em um ritual sem relevância se sua única função é atender aos critérios formais estabelecidos pela burocracia reguladora. Não é uma questão “técnica” nem de “cultura acadêmica” enquanto tal, e não há como resolvê-la através de diretrizes ou formulários de um ou outro tipo.

Em conclusão, o que precisa ser entendido é a verdadeira natureza do setor de pós-graduação no Brasil, sua relação com o sistema de pesquisa e inovação (que não são duas faces da mesma moeda) e o papel da CAPES, que não pode continuar sendo o mesmo de meio século atrás. É a partir daí que podemos entender melhor as virtudes e defeitos de seu sistema de avaliação.

Robert E. Verhine: Avaliando a pós-graduação no Brasil

Resenha de Brasil, André, Advancing the evaluation of graduate education: towards a multidimensional model in Brazil. Leiden, Holanda: Universiteit Leiden / ProefschriftMaken, 2023, 378p.

(para um comentário adicional a esta resenha veja a postagem seguinte, A CAPES e suas avaliações)

O modelo nacional de avaliação de programas de pós-graduação da CAPES, implementado em 1980, tem recebido muita atenção da comunidade acadêmica brasileira, especialmente considerando seu profundo impacto no financiamento e na regulação da pós-graduação no país. Enquanto muitos reconhecem que a estrutura da avaliação nacional, aplicada a todos os programas do país em intervalos regulares, tem sido eficaz na promoção da qualidade do programa, outros vêem o esforço de uma forma mais negativa, argumentando, entre outras críticas, que a qualidade educacional é vista de maneira restrita e excessivamente quantitativa, o que interfere na autonomia acadêmica das universidades garantida na Constituição brasileira. Embora muitos artigos tenham contribuído ao debate em curso, nunca houve um livro detalhado dedicado exclusivamente ao tema, até recentemente. Esta ausência na literatura de avaliação foi agora remediada, pelo menos para a comunidade internacional, por um livro que acaba de ser publicado em inglês, intitulado “Avançando a avaliação da educação de pós-graduação: rumo a um modelo multidimensional de educação de pós-graduação”.[1] O livro, que tem quase 400 páginas, é baseado em uma tese de doutorado de autoria de André Brasil, gestor de alto escalão da Diretoria de Avaliação da CAPES.

O livro está dividido em 12 capítulos e aborda detalhadamente a construção e a dinâmica da avaliação nacional, seu impacto na produção acadêmica e na qualidade da aprendizagem, seus pontos fortes e fracos e, por fim, as medidas que devem ser tomadas para seu aprimoramento. O livro conclui apresentando dez princípios que norteiam o modelo de avaliação da CAPES e oferece treze recomendações para seu aprimoramento, que, segundo o autor, foram “meticulosamente delineadas para respeitar os contornos socioculturais distintos do Brasil” (p. 298). Devido  à riqueza de detalhes do livro, a presente resenha não pretende analisar todos os seus muitos aspectos. Em vez disso, o resenhista apresenta elementos-chave que considera mais relevantes para a reforma e melhoria do modelo de avaliação da CAPES atualmente em uso.

Para quem já conhece o modelo CAPES, o capítulo mais interessante do livro é o Capítulo 5, que traz uma análise comparativa dos sistemas brasileiro e holandês de avaliação de programas de pós-graduação, identificando diferenças e semelhanças no que diz respeito à estrutura organizacional, métodos de avaliação e dados, partes interessadas relevantes e grau de transparência. A análise revela que as duas abordagens de avaliação são muito diferentes, refletindo pontos de vista distintos em relação à avaliação, à autonomia universitária e à gestão da educação superior. As universidades holandesas, que datam do século XVI, são muito mais antigas que as congêneres brasileiras, o que significa que a autonomia universitária e a internacionalização estão muito mais firmemente enraizadas nas primeiras do que nas segundas. Diferentemente do Brasil, na Holanda o uso do inglês é enfatizado e a pesquisa é organizada em unidades acadêmicas e não em programas de pós-graduação.

Como o Brasil começou tarde a promover o estudo e a pesquisa sobre a universidade, tem tentado recuperar o tempo adotando uma abordagem central e nacional para garantir a qualidade dos programas de pós-graduação, capaz de causar um impacto rápido e universalizado. Essa orientação centralizada resultou na criação do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) e na concentração da avaliação em órgão governamental nacional. A avaliação tende a ser uniforme, aplicada a todos os programas do país, e tem grandes implicações para as unidades avaliadas, estando diretamente vinculada às políticas regulatórias e de financiamento e desenhada para garantir o funcionamento, a estabilidade e a qualidade do sistema através de uma abordagem hierárquica governamental. No Brasil, o governo “dirige” o desenvolvimento da ciência no país, utilizando a avaliação dos programas de pós-graduação como principal ferramenta de regulação.

