Lançamento de “Falso mineiro: memórias da política, educação e sociedade”

História em Construção

Texto de João Luiz Sampaio publicado em O Estado de São Paulo, 12 de março de 2021

Em novo livro, Simon Schwartzman articula memórias pessoais e a busca por novos caminhos para o Brasil

Uma mensagem levou Simon Schwartzman até a Polônia. A remetente, Vera Ejlenberg, realizava pesquisas sobre o rabino Chaim Radzyner, e buscava informações. Schwartzman reconheceu o nome do bisavô de sua mãe. E, em meados de 2019, partiu para a Europa, onde participou de um encontro por conta dos 75 anos da destruição do gueto da cidade de Lodz.

“Eu tinha poucas informações sobre a história da família de minha mãe. Ela dizia que todos haviam morrido durante a guerra. A viagem me colocou em contato com outros lados dessa história. E com um lado que não é o meu único, mas que com certeza é importante na minha trajetória”, conta o sociólogo e cientista político.

Não apenas isso. “Estar ali reviveu a presença da guerra, do Holocausto, da resistência. Não era nada que eu não soubesse, mas foi uma experiência forte, de impacto muito grande.” E, de volta ao Brasil, Schwartzman começou a trabalhar em um livro de memórias, Falso Mineiro: Memórias da Política, Ciência, Educação e Sociedade, que será lançado na quarta-feira, dia 17, com uma live que vai reunir, além do autor, Pedro Malan e Helena Bomeny, com mediação de Roberto Feith, editor do selo História Real, da Editora Intrínseca.

É com o relato da viagem a Lodz que Schwartzman, colunista do Estadão, abre sua narrativa. Mas a lembrança pessoal convive no livro com a preocupação em discutir temas da história brasileira. “O objetivo foi ir além das memórias pessoais, ou seja, utilizar a trajetória pessoal para discutir questões atuais”, explica o autor, que as define no início da obra: política e autoritarismo; modernidade e democracia; conhecimento, ciência e tecnologia; ciência e ideologia; educação e diversidade; sociedade e economia.

São temas presentes desde cedo em sua trajetória profissional. Formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Schwartzman fez seu mestrado na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, no Chile. E, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, o doutorado. Deu aulas em instituições como a USP e na Universidade de Columbia, entre muitas outras.

Ele se envolveu em diversos episódios da história brasileira. Foi preso e interrogado durante 40 dias em 1964 pela ditadura militar, que não sabia bem que acusações impor contra ele – e resolveu exilar-se na Noruega, seguindo depois para a Argentina. A carreira pedagógica e voltada à pesquisa, a certa altura, o levou também a ocupar posições como a de presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. E, ao longo de todo esse tempo, produziu obras fundamentais para a compreensão do País, a começar por Bases do Autoritarismo Brasileiro, livro que nasce de sua tese de doutorado.


Nele, como o próprio Schwartzman explica, buscava mostrar como “o sistema político não era mero instrumento dos interesses dos ricos e poderosos, tendo uma dinâmica própria que precisava ser mais bem entendida”. “A espinha dorsal de meu livro era a de que no Brasil coexistiam duas formas de dominação: uma de tipo patrimonial, herdada da Coroa portuguesa e que nunca dependeu de poderes feudais para existir, consolidando-se na capital do País, o Rio de Janeiro; e outra, de tipo mais contratual, originada da parte mais dinâmica e autônoma da economia, baseada sobretudo em São Paulo. Daí o fato de uma das teses mais controvertidas e questionadas do livro ser a de que, no Brasil, o centro do poder econômico sempre teve uma posição relativamente subordinada, e por isso conflituosa, com o centro político.”


Não é pouco mérito o fato de que, em Falso Mineiro, a memória dos trabalhos acadêmicos e pesquisas realizadas e a lembrança de episódios pessoais sejam narradas com a mesma clareza e sabor. “Eu aprendi com o tempo que, se você não entende algo ao ler, a culpa é de quem escreveu. Há temas complexos, sem dúvida, e textos de caráter mais técnico, mas se você não tem clareza normalmente é porque as ideias não estão claras”, diz. E o livro, nessa combinação de narrativas, torna-se não apenas o registro de uma memória individual, mas da tentativa de criação de uma ideia de país.


A live de lançamento do livro terá como tema “Populismo vs. Ciência: o desafio da construção de políticas públicas eficazes”. É um assunto do qual ela trata bastante ao longo de Falso Mineiro. Por exemplo, ao definir a importância da separação entre atividade científica e atividade política. “Na faculdade, em Belo Horizonte, nossa preocupação era como sair do atraso, buscar caminhos distintos foi uma motivação de toda a minha geração que, claro, seguiu orientações diferentes. No ambiente estudantil, conhecimento e militância eram a mesma coisa. Mas, com o tempo, aprendi que a política condiciona e limita a capacidade de atuar de forma independente.”

Para ele, não se trata de falta de engajamento, mas de outra definição para o termo. “Eu me engajei muito, briguei pelos temas que acreditava serem importantes, eu me envolvi com eles. Mas sempre mantendo uma independência, sem servir a conveniências políticas.”


Reflexões como essa se tornam importantes em especial no momento em que vivemos. “É uma situação anômala, de um governo anti-intelectual. Há um ataque contra a educação, a cultura, a democracia, e isso dificulta a discussão nessas áreas. Porque elas precisam ser discutidas, são problemáticas. Não concordo com a ideia de que antes tudo funcionava bem. Mas a discussão sempre girou em torno de como melhorar esses aspectos e não em torno do próprio questionamento de sua existência.”


Para Schwartzman, há uma nova geração interessante na ciência brasileira. Mas é preciso pensar em novos caminhos, em especial no que diz respeito à “fuga de cérebros”. “Houve um período de expansão na ciência acadêmica. As universidades públicas cresceram e, com isso, muitas posições e cargos foram criados. Um jovem brasileiro, após ir para o exterior, com bolsas como Capes e CNPq, voltava e encontrava posições. Mas a ciência acabou ficando muito fechada no mundo acadêmico e, depois de o sistema crescer, já não consegue absorver todos os profissionais. A questão hoje é pensar sobre como fazer ciência de maior qualidade e mais efetiva, menos voltada para si mesma. E como vincular a ela questões mais práticas, algo que envolve tanto a iniciativa privada quanto o governo”, explica.

De Volta ao Futuro

(publicado em O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 2020)

A nova versão do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores – Future-se, publicada no início de janeiro pela Casa Civil como projeto de lei e colocado em consulta pública, é um grande avanço em relação à versão anterior, de julho, divulgada pelo Ministério da Educação. Essencialmente, o projeto prevê a criação de um fundo patrimonial para apoiar atividades de inovação, empreendedorismo e internacionalização das universidades e institutos federais, permite que as universidades criem e administrem os próprios fundos, e introduz vários mecanismos modernos para a execução de projetos, pela criação ou associação das universidades com fundações de apoio e organizações sociais, contratos de gestão por resultados entre as universidades e a União e a criação de um comitê gestor do programa formado por representantes das universidades e dos Ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Economia. Nesta versão, fica claro que a autonomia das universidades fica preservada, e que os recursos do programa são adicionais, e não substituem os recursos orçamentários regulares.

