Transcrevo abaixo, por sua relevância, o texto de Hernan Chaimovich, bioquímico e centista brasileiro de primeira linha, cujo currículo pode ser visto aqui:
Paradoxos da Universidade de São Paulo
O contribuinte do Estado de São Paulo pode se orgulhar da Universidade de São Paulo (USP), e hoje, ao mesmo tempo, se perguntar por que esta conquista ímpar parece estar caminhando rumo à barbárie.
O retorno social que a USP oferece ao país, graças ao investimento feito pelo Estado de São Paulo, é admirável, podendo ser evidenciada pela quantidade, bem como pela qualidade, de seus produtos: conhecimento, formação de pessoal e serviços à comunidade. Sem pretender ser exaustivo, e para não cansar o leitor, me limito a selecionar alguns indicadores que justificam o uso da palavra “admirável”. No ano passado, a USP formou sete mil seiscentos e sessenta e cinco profissionais, três mil quinhentos e setenta e sete Mestres e dois mil quatrocentos e trinta e nove Doutores. O número de produções bibliográficas de docentes e alunos da USP, no mesmo ano, foi de trinta e dois mil oitocentos e dezesseis, trinta por cento destas computados em indexadores internacionais. Somente um dos Hospitais da USP, o Hospital Universitário da Cidade de São Paulo, realizou um milhão seiscentos e sessenta e dois mil cento e setenta e nove atendimentos médicos e odontológicos em 2012. Essa sumária descrição mostra o tamanho da produção em ensino, pesquisa e extensão da USP.
Os produtos de uma universidade pública devem ser também avaliados por critérios qualitativos. Usando diversos indicadores de qualidade, nacionais e internacionais, pode-se afirmar que a excelência também caracteriza a USP. Além de ser considerada a melhor Universidade brasileira e latino americana, a USP forma os profissionais mais procurados pelo mercado de trabalho. A USP ocupa o lugar mais destacado da América Latina nos rankings internacionais que classificam universidades. Autores da USP produziram em 2012 mais de um quinto de toda a produção científica brasileira. Esta contribuição da USP ao conhecimento, ideias que produzem novas ideias, foi usada no Brasil e no mundo. Museus, orquestras, análise crítica à violência e intervenções nos ciclos que a determinam, celeiro de novas empresas de alta tecnologia, formadora de talentos e lideranças, enfim, uma lista interminável de contribuições sociais e econômicas de destaque também caracteriza essa universidade. Estes são apenas alguns dos indicadores que mostram que essa Instituição pode ser considerada uma Universidade de classe mundial, rara distinção para um país latino-americano.
A USP, ao mesmo tempo, enfrenta uma situação paradoxal. Paralisada em parte por greves e invasões violentas, e enfrentando uma sucessão, a USP parece tomar rumos que não a consolidam como referência. As velocidades de ascensão e queda de Instituições podem ser distintas, e muitas vezes a queda é bem mais rápida. Uma universidade como a USP dificilmente desaparecerá, porém o desrespeito ao ethos de uma Universidade de classe mundial pode transformá-la em apenas mais uma instituição de ensino superior no cenário brasileiro, que não justifica o significativo aporte de recursos públicos ao seu funcionamento.
O paradoxo não é trivial, e vale apontar alguns de seus determinantes. Decisões judiciais, por exemplo, consideram que dois meses de paralisação das atividades da antiga (?) reitoria podem ser necessários para discutir as pautas de reivindicação de estudantes que ocupam prédios públicos. Essa decisão judicial permite recurso. Causa espanto que docentes de uma universidade de pesquisa parecem aceitar em silêncio essa situação sem se insurgir. Numa universidade que pretende alcançar posição global de destaque, a reivindicação de eleições diretas e paritárias para todas as posições de liderança é, no mínimo, provinciana, característica única na América Latina. No mundo das universidades de pesquisa, a liderança se conquista sim, mas não pelo discurso populista, o voto universal, pela associação a partidos políticos ou a corporações. Liderança, nas instituições acadêmicas de fronteira, está sempre relacionada com academia, excelência, visão contemporânea e inserção nacional e internacional. A relação entre liderança acadêmica e poder é pouco discutida e constitui um tabu quase religioso.
Em nome de uma mal definida democracia na universidade, os grupos que dominam as corporações de docentes, funcionários e estudantes da USP recusam as comparações entre as categorias que garantem a governança de Instituições de classe mundial, sustentadas em lideranças acadêmicas, e as que podem permitir que universidades públicas como a USP se transformem em instrumentos político-partidários. No entanto, não se deveria gastar esforços e tempo com a discussão sobre o modelo de eleição do reitor, mas sim enfrentar as questões que tornam a USP uma universidade de referência. Temas relevantes passam por considerar, por exemplo, quais as prioridades para o desenvolvimento da USP nos próximos anos e como equilibrar a natural expectativa do contribuinte por mais e mais acessíveis vagas com os valores acadêmicos que devem nortear uma universidade que pretende ser uma das melhores do mundo. Como a pesquisa pode contribuir para a qualidade da educação que a USP oferece, sem que haja antagonismo entre o ensino e a pesquisa? Como manter o equilíbrio entre as atividades de reflexão crítica de uma universidade de classe mundial com a criação de conhecimento fundamental que nos faz mais livres, e a transferência de saber que produz impactos sociais e econômicos na sociedade? Questões dessa natureza devem ser enfrentadas para evitar que a USP desapareça do conjunto das Universidades mais destacadas do mundo. Se isso acontecer perderia o Brasil, a America Latina e o mundo.
Hernan Chaimovich Professor Titular Aposentado da USP Professor Senior do Instituto de Química da USP.