Na Holanda, o foco da avaliação está na pesquisa e não nos programas de pós-graduação, e a pesquisa é organizada de acordo com disciplinas e unidades acadêmicas, nas quais estão incluídos programas de doutorado (mas não de mestrado). Ao contrário do Brasil, o estado não possui uma atuação avaliadora na Holanda. Embora as diretrizes sejam fornecidas por organizações não-governamentais nacionais de reitores e de professores universitários, as instituições têm autonomia para definir a sua própria estratégia, organização e escopo de avaliação. Assim, o sistema de avaliação holandês é bottom-up e descentralizado. A avaliação é uma prática interna e participativa realizada com base na identidade, objetivos e estratégias de cada unidade avaliada, tornando o processo predominantemente interno, formativo, contextual e qualitativo. Não foi concebido para controle externo, regulação estatal ou responsabilização. Os protocolos nacionais definem objetivos gerais de avaliação a nível nacional, mas os critérios não são rígidos, padronizados ou obrigatórios. As unidades de investigação têm autonomia para as reorganizar de acordo com as suas características específicas. Os protocolos não definem regras ou diretrizes sobre as consequências da avaliação e nenhuma instituição nacional é responsável por definir ou aplicar sanções, recompensas e incentivos. Essa é prerrogativa de cada unidade ou instituição, seguindo suas políticas internas. Assim, ao contrário do caso brasileiro, na Holanda a avaliação não é regulatória, não estabelece classificações e não cria indicadores que permitam a comparabilidade entre unidades.

Ao fazer a sua análise comparativa, o autor do livro teve o cuidado de notar que os dois sistemas se baseiam em trajetórias históricas, desafios geográficos e estruturas institucionais. Os mecanismos de avaliação devem ser adaptados aos contextos únicos de cada país. Contudo, existem inspirações e lições que podem ser tiradas das experiências positivas de cada país. Em última análise, ele reconhece vantagens para ambas as abordagens, afirmando que, do ponto de vista comparativo, o modelo brasileiro tem servido de forma mais eficaz para estimular a produção de pesquisas e publicações, especialmente em um contexto em que o desenvolvimento da cultura da pesquisa é relativamente recente, enquanto o modelo holandês promoveu com mais sucesso um ponto de vista contextualizado conducente ao reconhecimento da diversidade, diferenciação e autonomia institucionais.

O autor volta à questão da autoavaliação de programa no Capítulo 11, que aborda a questão da multidimensionalidade, tema subjacente ao qual todo o livro é dedicado. Ele observa que, em 2018, a CAPES reconheceu a necessidade de desenhar uma estratégia de autoavaliação para o SNPG. Este reconhecimento, na opinião do autor, derivou de duas tendências principais. Em primeiro lugar, a expansão significativa do SNPG, que cresceu de cerca de 400 programas em 1980 para quase 5.000 em 2020, tornou-se um obstáculo para captar as narrativas complexas vividas pelo número rapidamente crescente de iniciativas de pós-graduação. Em segundo lugar, era cada vez mais evidente que a sua abordagem de avaliação externa tinha promovido um sistema científico excessivamente homogêneo, levando os programas de pós-graduação “a tornarem-se fotocópias de qualidade inferior aos de melhor desempenho” (p. 260).

No que diz respeito ao tema da multidimensionalidade, entendido como uma abordagem avaliativa que busca captar a realidade de forma ampla, focando em uma variedade de dimensões, subdimensões e indicadores operacionais que se relacionam, de forma articulada, com a qualidade educacional, o autor afirma que a autoavaliação é potencialmente “o instrumento mais valioso numa avaliação genuinamente multidimensional” (p. 273), pois, se bem desenvolvido, pode assegurar a relevância contextualizada que historicamente faltou ao modelo de avaliação da CAPES. Ele postula que uma abordagem multidimensional eficaz “só é verdadeiramente possível por meio da autoavaliação”, pois permite que a multidimensionalidade “incentive a diversidade na ciência brasileira e que possa empregar as próprias instituições como parceiras mais ativas no processo de avaliação” (p. 277).