O ano de 2019 foi especialmente ruim para a educação brasileira, com o Ministério da Educação se perdendo em disputas ideológicas que só servem para desviar a atenção, deixando de lado questões centrais como a implementação da reforma do ensino médio e da educação profissional, a reformulação do ENEM, a renovação do FUNDEB, a revisão do sistema de avaliação da educação superior, a política de formação de professores, o combate ao analfabetismo funcional, e tantas outras.  Em contraste, o projeto do Future-se mostra que uma equipe tecnicamente competente, ouvindo e dialogando com diferentes setores de dentro e fora da comunidade universitária, tem condições de avançar, da mesma forma que outras equipes vêm avançando nas áreas da economia e da infraestrutura.

Isto não significa que o projeto Future-se seja perfeito, e o processo de discussão pública que agora se renova serve não somente para que ele se aperfeiçoe, mas também para que ele seja melhor entendido e ganhe legitimidade nas diversas áreas – universitária, científica e tecnológica, empresarial e governamental – em que deve atuar. Existem questões que precisam aprofundadas, como o relacionamento do programa com a CAPES, e um certo fetiche que me parece ingênuo com a internacionalização, que não deveria ser um fim em si mesmo, mas o resultado natural de uma ciência e tecnologia de padrão efetivamente internacional. Outras questões hão de surgir da leitura atenta da proposta.

Sem tirar o mérito do projeto, é importante lembrar sempre que a pesquisa, a inovação e o empreendedorismo são somente uma parte pequena do sistema federal da educação superior, que, por sua fez, é também uma parte pequena da educação superior brasileira. Os dados recentes sobre publicações científicas elaborados pela Universidade de Leiden mostram que 42% da produção científica brasileira de qualidade internacional provém das três universidades paulistas, e metade da produção das federais vêm de apenas cinco universidades – URFJ, UFRGS, UFMG, UNIFESP, UFSC – sendo que só 23 das centenas de instituições de ensino superior no país aparecem nos dados. E, pelo censo da Educação Superior de 2018, dos 8.4 milhões de estudantes de nível superior no país, só 1.3 milhões, menos de 16%, estavam em matriculados em instituições federais. 

Em outras palavras, a maior parte das universidades brasileiras, públicas ou privadas, não fazem ou fazem muito pouco de inovação, empreendedorismo e internacionalização, mas fazem outra coisa muito importante, que é formar milhões de pessoas para as diferentes profissões. Alguns conceitos introduzidos pelo Future-se, como os contratos de gestão, autonomia gerencial e avaliação por resultados, deveriam ser aplicados às universidades como um todo, para a avaliação e acompanhamento do ensino, e, mais amplamente, para alinhar os orçamentos anuais com os resultados obtidos, e não com os custos históricos. 

Por outro lado, se for possível efetivamente criar um fundo patrimonial significativo para o apoio à inovação e ao empreendedorismo – e ainda não está claro se existirão recursos para isto – não há por que excluir do programa as universidades estaduais e particulares. A responsabilidade do Ministério da Educação para com a educação superior brasileira não se limita às instituições federais, e é importante não confundir a administração da rede própria com as políticas de interesse geral para o país.

Não é por acaso que seja justamente na ponta de cima do sistema que as coisas aparentemente comecem a andar. Esta tem sido a prática brasileira desde sempre – cuidar das instituições de elite, e não conseguir lidar com as questões que afetam e interessam à grande maioria da população. Temos a melhor pós-graduação e pesquisa universitária da América Latina, mas uma graduação muito desigual, e um dos piores sistemas escolares. É uma ilusão achar que um pequeno conjunto de instituições inovadoras possa, com o tempo, melhorar o resto, que funciona com outras lógicas.  A ideia de que todo o ensino superior brasileiro convergiria para o modelo da universidade de pesquisa, que vem da reforma de 1968, ainda não foi abandonada de vez, embora todos saibam que é um mito. Sem políticas específicas para os cursos de graduação, o mais provável é que as universidades vocacionadas para a pesquisa e a pós-graduação se distanciem cada vez mais do resto, ou, simplesmente, acabem refluindo para a vala comum. É preciso aproveitar a experiência do Future-se para lidar também, com competência técnica, ideias inovadoras e diálogo, com os outros grandes problemas que a educação brasileira até agora não tem conseguido enfrentar.

O programa Future-se e a Educação Superior Brasileira

A convite do Instituto de Valorização da Educação e da Pesquisa do Estado de São Paulo, um grupo de professores e pesquisadores preparou um documento que tem por objetivo contribuir para a discussão provocada pelo Programa Future-se, recentemente apresentado pelo Ministério da Educação. O Programa  pretende estabelecer novas formas de gestão e instituir novas fontes de financiamento para as atividades de pesquisa, inovação e internacionalização das Universidades Federais, criando mecanismos que, se bem implantados, teriam impacto sobre a educação superior brasileira como um todo, e que poderiam também, em princípio, ser adotados pelas redes estaduais e inclusive pelas instituições privadas. Os autores são Hélio Dias, Roberto Leal Lobo e Silva Filho, Simon Schwartzman, Paulo Henrique de Mello Sant’Ana, Dante Pinheiro Martinelli, Cláudio Rodrigues, Júlio Francisco Blumetti Facó, Oswaldo Massambani, José Carlos e Souza Junior e Carlos Rivera Ferreira. Este texto é uma síntese dos pontos principais do documento. O texto completo, de 16 páginas, está disponível aqui.

O novo modelo de gestão

A ideia central da proposta é transferir a gestão das atividades de pesquisa, inovação e internacionalização das universidades para organizações sociais de direito privado, que seriam coordenadas nacionalmente por um comitê gestor, e teriam acesso a um fundo ou fundos de financiamento no valor estimado de cerca de 100 bilhões de reais.

Sobre gestão, a questão mais imediata que se coloca é quanto ao alcance do papel das organizações sociais. O projeto de lei dá a entender que o alcance é muito amplo, podendo significar que as universidades, na prática, terceirizariam sua gestão para as OS, embora o projeto diga que algumas das funções das universidades serão geridas diretamente pelas OS, e outras apoiadas. É possível pensar aqui em dois cenários. O primeiro é que as universidades continuariam gerindo normalmente suas atividades de ensino de graduação e pós-graduação, ficando as organizações sociais na administração da parte de pesquisa, inovação e internacionalização. Diferentemente das atuais fundações de apoio, que se limitam a fazer a gestão administrativa e financeira dos projetos que lhes são submetidos pelos docentes, as organizações sociais teriam a efetiva liderança das atividades de pesquisa e inovação das instituições. Este papel seria mais acentuado no segundo cenário, que parece corresponder mais ao espírito do programa, em que as universidades terceirizariam todas as suas funções para estas organizações sociais, tal como indicado nos artigos 3 e 4 do projeto. Este segundo cenário traz a dúvida sobre qual seria o papel das atuais instâncias de governança das universidades – reitor, vice-reitorias, pró-reitorias, conselhos, chefias de departamentos, coordenadores de programas, etc. – e das organizações sociais. 