É claro que, no Capítulo 11, a sua discussão sobre a abordagem da multidimensionalidade à avaliação trata de muito mais do que apenas a autoavaliação. Ele analisa a proposta multidimensional feita em 2018 pela Comissão do PNPG, responsável por acompanhar o Plano do período 2011-2020. Esta proposta defendia a utilização de cinco dimensões, com cada dimensão classificada separadamente numa escala de um a sete, preservando assim a classificação dos programas, mas eliminando a atribuição de uma nota única a cada programa. Embora a Comissão do PNPG tenha anunciado a sua proposta como um “novo modelo”, o autor argumenta corretamente que o seu enquadramento não muda muito em relação à avaliação já em vigor. Ainda assim, ele vê a proposta da referida Comissão como um avanço, representando “um passo modesto, mas relevante, para permitir que os programas de pós-graduação encontrem suas próprias identidades” (p. 273). O mesmo também ressalta o fato de ser uso-amigável, no sentido de que os programas individuais podem selecionar os indicadores ou itens que os ajudariam a definir os perfis dos seus programas de acordo com os seus interesses. Afirma, ainda, que essa flexibilidade orientada para o utilizador produziria resultados mais ricos e mais relevantes para a melhoria do programa.

Apesar da sua argumentação coerente, detalhada e bem fundamentada, muitos aspectos da sua narrativa podem ser questionados, incluindo o fato, reconhecido pelo próprio autor, de que o seu estudo não aborda os aspectos operacionais das suas muitas recomendações, limitando, potencialmente, sua aplicabilidade. Contudo, para este resenhista, quatro questões merecem atenção especial aqui. Cada uma é brevemente discutida abaixo.

  1. O autor defende a avaliação externa realizada pela CAPES. Embora reconheça suas limitações e a necessidade de reformas à luz da complexidade e diversidade do Sistema de Pós-graduação do Brasil, ele enfatiza seu importante papel na promoção da qualidade e da produção acadêmica, além de ser muito positivo ao descrever o uso de comissões de pares, áreas de avaliação, um padrão formulário de avaliação para orientar a aplicação de critérios e indicadores, e o Sistema Qualis para julgar, por meio de análises qualitativas e quantitativas, artigos de periódicos e outros produtos. Mas, por outro lado, sugere que a avaliação externa não é sustentável devido ao tamanho crescente do SNPG e critica-o frequentemente por limitar a diversidade e a inovação em todo o sistema. Assim, conforme descrito acima, ele concentra grande parte do livro na importância da autoavaliação, que descreve com detalhes brilhantes. Mas, nunca fica claro como ele vê a avaliação externa e a autoavaliação inter-relacionadas. A autoavaliação é um complemento ou substituto do modelo externo? Em alguns momentos, ele parece indicar que o processo interno deveria substituir a abordagem centralizada e de cima para baixo, como ocorreu na Holanda, enquanto em outros momentos ele sugere que o componente externo deveria permanecer o elemento principal, devido ao seu impacto global e a sua capacidade de fornecer resultados comparativos. Segundo ele, as duas iniciativas exigiriam articulação, mas ele não faz nenhum esforço para revelar o que “articulação” pode significar em termos concretos.
  2. Em diversas ocasiões, o autor defende uma abordagem de avaliação amigável, na qual o programa escolhe as dimensões e os indicadores com base nos quais seria avaliado. A recomendação faz todo o sentido no caso da autoavaliação, mas o autor parece aplicá-la também à avaliação externa, especialmente quando apoia o sistema de cinco notas proposto pela Comissão do PNPG por ser um passo modesto, mas relevante. O problema desse argumento é que o programa de pós-graduação não é o único “usuário”. Na verdade, como fica claro nos capítulos iniciais dos livros, o principal usuário é e sempre foi o governo brasileiro, que utiliza os resultados da avaliação para financiar estudos de pós-graduação (via a CAPES) e para regular a qualidade dos programas (via o Conselho Nacional de Educação). Outro usuário é o público brasileiro, que exige (e merece) que todos os programas de pós-graduação do país, independentemente de onde estejam, atendam a padrões mínimos de qualidade. O próprio autor parece contradizer sua postura a favor da chamada avaliação amigável, quando, por exemplo, defende o direito das áreas de avaliação estabelecerem indicadores e critérios a serem utilizados e quando afirma que um ingrediente essencial do modelo de avaliação da CAPES é seu quadro comparativo.
  3. Outra posição discutível adotada pelo autor envolve a defesa de notas múltiplas, sendo uma atribuída a cada dimensão, em vez de uma nota unitária gerada pela ponderação dos componentes com o modelo multidimensional da CAPES. Este ponto de vista não está incorreto, mas requer uma análise mais profunda. A abordagem multi-nota é útil para os programas, pois fornece uma imagem desagregada da sua qualidade que pode facilitar as decisões para a sua melhoria. Porém, o autor deixa de mencionar que os programas já recebem seus resultados de avaliação de forma desagregada, com avaliação em escala de cinco graus feita para cada quesito, item e indicador incluídos na Ficha  de Avaliação. Na área de Educação, por exemplo, cada programa recebeu, em 2022, uma avaliação para 62 elementos diferentes, abordando 3 quesitos, 12 itens e 47 indicadores. Por outro lado, o resultado da nota única é útil para outros fins, como na tomada de decisões governamentais relativas ao financiamento e à regulamentação e quando indivíduos e organizações, incluindo os do exterior, estão decidindo se devem ou não trabalhar com um determinado programa. A CAPES, por exemplo, recebe solicitações de todo o mundo perguntando sobre a equivalência entre os conceitos (E a ​​A) dados aos programas anteriores a 1998 e as notas (1 a 7) dadas a partir de então. Essas solicitações são uma prova do valor, da legitimidade e do reconhecimento internacional conferidos às notas da CAPES na forma como estão divulgadas atualmente.
  4. Por fim, ao defender o modelo de cinco dimensões proposto pela Comissão do PNPG, o autor ignora totalmente o formato de avaliação construído e aprovado pelo Conselho Técnico Científico (CTC-ES) da CAPES em dezembro de 2018. Ao invés de ser composto por dimensões avaliadas de forma independente e isoladas entre si, a Ficha de Avaliação aprovada pelo CTC-ES apresenta uma abordagem mais holística, integrada e condensada, organizada em torno de três dimensões e 12 subdimensões que espelham o chamado modelo clássico de avaliação de programas que se concentra, sistematicamente, em insumos (Programa), processos (Formação) e resultados (Impacto na Sociedade). A dimensão Programa, que existia anteriormente mas nunca foi ponderada, inclui como componentes-chave tanto o planejamento estratégico como a autoavaliação do programa, dois ingredientes que o autor considera cruciais para a melhoria do programa, mas que são omitidos no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Outra vantagem da Ficha aprovada em 2018 é que a dimensão formativa dá ênfase, pela primeira vez, às trajetórias e opiniões dos egressos do programa. Além disso, inclui como um de seus itens a produção acadêmica dos docentes, aspecto que era uma dimensão à parte tanto na avaliação da CAPES no passado quanto no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Agora, no novo formato, trata-se apenas de um componente de dimensão mais geral, reduzindo assim sua influência, algo condizente com o pensamento do autor, ao mesmo tempo em que destaca a principal justificativa para promover a pesquisa e a publicação nos programas de pós-graduação, como estratégia pedagógica para possibilitar que os alunos aprendam sobre a produção de conhecimento trabalhando em estreita colaboração com aqueles que têm experiência profunda com tais processos. Também, a nova Ficha de Avaliação aumentou a importância dada aos impactos do programa e relativizou, de forma multidimensional, os impactos internacionais versus aqueles de natureza mais local. E ainda, como parte da nova abordagem, os indicadores qualitativos receberam muito mais peso e valor do que no passado. Todos estes avanços vão ao encontro dos argumentos apresentados pelo autor em vários momentos da sua longa narrativa, embora nenhum deles faça parte do modelo da Comissão do PNPG que o autor abraça.