Ao excluir a comunidade acadêmica e científica da gestão das universidades, na hipótese mais extrema de terceirização da gestão, as universidades renunciariam à sua autonomia acadêmica e científica, e com isto suas funções centrais de liderança na produção e transmissão de conhecimentos ficariam grandemente prejudicadas. Se o objetivo do projeto é ir além das funções das fundações de apoio já existentes, faz mais sentido avançar em um projeto de reforma mais profunda das instituições universitárias governamentais, dando-lhes uma personalidade jurídica própria e restabelecendo os princípios constitucionais de autonomia financeira, patrimonial e acadêmica,  introduzindo formas de governança modernas e clarificando as regras de relacionamento entre o governo, como financiador principal, e as universidades. 

Pesquisa e inovação

Sobre pesquisa e inovação, o documento lembra que  no mundo de hoje, da educação universitária de massas e das pesquisas complexas e de alta tecnologia, a união entre ensino e pesquisa é muito mais a exceção do que a regra. A pesquisa tradicional, baseada na leitura e discussão de textos clássicos, como nas humanidades, ou observações da natureza e análises laboratoriais, realizada por estudantes de pós-graduação sob a orientação de seus professores, continua existindo, mas, cada vez mais, a pesquisa de ponta requer  grandes investimentos, laboratórios complexos  e pesquisadores com formação especializada, enquanto que a educação superior  propriamente dita, que envolve milhões de estudantes, tende a ser dada em instituições de ensino nas quais a pesquisa de ponta praticamente não existe. 

A  pesquisa universitária, nas universidades mais bem-sucedidas, tende a ser uma combinação de temas acadêmicos, de livre escolha de seus professores, e temas mais práticos, feitos geralmente em parceria com instituições públicas e privadas. A distinção entre o que é “pesquisa básica”, “pesquisa aplicada” e “inovação” não é nada clara, sendo dada, sobretudo, pelas fontes de financiamento dos projetos e pelo destino dos resultados das pesquisas, se publicados livremente ou apropriados para fins comerciais ou militares. Tipicamente, grande parte do financiamento dados às pesquisas universitárias no mundo todo vem de fontes públicas, mas uma parte menor dos projetos têm financiamento privado ou são direcionados a objetivos práticos bem definidos. O termo “inovação”, utilizado para se referir à pesquisa que resulta em resultados práticos e mensuráveis, tende a ocorrer sobretudo em empresas que operam nas tecnologias de ponta, internamente ou em parcerias com universidades, e seus resultados ficam protegidos por patentes ou outras regras de sigilo. O desenvolvimento de um sistema nacional avançado de inovação pode se beneficiar da participação mais ativa das universidades, mas depende, sobretudo, do aumento da produtividade e competitividade da economia, como já ocorre no Brasil no setor agropecuário, mas ainda pouco na área industrial e de serviços.

O programa Future-se, ao se concentrar no apoio à pesquisa e à inovação, pode, se bem implementado, trazer recursos adicionais e reorientar parte da pesquisa desenvolvida nestes programas para fins mais práticos e aplicados. É importante lembrar, no entanto, que as razões pelas quais as pesquisas aplicadas se desenvolveram pouco no Brasil não se devem somente ao que ocorre no interior das universidades e das instituições de pesquisa, mas também, ou sobretudo, pela baixa demanda por pesquisa avançada por parte do próprio governo e do sistema produtivo, às voltas com um sistema tributário e uma legislação trabalhista paralisantes, associados a um mercado consumidor em geral pouco exigente.

Internacionalização

Sobre internacionalização, os autores dizem que ela não pode ser vista como um fim em si mesmo, e sim como um mecanismo para enriquecer a qualidade e a relevância do ensino e da pesquisa das universidades. Internacionalizar é, entre outras atitudes, deixar de olhar a composição de quadros acadêmicos e discentes exclusivamente no país, mas considerar o mundo como seu universo de busca e colaboração. Em muitas áreas de pesquisa, a publicação de artigos científicos em revistas de alto padrão e circulação internacional é um bom indicador de qualidade. Em áreas mais aplicadas, como nas engenharias, meio ambiente e ciências sociais aplicadas, pode ser mais importante desenvolver trabalhos relevantes para o contexto nacional e que circulem nos ambientes especializados e em língua portuguesa. A grande maioria das universidades federais, embora não tenham condições de desenvolver atividades de pesquisa e inovação de nível internacional, podem desempenhar papel importante desenvolvendo recursos humanos e estabelecendo parcerias com empresas locais, inclusive pelo compartilhamento de suas infraestruturas laboratoriais – alias já previsto na Emenda Constitucional nº 85 de 2015. 

Financiamento

Sobre financiamento, observa-se que projeto prevê a constituição de um fundo formado por recursos de diferentes fontes, inclusive os imóveis das IFES e os resultados de sua comercialização, receitas de projetos de pesquisa, doações e investimentos, que seriam destinados às universidades por mecanismos competitivos. A estimativa do Ministério da Educação é que este consiga atingir o montante de cerca de 100 bilhões de reais, comparado com o orçamento anual das universidades federais de cerca de 60 bilhões, dos quais aproximadamente 90% destinados a salários e aposentadorias. Não há estimativa de qual seria o montante deste recurso que estaria disponível para a aplicação anualmente, mas de qualquer maneira seria muito significativo, dadas as restrições nos recursos de custeio que as universidades vêm sofrendo recentemente.

Uma dúvida importante, a este respeito, é se este Fundo limitaria a capacidade das universidades de levantar e administrar diretamente seus próprios recursos. Hoje, mesmo com as limitações existentes, as universidades, departamentos de pesquisa e mesmo professores competem diretamente por recursos da CAPES, CNPq e outras agências, assim como em outras fontes nacionais e internacionais, recursos estes que são administrados diretamente pelos professores, departamentos e universidades, conforme o caso. Esta liberdade de competir, obter e administrar recursos deve ser aumentada e regulada, e não constrangida por uma situação em que estes recursos viessem a ser administrados por um fundo nacional com regras próprias.

Uma outra dúvida é se a expectativa que tem sido anunciada sobre o montante de recursos que seriam arrecadados pelo Fundo é realista. Em relação aos imóveis, as universidades ocupam muitas vezes imóveis que não são plenamente utilizados, mas, dados os baixos investimentos havidos nas universidades federais nos últimos anos, que não acompanharam a expansão de matrículas, a situação dos imóveis existentes é frequentemente precária, e é improvável que eles possam resultar em um valor aproximado de 50 bilhões de reais, como tem sido dito.

Finalmente, não  está claro que a área econômica do governo, que trabalha no sentido de aumentar a arrecadação e reduzir os incentivos fiscais, concorde com uma política generosa de isenções fiscais e investimentos públicos em um fundo desta natureza, a não ser que seja em troca de cortes substanciais nos orçamentos regulares das universidades, o que significaria, para as instituições, trocar recursos estáveis por recursos instáveis e imprevisíveis.

Conclusões

Na conclusão, observa-se que o programa é um encaminhamento potencialmente interessante, mas que precisa ser mais amadurecido. É importante aumentar a capacidade de gestão administrativa e financeira das universidades e do próprio Ministério da Educação, fortalecer a qualidade e a relevância da pesquisa e estimular a inovação e a internacionalização.  Mas, invés de criar uma estrutura paralela de organizações sociais, deve ser possível criar uma legislação própria para as universidades, instituindo contratos de gestão e sistemas de avaliação que tomem em conta os projetos institucionais de cada universidade. A curto prazo, consolidar e aperfeiçoar as atuais fundações de apoio às universidades federais seria uma solução ao nosso ver bem mais simples, que não retiraria a autonomia universitária e cumpriria os propósitos da flexibilidade administrativa. O governo poderia transferir imóveis para as fundações para criar os fundos de investimentos sem maiores problemas, ou pelo menos não maiores do que passá-los para uma organização social ou para um Fundo Nacional. 

Mais amplamente, embora seja uma questão controversa, é importante reabrir a questão da gratuidade inclusive para estudantes brasileiros.  O sistema de crédito educativo associado à renda futura, adotado nas universidades públicas da Austrália e adotado por vários outros países, e que está sendo implementado no Fundo de Investimento Estudantil para o setor privado (FIES), poderia eventualmente ser utilizado também no setor público, fazendo com que todos os estudantes sejam admitidos por mérito, independentemente de recursos, ficando no entanto responsáveis por ressarcir seus custos, em todo ou parte, como proporção de sua renda futura a partir de um determinado nível de renda.

Finalmente, embora o sistema federal seja prioritário para o Ministério da Educação, e os temas da pesquisa, inovação e internacionalização sejam relevantes, o MEC é também responsável pela qualidade do ensino não só em suas instituições como também de todo o sistema comunitário e privado, que atende hoje a 75% da matrícula, além das redes estaduais, com destaque para as universidades paulistas que estão entre as principais instituições de pesquisa do país. A modernização da educação superior brasileira, de seus mecanismos de apoio, de controle de qualidade e financiamento, não pode se limitar ao sistema federal e às poucas universidades que poderiam se beneficiar do atual programa, mas devem ter em vista todo o conjunto.

A pesquisa universitária no Brasil e no mundo

A Universidade de Leiden, na Holanda, acaba de publicar um ranking internacional de universidades do ponto de vista de sua produção de pesquisas, baseado em uma seleção de artigos das principais revistas (“core publications”, em inglês e de âmbito internacional) da Web of Science, com uma série de indicadores sobre a produção absoluta e relativa que nos permitem ver, entre outras coisas, como a pesquisa universitária se distribui no Brasil, e qual a posição brasileira no contexto internacional. Os detalhes e dados completos estão disponíveis aqui.

A Universidade de São Paulo aparece na 8ª posição no ranking em número de publicações no período 2014-2017. A segunda na América Latina é a Universidade Autônoma do México, na posição 108, com 7.308 publicações no período. A Universidade de Buenos Aires, com 3.434 publicações, aparece na posição 355, e a Universidade do Chile, com 2.951, na posição 425. No Brasil, a segunda universidade é a UNESP, seguida da Unicamp, e depois a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a primeira das federais. 

15 universidades com maior produção de pesquisa no mundo, 2014-2017
Universidades brasileiras com mais de mil trabalhos em “core publications”

Estes dados, que só incluem instituições com pelo menos mil publicações no período, confirmam que a Universidade de São Paulo, como principal universidade de pesquisa no país, ocupa um lugar significativo internacionalmente, e mostram também como a pesquisa universitária brasileira está concentrada em um número pequeno de instituições, o que é sabido por outras fontes.

Chama a atenção, entre os indicadores elaborados por Leiden, o número de citações por artigo, o número de artigos entre os 5% mais citados, e a proporção de artigos escritos em colaboração com autores do setor produtivo. O número de citações por artigo da USP, de 4,1, é o mais baixo entre as 15 universidades mais produtivas no mundo. A percentagem de artigos entre os “top 5” na USP é 2.8%, também a mais baixa entre as grandes. E proporção de trabalhos feitos em colaboração com a indústria é a menor, e próxima de duas universidades chinesas.

Comparando com outras universidades brasileiras, a USP só perde para a UNICAMP, e por pouco, em termos de citações por artigo, e para a Universidade Estadual de Maringá em termos de artigos nos “top 5”.  Em termos de colaboração com a indústria, a Universidade brasileira que mais se destaca é a UFRJ, seguida pela Universidade Federal Fluminense.

Estes dados confirmam o que sabemos, de um modo geral, sobre a pesquisa universitaria brasileira: ela está altamente concentrada em poucas instituições; sua qualidade é relativamente baixa, e está bastante isolada do sistema produtivo.

Os problemas das universidades e da pesquisa

Quem acompanha meus textos sobre a educação brasileira sabe que sou muito crítico do sistema que montamos, tanto da educação básica quanto da superior, e também da pesquisa. Mas, assim como os problemas da educação básica não são o marxismo e as ideologias de gênero, os problemas do ensino superior não são a filosofia, as ciências sociais e, de novo, o marxismo.

O problema central do ensino superior é, em poucas palavras, a baixa qualidade da grande maioria dos cursos e sua baixa eficiência, que se manifesta no grande número de estudantes que começam a estudar e nunca terminam, dos que terminam com qualificações rudimentares, e, nas universidades públicas, os custos elevados causados sobretudo pelo grande número de professores contratados com dedicação exclusiva como se fossem pesquisadores mas que de fato não o são.  A pesquisa, em alguns casos excelente, é em sua maioria espalhada de forma rasa em um grande número de centros e departamentos desprovidos de equipamentos e de massa crítica que produzem resultados que nem têm impacto acadêmico significativo nem utilidade prática.

A discussão sobre se a pesquisa universitária deve ser puramente acadêmica, guiada pelo interesse e livre escolha dos professores, ou aplicada, voltada a resultados práticos para a economia e a sociedade, é antiga e superada: os bons sistemas de pesquisa fazem as duas coisas. Cientistas e acadêmicos não gostam quando governos começam a discutir prioridades na área científica, argumentando que todas as áreas são importantes, que não se pode discriminar uma área em benefício de outras, etc.; mas de fato, em todos os países, os governos e suas agências de pesquisa estabelecem prioridades, porque os recursos são escassos, e não existe um mercado perfeito que regule os investimentos  públicos em pesquisa. 