Apesar das dúvidas levantadas acima, este resenhista avalia o livro produzido por André Brasil de forma bastante positiva. Em suma, o autor acredita que a avaliação da CAPES deveria ser mais flexível, adaptável e contextualizada, “permitindo variação e customização de acordo com as especificidades de cada programa de pós-graduação, em harmonia com contextos institucionais e disciplinares mais amplos” (p. 302). Os esforços para melhorar ainda mais o Sistema serão muito beneficiados pelo que este livro tem a oferecer. Dou a sua leitura a minha mais alta recomendação.

Nota


[1] Todos os trechos do texto colocados entre aspas foram traduzidos do inglês para o português pelo autor da resenha. 

Pesquisa, inovação, pós-graduação e ensino superior no Brasil

Estou compartilhando, para críticas e comentários, a versão preliminar de um trabalho sobre o tema acima, disponível aqui.

Este trabalho teve por objetivo obter uma visão abrangente das áreas de pesquisa, inovação, educação superior e pós-graduação no Brasil, com ênfase em uma análise mais detalhada dos conteúdos das teses e dissertações de doutorado e mestrado. O uso do termo “sistema” para descrever este conjunto pode dar a impressão equivocada de que ele obedece a uma lógica racional e coerente, que teria por objetivo desenvolver os recursos humanos do país em suas diversas dimensões. O que se observa, no entanto, é que cada um destes componentes se desenvolveu e funciona segundo uma lógica própria e não necessariamente coincidente. A pesquisa mais significativa está concentrada em um segmento do sistema universitário e em alguns institutos isolados, as despesas públicas em ciência, tecnologia e inovação não estão associadas, maioritariamente, à pesquisa e inovação enquanto tais, e a formação de doutores e mestres só em parte converge com a formação de pesquisadores.  Embora não seja uma conclusão surpreendente, ela traz implicações de políticas públicas importantes que deixam de existir quando se desconsidera a pluralidade de funções de cada um destes setores.