No passado, por inspiração vinda sobretudo da União Soviética, muitos países tentaram planejar quantos engenheiros, médicos, advogados, dentistas, etc., suas universidades deveriam formar, o que se chamava de “manpower planning”.  Nunca deu certo, e hoje não se faz mais isto: não dá para prever quantos serão necessários em cada profissão daqui a 5 ou 10 anos, muitas pessoas mudam de  profissão ao longo da vida e a escolha de carreiras depende muito de outros fatores, como a condição com que os estudantes chegam ao nível superior. Há uma ideia, bastante difundida, de que formamos muitos “bacharéis” e poucos engenheiros, mas, na verdade, o mercado de trabalho para pessoas com nível superior no Brasil, como na grande maioria dos países, é formado sobretudo por atividades de serviço – administração pública, defesa e seguridade social (40.3%), educação (12%) e atividades financeiras (6%), ficando a indústria de transformação com somente 7% dos formados (dados da RAIS de 2017). É verdade que as novas tecnologias requerem engenheiros altamente qualificados, mas, mesmo em países mais desenvolvidos, seu número é relativamente menor do que o de serviços, e, com o encolhimento relativo do setor industrial, é muito comum que muitos engenheiros acabem ficando desempregados, ou trabalhando em outros campos.

Na pesquisa ocorre fenômeno semelhante. Os grandes problemas que afligem o Brasil de hoje são o desemprego, a violência, a má qualidade da educação, a desorganização urbana, as disfuncionalidades do sistema legal e penal, a marginalização social e a estagnação econômica – todos temas centrais da pesquisa social, realizada por economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, juristas e outros. É possível se perguntar se a pesquisa social que se produz no Brasil consegue realmente lidar bem com estes temas. Existem altos e baixos, e muitas vezes a boa pesquisa não consegue influenciar as decisões de quem está em posições de governo. Mesmo assim, é possível argumentar que, se é para estabelecer prioridades para o investimento em pesquisa, seria mais importante investir em pesquisa social de qualidade do que em pesquisa nas ciências naturais, que tende a ser mais internacionalizada, e aonde nossas desvantagens comparativas são maiores.

Não estou dizendo que tenha que ser assim.  A pesquisa precisa ser apoiada por critérios que combinem qualidade, relevância e custo. Pesquisa de alta qualidade em matemática e filosofia são baratas, contribuem direta e indiretamente para as demais áreas de conhecimento, e não há razão para limitá-las. É preciso pensar bem para investir em pesquisa que requer grandes investimentos e aonde nossa chance de produzir maior impacto é menor. A pesquisa aplicada, geralmente muito mais cara, precisa estar associada a possibilidades efetivas de desenvolvimento e comercialização. Sistemas modernos e sofisticados de política científica e tecnológica combinam avaliações de mérito, impacto e custos, com a participação indispensável de cientistas e representantes do setor produtivo e agências públicas responsáveis por questões como saúde, pobreza, ordem social, defesa, desenvolvimento econômico e regional e meio ambiente. É neste sentido que as políticas de apoio ao ensino superior e à pesquisa devem se desenvolver.

Crônicas da Crise: livros disponíveis na Amazon


Volume 1: Política, governo, sociedade e pobreza: Edição Kindle  / Livro impresso

Volume 2: Educação geral, média e profissional:  Edição Kindle / Livro impresso

Volume 3 – Educação Superior, ações afirmativas, pós-graduação, ciência e tecnologia:  Edição Kindle / Livro Impresso

Estes três livros, disponíveis em formato eletrônico e em papel na Amazon,  reúnem pequenos textos publicados na Internet ou em jornais e revistas entre 2004, quando as políticas sociais e educacionais do governo Lula começam a ganhar forma, e 2017, em meio a uma crise política, social e econômica profunda, em que todos se indagam, ou deveriam se indagar, sobre o que deu errado na experiência desse período, e que alternativas temos pela frente.  O crescimento da economia, a expansão dos gastos sociais, o vigor dos debates e das campanhas eleitorais, tudo isto criou a esperança, para muitos, de que o país finalmente estaria mudando de patamar, deixando de ser um país subdesenvolvido marcado pela pobreza, baixa produtividade econômica e instabilidade política, e se transformando em uma moderna democracia menos desigual e com uma população cada vez mais educada e produtiva.  A educação, crescendo em todos os níveis e envolvendo recursos cada vez maiores, seria o grande instrumento para este salto de qualidade.

Eu também compartia a esperança de que isto seria possível, mas, desde o início, vi com muitas reservas as políticas sociais e educacionais que foram adotadas pelos sucessivos governos de Lula e Dilma, não só pelos equívocos que procurava identificar, mas sobretudo pelo contexto político mais amplo em que estas políticas se davam, e que não permitiam que elas fossem diferentes do que foram. Participei, nesses anos, de diversos debates públicos sobre bolsa família, reforma universitária, política de cotas e a reforma do ensino médio, entre outros, sempre com a sensação de que, independentemente da qualidade dos argumentos, que não eram só meus, as decisões seguiam uma outra lógica na qual a pertinência das ideias não tinha muito lugar. Pode ser que a crise atual crie a oportunidade para construir uma nova lógica de implementação de políticas públicas, onde a evidência dos dados, o acúmulo de conhecimentos da literatura especializada e a força dos argumentos tenham mais espaço.

Ao longo destes anos, editei e publiquei vários livros e artigos, quase todos disponíveis no Internet Archive, aonde procuro tratar destes diferentes temas com mais detalhe e profundidade, mas que, pela sua natureza, não têm como transmitir o calor do debate destes textos menores. Para facilitar a leitura, dividi os textos em artigos em três volumes, o primeiro lidando com questões de política, governo, sociedade e pobreza; o segundo com questões de educação geral, média e profissional; e o terceiro com questões de educação superior, ações afirmativas, pós-graduação e ciência e tecnologia. Dentro de cada um, os textos estão agrupados por temas semelhantes, sem respeitar muito a ordem cronológica em que foram escritos.

Os pós-doutorados e as prioridades da pesquisa

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Agora que o Brasil forma quase vinte mil doutores por ano (Ph.Ds., não confundir com médicos), parece que o título já não vale tanto quanto antigamente, e surgiu um novo “grau” acadêmico aparentemente mais alto, mas que só existe entre nós, o de pós-doutor.  No resto do mundo, os “postdoc” são jovens doutores recém-formados em trabalhos temporários de assistentes de ensino ou pesquisa, enquanto buscam um emprego regular. No Brasil, o “pós-doutor” é geralmente um professor universitário com doutorado que passou depois um período em alguma universidade no exterior, geralmente com uma bolsa de estudos do governo.