Este artigo é produto do projeto “Pesquisa em Pesquisa e Inovação: indicadores, métodos e evidências de impacto”, realizado pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo  – FAPESP (Processo FAPESP 2021/15091-8).

Em defesa das ciências

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2022)

No calor da campanha eleitoral, poucos tiveram tempo para registrar, no Brasil, a morte de Bruno Latour, um dos fundadores da Sociologia da Ciência, em 9 de outubro. Nos últimos anos, Latour se dedicou ao tema das mudanças climáticas, tratando de entender e explicar a enorme dificuldade que a humanidade tem de lidar com o problema[1]. De um lado, o Intergovernmental Panel on Climate Change, grupo das Nações Unidas que reúne os cientistas que trabalham com o tema, publica dados e projeções cada vez mais dramáticos sobe o avanço do aquecimento global e seus impactos; de outro lado estão desde os que dizem, como Donald Trump, que o problema não existe até os que reconhecem que algo pode estar acontecendo, mas é um problema distante, e querem resolver primeiro de quem é a culpa e quem vai pagar a conta.

O que Latour e outros sociólogos da ciência mostraram, quase meio século atrás, é que a ciência e sentido comum não são maneiras opostas de ver as coisas, uma baseada em evidências e provas, e outra em opiniões e impressões, mas maneiras semelhantes pelas quais as pessoas constroem consensos sobre o mundo em que vivem[2]. A ideia de que a ciência é feita de consensos, e não de fatos que se sustentam por si mesmos, deixou muitos cientistas indignados, achando que, se fosse assim, então verdades e ilusões seriam a mesma coisa, dependendo dos interesses de cada um.

Latour respondeu a isso mostrando que os consensos não se constroem somente entre pessoas, mas também com coisas, e dependem de grandes redes de pessoas, organizações, objetos e seres vivos para se consolidar[3]. Desde a Grécia antiga astrônomos, observando o sol e a lua, suspeitavam de que a Terra era redonda, mas isso só se tornou um fato consolidado e aceito quando, 500 anos atrás, os portugueses começaram a navegar pelo mundo e mapear os continentes. Existem hoje grandes cadeias de consenso que conectam, na mesma rede, astrônomos, geólogos, empresas de transporte e os aviões e navios que levam cargas e passageiros de um lugar para outro. É assim, também, que pesquisadores em Química e Biologia se conectam com grandes laboratórios, hospitais, a indústria farmacêutica, as vacinas, os vírus, a farmácia da esquina e a nós, com nossas mazelas.

No entanto, quando se trata do clima, estas redes de consenso não se dão da mesma forma. Os pesquisadores constroem modelos de como a Terra vem se aquecendo, por causa sobretudo das emissões de carbono. Mas não há continuidade entre o aquecimento, com suas manifestações cada vez mais evidentes, como o derretimento das geleiras, a elevação do nível dos mares e a sucessão das secas e ciclones, e o comportamento da maioria dos governos e das pessoas. Mais amplamente, ainda que exista um consumo cada vez mais amplo de tecnologias derivadas das ciências, há uma tensão crescente entre o conhecimento produzido pelas universidades e centros de pesquisa e parte significativa da opinião pública, que muitas vezes ganha a forma de movimentos políticos e ideológicos que se voltam contra as ciências, as pessoas e as instituições que as produzem.

Latour, em seus livros mais recentes, tratou de explicar esta situação por uma teoria extremamente complexa[4], mas que tem, como parte importante, a crítica à arrogância dos próprios cientistas, que, ingenuamente, acreditam que, pelas posições que ocupam e pelas evidências que acumulam, deveriam ser seguidos por todos, sem se dar conta da necessidade de se mobilizar para construir estas cadeias e redes de consenso que se podem observar com as ciências e tecnologias mais estabelecidas.

Não se trata de algo novo. Por mais que os países ocidentais tenham avançado na construção de grandes sistemas educacionais centrados na difusão da ideia de sociedades baseadas no modo de trabalho e nos conhecimentos desenvolvidos pelas ciências, mesmo nesses países a maioria da população continuou vivendo no mundo de suas experiências de sentido comum, compartilhando sistemas de crença religiosa e cultural em ressonância com suas identidades. O que as ciências do clima trazem de diferente é que, para evitar a catástrofe que se anuncia, serão necessárias mudanças profundas e rápidas no modo de vida das pessoas e na sua relação predatória com a natureza, que são difíceis de aceitar.

Assim como na Ecologia, as ciências econômicas mostram que há situações que favorecem ou dificultam a criação da riqueza e a redução da pobreza e da desigualdade, que não dependem simplesmente do desejo de políticos, governantes e grupos de interesse. A mensagem que Bruno Latour nos deixa é de que, na Ecologia, como na Economia, estaremos nos suicidando se insistirmos em ignorar os processos globais que os pesquisadores nos estão revelando. Mas só superaremos isso se conseguirmos tratar estes fatos, e a própria ciência, não como conceitos abstratos e longínquos, mas como partes de redes complexas de interpretações e relacionamentos com a natureza, os recursos, as pessoas e modos de vida que precisam ser compreendidos e, se necessário, reconstruídos.


[1] Latour, Bruno.Down to Earth: Politics in the New Climatic Regime: John Wiley & Sons, 2018; Facing Gaia: Eight Lectures on the New Climatic Regime: John Wiley & Sons, 2017,

[2] Latour, Bruno and Steve Woolgar. 1986. Laboratory Life the Construction of Scientific Facts. Princeton, N.J: Princeton University Press, 1986; Latour, Bruno, Science in Action:  How to Follow Scientists and Engineers through Society. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987,

[3] Latour, Bruno. La Clef De Berlin; et autres leçons d’un amateur de sciences: La Découverte, 1993.

[4] Latour, Bruno. Reassembling the Social—an Introduction to Actor Network Theory: Oxford University Press, 2005; Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy: Harvard University Press, 2004.

Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?

A revista Estudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, acaba de publicar meu texto com o título acima, disponível neste link.

O artigo faz um retrospecto do desenvolvimento da pesquisa e da pós-graduação no Brasil, fazendo uso de dados de diversas fontes, e conclui que, ao desenvolver um sistema de ensino e pós-graduação como se fossem dois lados da mesma moeda, o Brasil acabou criando um sistema de pós-graduação estricto sensu demasiado acadêmico, e um sistema de pesquisa mais tolerante à baixa qualidade do que seria desejável. É um sistema concentrado em universidades públicas, muito mais voltado à produção de credenciais para o sistema educacional do que de inovações e profissionais qualificados para o mercado de trabalho mais amplo. Ao mesmo tempo, se criou no país um mercado não regulado de cursos de especialização e MBA, visível nas pesquisas domiciliares, que o Ministério da Educação não registra em suas estatísticas. O sistema de pós-graduação regulado é altamente subsidiado, com cursos gratuitos e bolsas de estudo que beneficiam cerca de metade dos alunos, embora, em termos comparativos, eles tenham níveis de renda familiar e expectativas de rendas futuras bem superiores aos das pessoas com títulos universitários de graduação. Seria recomendável aproximar os programas de mestrado regulados do padrão dos mestrados em outros países, dedicados sobretudo à qualificação profissional, e concentrar os recursos de bolsa de estudos e financiamento de pesquisas nos centros e programas promissores e de excelência, utilizando critérios de qualidade e relevância mais estritos dos que têm predominado até aqui.

Pesquisa e pós-graduação para os novos tempos

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de fevereiro de 2022)

A partir de 2023, se tivermos um governo minimamente razoável, vai ser necessário recuperar e recompor o sistema federal de pós-graduação e pesquisa, hoje tão dilapidado. O primeiro passo é reconhecer que, desde que foi criado nas décadas de 1960 e 1970, ao lado de suas virtudes, este sistema vem acumulando uma série de deformações que precisam ser enfrentadas. O segundo é colocar à frente das principais agências – Ministério de Ciência e Tecnologia, CAPES, CNPq, FINEP – lideranças que entendam o que deve ser feito e tenham a necessária reputação e legitimidade entre seus pares para convocá-los para este trabalho. O terceiro é recompor os orçamentos destas instituições, pelo menos nos níveis de dez anos atrás.

Que deformações são essas? Meio século atrás, o número de instituições de pesquisa no país podia ser contado nos dedos, e o número de pesquisadores, em algumas centenas. Poucas pessoas chegavam à educação superior, e não existiam cursos de pós-graduação. A reforma universitária de 1968 procurou trazer a pesquisa para as universidades federais, criando cursos de pós-graduação e exigindo que os professores tivessem títulos de doutor e contratos de tempo integral. Nos anos 70 a FINEP, com recursos dos Planos Nacionais de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, começou a criar centros de pesquisa e, junto com a CAPES e o CNPq, a dar bolsas para quem quisesse e tivesse condições de fazer cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior.  Fazia sentido.