Muitas vezes recebo projetos de bolsas de pós-doutorado da CAPES e do CNPq para avaliar, e minha experiência é que eles podem ser divididos em três grupos. Em uma ponta, raros, estão projetos interessantes e inovadores de trabalho em parceria com pesquisadores qualificados de uma universidade reconhecida no exterior. No meio estão projetos interessantes e de qualidade, mas não existe colaboração efetiva com pesquisadores estrangeiros. Nestes casos, há sempre uma carta mais ou menos formal de um professor ou chefe de departamento de outro país dizendo que teria muito prazer em hospedar por um tempo com o professor fulano de tal, etc., mas nada além disto. E na outra ponta estão projetos de pouca qualidade e relevância, mas sempre  também com uma carta formal de aceitação (que afinal não custa nada, já que é o governo brasileiro que paga a conta)

É relativamente fácil avaliar os pedidos extremos – recomendar os primeiros e não os últimos. Fica mais difícil avaliar os do meio: o projeto é bom e interessante, o candidato tem um bom currículo, mas ele precisa realmente passar um ano em Paris, Londres ou Boston, por exemplo, às custas do contribuinte brasileiro?

A única maneira de decidir isto seria comparar cada projeto com outros semelhantes, sabendo de quantos recursos dispomos para este tipo de auxílio. Imagino que as agências de financiamento façam isto de algum modo, mas eu, como parecerista, nunca sou informado sobre quantas propostas existem e o destino das que ajudei a avaliar. Quais foram os critérios usados? Será que aquele projeto horrível que rejeitei acabou sendo aprovado, porque outros pareceristas gostaram? Será que aquele projeto excelente que eu recomendei foi recusado? Porque minha área de pesquisa tem menos (ou mais) recursos do que a do departamento vizinho?

O sistema de avaliação por pares, adotado há anos pela CAPES, CNPq, FAPESP e outras agências de financiamento de pesquisa, é muito melhor do que seria se os projetos fossem avaliados por funcionários que entendem menos dos conteúdos do que os candidatos. Mas está longe de ser infalível, por duas razões principais. A primeira é que os membros dos comités assessores são indicados por professores e pesquisadores da área, e por isto podem tender a aprovar projetos que representam os diferentes interesses de suas áreas ou regiões, e não necessariamente os melhores. Este problema é especialmente sério em áreas mais controversas e cientificamente menos consolidadas, como as ciências sociais, do que nas ciências exatas. E segundo, porque é difícil dividir de maneira adequada os recursos entre as diversas áreas de pesquisa – cada uma, naturalmente, tende a puxar a brasa para sua sardinha. Estes problemas se tornam mais agudos em situações como a de agora, em que os recursos para a pesquisa estão se tornando mais escassos, e deveriam ser utilizados da melhor maneira possível.

Acredito que está na hora de mexer nisto. Minha primeira sugestão seria deixar claro que o “pós-doutorado” não é um título acadêmico ao qual todos os professores universitários devam aspirar, e que bolsas de estágios avançados no exterior só deveriam ser concedidas se houver, além da qualidade e relevância, cooperação efetiva entre o pesquisador brasileiro e o de outra instituição, o que ocorre, por exemplo, quando a instituição no exterior contribui para cobrir os custos do projeto. Nenhuma universidade no mundo outorga ou reconhece o título de “pós-doutorado”.

Segundo, as agências de financiamento precisam tornar mais transparentes, divulgando, para cada área do conhecimento, quantos pedidos receberam, quantos  e quais foram apoiados, e quantos recursos foram alocados para cada uma área, conforme quais critérios. E faz parte desta transparência informar aos avaliadores internos e externos o resultado final de cada avaliação da qual participaram. Isto vale para toda a área de apoio à pesquisa e pós-graduação, e não somente para os  pedidos de bolsas de pós-doutorado.

Finalmente, para evitar o corporativismo inerente à avaliação por pares, é necessário subir um degrau, submetendo os resultados gerais das políticas de apoio à pós-graduação e pesquisa, em conjunto e em cada área de pesquisa, a avaliações externas internacionais. O Brasil tem experiências deste tipo, que deveriam se tornar sistemáticas.

Já foi o tempo, se é que ele existiu um dia, em que as políticas de educação superior, ciência, tecnologia e inovação se limitavam a avaliar e financiar os bons projetos, tal como entendidos pelos colegas mais próximos. É necessário definir prioridades, não só dentro do setor de ciência e tecnologia, mas inclusive em relação a outras áreas de políticas públicas igualmente carentes de recursos, que precisam de evidências claras e específicas sobre a importância dos investimentos em pesquisa e formação de alto nível. Ninguém gosta de ter que definir prioridades, mas, sem isto, elas acabam se formando debaixo dos panos, e quase sempre na direção errada.

 

Uma avaliação do “Ciência Sem Fronteiras” no Canadá

bolsaLançado em 2012, o programa “Ciências sem Fronteiras” foi um projeto ambicioso de enviar cerca de 100 mil estudantes com bolsas de estudo para o exterior, com prioridade para alunos de cursos de graduação, para períodos de um ano ou menos. Quando o programa foi lançado, escrevi, com Claudio de Moura Castro, Hélio Barros e James Ito-Adler, uma análise bastante crítica do projeto, disponível aqui. O Canadá foi um dos países que mais receberam bolsistas do programa, e uma avaliação cuidadosa do projeto a partir da experiência canadense, em uma tese de mestrado da Universidade de Toronto de Julieta Antonella Grieco, acaba de ser publicada, e está disponível aqui.

Sem surpresa, a autora conclui o que já havíamos previsto.  Segundo ela, “To date no formal evaluation of the first phase of the CsF program has been published and the program has not been without criticism. Higher education scholars familiar with the context of Brazil have pointed to certain characteristics of the program that can jeopardize its success. Overwhelmingly, these experts mention issues with student selection and with the absence of a program evaluation process (Moura Castro, Barros, Ito-Adler, & Schwartzman, 2012; Stallivieri, 2015; Knobel, 2011). The findings of this study are consistent with the views of these experts and suggest that the program has not created instruments that ensure that all students are matched with an appropriate host institution that can offer relevant courses and placements for each student. Ultimately, this points to the conclusion that structural issues present an obstacle to the effectiveness of the program in promoting desired outcomes”.

Uma segunda fase do programa estava anunciada para 2015, mas, com a crise econômica, não se fala mais nisto.  Há males que vêm para o bem.

 

O Ataque às Fundações Universitárias

Fiquei chocado com o ataque generalizado às fundações universitárias feito por uma matéria conjunta dos principais jornais do país, entre os quais O Estado de São Paulo e O Globo. Entrevistado sobre isto por um repórter do Estado de São Paulo, lembrei que as fundações são um caminho encontrado pelas universidades para sair da camisa de força do serviço público que as mantêm congeladas e isoladas da sociedade, e que o correto seria transformar todas as universidades em fundações regidas pelo direito privado, e não acabar com a pouca flexibilidade que as fundações trazem. Tambem observei que as eventuais situações de abuso e falta de transparência poderiam ser facilmente controladas por uma supervisão e regras claras de transparência, mas é absurdo pensar que flexibilidade e corrupção são a mesma coisa, e que não há salvação fora da burocracia do serviço público, quando é exatamente o contrário.