Hoje, dependendo de como se conta, temos cerca de 200 mil pesquisadores e mais de 6 mil cursos de pós-graduação regulados pela CAPES, com 140 mil estudantes de doutorado e 200 mil de mestrado.  Além disto, existem cerca de um milhão de estudantes em cursos de pós-graduação “lato sensu”, pouco ou nada regulados, como os MBAs e cursos de especialização. O IBGE registra a existência de 477 mil doutores no país, um quarto dos quais vinculados  aos programas de pós-graduação das universidades. 

Fazer pós-graduação pode significar coisas muito diferentes para diferentes pessoas. Para muitos, é uma maneira de garantir um bom lugar no mercado de trabalho, como profissional especializado. Para outros, é uma maneira de obter um título para subir na carreira universitária, sobretudo em universidades públicas. E para outros, uma minoria, é uma porta de entrada para uma carreira de pesquisador, seja em universidades ou em institutos públicos e privados.  Não são coisas excludentes, é possível ter os três objetivos ao mesmo tempo, mas na prática nem todos que se especializam ensinam, e nem todos que se especializam e ensinam fazem pesquisa. 

Se ser estudante de nível superior no Brasil é um privilégio, ser estudante de pós-graduação é um privilégio maior ainda. A renda familiar per-capita dos estudantes nível médio em 2021 era de 960 reais; dos estudantes de nível superior, 1.800 reais; e dos estudantes de pós-graduação, mais de 4 mil reais. Entre os que só ficam no nível superior depois de formados, a renda média chega a 2.900; para quem tem especialização, a 4.700; e para quem tem mestrado e doutorado, entre 6.500 e 8 mil reais por mês. Considerando estes números, o tamanho que o sistema de pós-graduação e pesquisa atingiu, e os diferentes objetivos das pessoas que entram neste sistema, será que a ideia de que todos precisam ser igualmente subsidiados ainda se justifica?

Claramente não. Com tanta gente, mesmo na melhor das condições, não haverá recursos para financiar bem a pesquisa e a pós-graduação de excelência. Uma bolsa de doutorado da CAPES ou CNPq hoje é de cerca de 2 mil reais, um terço da renda per capita familiar média dos estudantes, insuficiente para que alguém se sustente em uma grande cidade. A pesquisa científica de excelência no Brasil é concentrada em poucas universidades e departamentos, mas todos os professores do sistema federal, pesquisem ou não, ganham a mesma coisa, o que significa que ganham relativamente mal. Faria mais sentido que os profissionais bem-sucedidos que fazem mestrados e doutorados para subir no mercado de trabalho pagassem seus cursos, como já fazem com as especializações. As universidades deveriam ter carreiras separadas para professores pesquisadores de tempo integral e professores que se dedicam ao ensino, com contratos de tempo parcial e sem que sejam obrigados a passar por doutorados de pesquisa que não são de seu interesse; e alunos de doutorado poderiam trabalhar como auxiliares de ensino ou pesquisa enquanto estudam. Com isto haveria recursos para que os investimentos em pesquisa sejam substancialmente aumentados e concentrados nas pessoas e programas mais promissores, de melhor qualidade e que realmente necessitem.

São mudanças profundas que afetam a regulação e o financiamento do setor, e não esgotam a agenda, que precisa ainda incluir os temas da relevância, da eficiência, da internacionalização e da superação das barreiras que ainda separam a pesquisa da pesquisa pública e empresarial.  Mas seria um bom recomeço.

A idade dos doutores no Brasil e USA

Na postagem anterior eu fiz uma comparação entre a distribuição das idades de formatura dos doutores nos Estados Unidos, obtida no site Statista, com a idade dos alunos de doutorado no Brasil, usando para estes a informação obtida pela Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Continua do IBGE (PNAD). O que se viu é que no Brasil as pessoas tendem a fazer o doutorado muito tarde, e não, como nos Estados Unidos, no início de suas carreiras.

Havia no entanto dois problemas com esta comparação. O primeiro é que o número de alunos de doutorado que aparecem na amostra do IBGE é muito pequeno – 190, em uma amostra de 320 mil, o que significa que a margem de erro é muito grande. O segundo é que não é possível separar os que estão estudando dos que estão se formando.

Por sorte, os dados da Plataforma Sucupira da CAPES para 2020 têm esta informação detalhada, e refiz a tabela trocando os dados da PNAD por estes. No novo gráfico, a proporção de pessoas mais velhas nos doutorados brasileiros é menor, mas a tendência geral é a mesma. Já fiz a correção na postagem anterior, e reproduzo o texto revisto aqui:

“A comparação da distribuição de idades entre os titulados nos Estados Unidos e no Brasil, pela informaçã0 da CAPES, no gráfico acima, mostra com clareza a situação. Nos Estados Unidos, 44,7% dos doutores se formam com menos de 30 anos, e, no Brasil, 27,8%. Na outra ponta, nos Estados Unidos 12% dos doutorandos têm 40 anos ou mais, e no Brasil, 30,4%”.

Reconectando com a diáspora

O tema do novo número da Revista de Educación Superior em América Latina, disponível na Internet, é o da necessidade de os países da região se reconectarem com os cientistas que ajudaram a formar e que hoje vivem nos Estados Unidos e outros países desenvolvidos. É um problema antigo que se repete em muitas partes: os países oferecem educação superior gratuita para seus melhores estudantes, dão bolsas de estudo para que completem seus doutorados no exterior, e eles não voltam.

Na década de 70 coordenei a parte brasileira de um estudo internacional sobre o tema, e o que constatamos foi que, apesar do clima de repressão política que havia no país, e de inúmeros cientistas que tiveram que se exilar naqueles anos, os brasileiros que iam estudar exterior, ao contrário do que ocorria por exemplo na Argentina, em geral voltavam. A explicação era simples: o sistema universitário e de pesquisa brasileiro estava começando a se expandir, e bons empregos não faltavam para quem voltasse e não estivesse na mira da polícia política.

Esta situação continuou até a década de 2010, quando começou a se inverter. Hoje, basta conversar com qualquer jovem em idade universitária para ver quantos gostariam ou estão ativamente empenhados em ir estudar ou trabalhar exterior, sem perspectivas de volta. É uma consequência direta da estagnação econômica e da crise política que se instalou em meados da década passada e parece não ter fim, mas também da maneira pela qual nosso sistema de pós-graduação e pesquisa evoluiu.

No passado, jovens talentosos não tinham dificuldade em conseguir uma bolsa de doutorado para o exterior, e muitas vezes já saiam empregados, mantendo os salários e ocupando logo posições de liderança quando voltavam. Mas hoje, as universidades públicas pararam de crescer, só contratam mediante concursos que nem sempre existem, e só para posições iniciais de carreira; e existem muito poucas posições de pesquisa no setor privado.

O Brasil continua formando muitos doutores, mas os doutorados são, em grande parte, um mecanismo de titulação para pessoas mais velhas já empregadas, e menos um sistema de formação e recrutamento de novos talentos. É muito difícil para um jovem doutor, formado no Brasil e no exterior, conseguir uma posição de trabalho atraente. Existem bolsas de fixação, mas elas raramente se transformam em empregos regulares. Em 2021, pela PNAD, havia 148 mil estudantes de doutorado no Brasil, com a idade média de 40 anos.  Destes, 46% eram funcionários públicos, e tinham a idade média de 42 anos (a idade média dos 30% que não trabalhavam era de 35 anos). São dados sujeitos a erro, porque baseados em uma amostra de 190 pessoas com este nível de educação. Mas os dados da CAPES de 2020, os mais recentes, obtidos diretamente das instituições, eram 145.360 – número bem próximo – dos quais 20.075 titulados naquele ano.

A comparação da distribuição de idades entre os titulados nos Estados Unidos e no Brasil, pela informaçã0 da CAPES, no gráfico acima, mostra com clareza a situação. Nos Estados Unidos, 44,7% dos doutores se formam com menos de 30 anos, e, no Brasil, 27,8%. Na outra ponta, nos Estados Unidos 12% dos doutorandos têm 40 anos ou mais, e no Brasil, 30,4%. Dado este quadro, a expectativa é que o Brasil passe a ter uma diáspora cada vez maior de técnicos e cientistas, tal como já ocorre com os demais países da América Latina.

No mundo, China e Índia são, de longe, os países com as maiores diásporas de técnicos e cientistas, e são também exemplos dos benefícios que podem advir de um esforço ativo de reconectar os países com suas diásporas. Os que se foram não necessariamente voltam, mas podem atuar como fontes importantes de contatos, conhecimentos e parcerias com os que ficam. Foi assim que a Índia se transformou em uma grande potência na área de computação, e a China tem investido muito em se reconectar e, se possível, trazer de volta cientistas chineses formados no exterior.  Claro que, para isto, precisa haver, no país, condições políticas, econômicas e espaço institucional para que o trabalho técnico e científico se consolide e se expanda.

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