O assunto, infelizmente, é antigo. Em 1988 houve também um ataque generalizado às fundações, e um decreto governamental que determinou sua extinção, mas prevaleceu o bom senso e foi cancelado. Reproduzo abaixo o artigo que escrevi a respeito, publicado no Jornal do Brasil em 1988.

As Fundações Universitárias (Jornal do Brasil, 9 de maio de 1988)

Ainda não se sabe se o governo federal vai realmente modificar o artigo 40 do decreto 95.904, do dia 7 passado, em que se davam 30 dias para que as universidades federais extinguissem cerca de 40 fundações por elas criadas como forma de sair da camisa de força que lhes dá sua condição de autarquia pública. Estas fundações são, tipicamente, entidades não lucrativas de direito privado, estabelecidas e controladas por universidades e escolas superiores, através das quais convênios de pesquisa são assinados, serviços de extensão e assistência técnica remunerados são feitos, e hospitais universitários são administrados. O Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras solicitou ao Ministro da Educação que intercedesse junto à Presidência para pelo menos prorrogar o prazo para 180 dias, para dar tempo a um exame mais aprofundado do problema, evitando, inclusive, a demissão de quase 7 mil profissionais da área de saúde, sem falar da inviabilização de um sem número de projetos de pesquisa hoje financiados pela FINEP, CNPq e outras instituições. Esta determinação veio no bojo da extinção da URP para servidores federais, e passou quase despercebida, não provocando, nem de longe, reação semelhante à que existe quanto à proibição temporária de contratação de novos professores pelas universidades federais, apesar de ser possivelmente muito mais grave.

A justificativa formal para a determinação é que estas fundações são ilegais, por terem sido estabelecidas por meros atos administrativos, e há um parecer do Tribunal de Contas da União sugerindo seja sua extinção, seja sua melhor regulamentação. Esta regulamentação é, efetivamente, necessária, já que fundações deste tipo podem ser, se mal utilizadas, uma porta aberta para o desvirtuamento das funções universitárias, e a apropriação, para uso privado, de bens públicos. Assim, em um exemplo fictício, os professores de uma faculdade de arquitetura poderiam, através de uma fundação deste tipo, vender serviços feitos durante suas horas de trabalho em regime de dedicação exclusiva, utilizando-se de equipamentos e materiais fornecidos pelo governo, e receber por isto muito mais do que colegas que não participam das fundações. Não só haveria, no caso, uma utilização indébita de recursos públicos para fins privados, como uma concorrência desleal da universidade com os escritórios privados de arquitetura, além de gerar o desinteresse dos professores pelas atividades regulares de ensino e de pesquisa para os quais, afinal, o governo lhes paga. A maneira de evitar que estes abusos ocorram é colocar as fundações sob supervisão acadêmica, administrativa e financeira direta dos departamentos, institutos ou universidades a que estejam vinculadas, estabelecendo regras para que seus trabalhos tenham um sentido acadêmico claro, para que o tempo dedicado e as remunerações adicionais dos professores obedeçam a normas definidas, e que haja uma efetiva transferência de recursos das fundações para o interior das universidades. Estas regras não podem ser gerais, mas devem ser estabelecidas pelas universidades em cada caso.

Existe um outro tipo de oposição às fundações, no entanto, que não se mostra de corpo inteiro, mas que talvez explique melhor a truculência do decreto presidencial (que não tem agido com igual determinação ante outros casos de uso privado de funções públicas) assim como a pouca grita que a medida está causando no próprio ambiente universitário, onde poucas vozes se uniram, até agora, ao protesto dos reitores.

Esta oposição surda às fundações vem do fato de que, na prática, muitas delas têm conseguido romper o monolitismo e o controle burocrático da vida das universidades federais, criando um espaço de liberdade, diferenciação e “insubordinação” que a burocracia não tolera, e que os setores menos competentes das universidades olham com inveja e desconfiança. Elas também são vistas, por muitos, como uma forma embrionária de privatização das universidades, já que são portas através das quais recursos não orçamentários podem ser obtidos, inclusive para a complementação de salários. Através de uma Fundação, por exemplo, um instituto de engenharia de alto nível pode estabelecer relações de cooperação com a indústria local, transferir de forma efetiva a tecnologia gerada por suas pesquisas, e dar formação atualizada a seus alunos; através de uma fundação pesquisadores competentes podem obter um financiamento para um grande projeto, que traga novos equipamentos, contrate assistentes técnicos e administrativos, proporcione estágios a estudantes, e assim por diante. As fundações dão lugar ao surgimento, nas universidades, de líderes empreendedores que localizam talentos, identificam fontes de financiamento, formulam projetos e fazem crescer seus institutos e departamentos As complementações salariais feitas pelas fundações permitem às universidades reter as pessoas mais qualificadas e que atuam nas profissões mais bem pagas (médicos, administradores, economistas, engenheiros), que de outra forma terminariam por abandoná-las pelo setor privado.

Aumentar os vínculos das universidades com o mundo que as rodeia, torná-las sensíveis às demandas da sociedade, dar liberdade e iniciativa a seus professores e pesquisadores, não são tarefas fáceis, e geram inevitáveis ambigüidades, distorções e conflitos de interesse que precisam ser examinados e resolvidos caso a caso a partir dos valores maiores do desenvolvimento do conhecimento e da capacitação científica e tecnológica do país. Acabar com as fundações por um fiat administrativo pode, sem dúvida, eliminar muitos abusos. Mas este ato vai, principalmente, acabar com o “abuso” dos setores mais dinâmicos da universidade federal brasileira de tentar se diferenciar e fazer valer sua competência e sua capacidade de iniciativa. O fim das fundações será mais uma vitória dos que trabalham, sem pensar muito no que fazem, pelo achatamento monolítico e centralizado das universidades federais, e mais um passo em seu plano inclinado de decadência. <

Publicar ou morrer

imagesNa medida em que aumenta a importância do conhecimento, em sua produção, transmissão e uso, também aumenta a preocupação com a maneira pela qual a produção de conhecimento e a educação são avaliados. Este tema foi objeto de matéria recente no Suplemento Sobre Cultura da revista Ciência Hoje, para o qual colaborei com uma nota que reproduzo abaixo.  Recentemente foi publicada uma importante “Declaração de São Francisco” sobre a avaliação da pesquisa, criticando o uso indiscriminado do chamado “fator de impacto” das revistas científicas como critério de avaliação, que pode ser assinada por pessoas que concordem com o seu teor. Para quem se interessar, publiquei também um artigo meses atrás sobre os usos e abusos  da avaliação  educacional no Brasil, que está disponível em inglês. Transcrevo abaixo a nota da revista Ciência Hoje e uma tradução do texto introdutório da Declaração de São Francisco (DORA),

Publicar ou perecer

A ideia de que cientistas e pesquisadores precisam ser avaliados por sua produtividade, e que essa produtividade se expressa em produtos tangíveis – artigos, patentes e outros – é correta. Não há dúvida de que ela coloca os pesquisadores sob tensão, mas isso é parte da vida. Não há nada de errado no ‘produtivismo’ – se esses profissionais querem ser financiados e sustentados pelo seu trabalho, não há de ser pelos seus belos olhos ou boas intenções. Eles precisam mostrar o que fazem.

Existem, no entanto, alguns riscos importantes que surgem sem•pre que se busca colocar essa ideia na prática. O primeiro é quando se toma uma tendência geral – uma correlação – como válida e aplicável a situações individuais. Dados mostram que os melhores pesquisadores publicam muito e são muito citados, mas podem existir aqueles com muitas publicações desinteressantes, e outros com poucas publicações e trabalhos, mas de grande impacto. A única maneira de lidar com isso é entender que o dado estatístico, o indicador, é apenas um dado, que precisa ser interpretado caso a caso pelos pares. Quando pesquisadores ou departamentos de pesquisa são avaliados exclusivamente por seus indicadores, muitas vezes por pessoas ou instituições que nem sequer entendem do conteúdo dos trabalhos, a chance de erros é muito grande.

O segundo problema, bastante geral nas avaliações, é quando o indicador passa a ser mais importante do que aquilo que ele deveria indicar. Se o que importa é o número de publicações e citações, e não o que está sendo publicado ou citado, isso abre a porta para manipular os indicadores – dividir um artigo em três; dar preferência a projetos de curto prazo, em detrimento de projetos de duração mais longa; aprender como escrever para agradar os editores das revistas, sem correr riscos; e combinar com os amigos citações cruzadas – eu cito você, você me cita, e nós dois subimos nos rankings.

O terceiro problema é o chamado ‘efeito Mateus’, descrito pelo sociólogo estadunidense Robert Merton (1910-2003) anos atrás para descrever a concentração da pesquisa nos principais centros e ao redor dos nomes mais famosos (“ao que tem, se lhe dará e terá em abundância, mas ao que não tem será tirado até mesmo o que tem” – Mateus 13:2). Como os que mais têm trabalham e publicam em inglês nas revistas mais famosas dos países centrais, então mais vale colocar um artigo mais bem comportado junto a esses do que publicar um artigo mais brilhante e criativo em uma revista que ninguém importante vai ler ou comentar.

Existem outros riscos, como os de valorizar mais as publicações acadêmicas do que os trabalhos aplicados, e a pesquisa pública em detrimento da pesquisa industrial, ou supor que áreas de estudo e pesquisa como as ciências sociais, as humanidades e as engenharias deveriam ter o mesmo padrão de publicações do que as ciências naturais.

Nada disso significa que os indicadores de produtividade não sejam importantes, mas sim que eles não podem ser aplicados de forma burocrática e automática. Em última análise, indicadores de publicações e citações não são dados ‘objetivos’, mas agregações das avaliações subjetivas feitas pelos editores das revistas e pelos leitores dos artigos. Essa subjetividade não pode ser ignorada, mas precisa ser ponderada pelo juízo crítico dos pares que têm a responsabilidade de decidir sobre a qualidade e o futuro profissional de seus colegas em cada caso. É como um médico que precisa usar de sua experiência e do conhecimento do paciente para avaliar o resultado de um exame de laboratório; uma responsabilidade que não pode ser transferida a indicadores de nenhum tipo, por melhores que sejam.

Declaração de São Francisco (introdução)

Os produtos da pesquisa científica são muitos e variados, e incluem artigos de pesquisa relatando novos conhecimentos, dados , reagentes e software; propriedade intelectual; e jovens cientistas altamente treinados. Agências de fomento, instituições que empregam cientistas e próprios cientistas, todos têm desejo e necessidade de avaliar a qualidade e o impacto de produtos científicos. É, portanto, imperativo que a produção científica seja medida com precisão e avaliada com cuidado. O Fator de Impacto de Periódicos é frequentemente utilizado como o principal parâmetro com o qual se compara a produção científica de indivíduos e instituições. O fator de impacto, calculado pela Thomson Reuters, foi originalmente criado como uma ferramenta para ajudar os bibliotecários a identificar revistas para comprar, e não como uma medida da qualidade científica da pesquisa em um artigo. Com isso em mente, é fundamental entender que o fator de impacto tem  inúmeras deficiências bem documentadas que afetam seu uso como ferramenta para a avaliação da pesquisa. Estes limitações incluem: A)  as distribuições de citações dentro das revistas são altamente enviesadas; B) a propriedades do fator de impacto são específicas de cada campo, sendo compostos de diferentes tipos de artigos, incluindo trabalhos de pesquisa originais e resenhas da literatura; C) Os fatores de impacto podem ser manipulados (“gamed”) pelas práticas editoriais das revistas; e D) dados utilizados para calcular os fatores de impacto não são transparentes nem abertamente disponíveis para o público.

Varias recomendações são apresentadas para melhorar a maneira pela qual os resultados da pesquisa devem ser avaliados. Outros produtos além de artigos de pesquisa terão importância cada vez maior para a avaliação da eficácia da pesquisa no futuro, mas os artigos de pesquisa avaliados por pares continuarão sendo centrais nestas avaliações. Nossas recomendações, portanto, se referem principalmente às práticas relacionadas aos artigos de pesquisa publicados em revistas com revisão por pares, mas podem e devem ser ampliadas para reconhecer a importância de produtos adicionais tais como bancos de dados. Estes recomendações são destinadas a agências de fomento, instituições acadêmicas, revistas, organizações que fornecem métricas e pesquisadores individuais.

Alguns temas centrais permeiam todas estas recomendações:

– A necessidade de eliminar o uso de métricas baseadas em revistas, como o fator de impacto, em decisões de financiamento,  nomeação e promoção;
– A necessidade de avaliar a pesquisa em seus próprios méritos e não em função do revista em que a pesquisa foi publicada, e
– a necessidade de aproveitar as oportunidades oferecidas pela publicação on-line (inclusive ao reduzir os limites desnecessários sobre o número de palavras, ilustrações e referências nos artigos, e explorar novos indicadores de importância e impacto).

Reconhecemos que muitas agências de fomento, instituições, editores e pesquisadores já estão incentivando melhores práticas de avaliação da pesquisa. Tais medidas estão começando a aumentar o impulso em prol de abordagens mais sofisticadas e significativas que agora podem ser ser desenvolvidas e adotadas por todos os setores interessados.

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