Ao pé da lareira

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de novembro, 2024)

Quando Gustavo Capanema quis fundar a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcelo Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lúcio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O Edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro.  Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a  frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papeis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da California em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.

A ideia de que universidades são feitas por comunidades de pessoas, e só depois por leis e edifícios, foi o fio condutor de uma série de estudos  em que participei ao longo dos anos. Claro, elas precisam de prédios, equipamentos, pessoal administrativo,  e atender às expectativas dos estudantes, da sociedade e das profissões. Mas seu principal capital, que faz a diferença, é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual e da competência técnica, que desenvolvem e transmitem a seus alunos e a toda sociedade. Se isto é verdade, então os professores universitários formariam uma espécie de profissão das profissões, uma comunidade cuja identidade central seriam estes valores, que transcenderiam outras identidades institucionais, profissionais e mesmo nacionais.

Existe, no entanto, outra visão, a de que o ideal das profissões autônomas é um mito, que elas na prática são ou acabam sendo controladas pelas grandes burocracias públicas e privadas. Os profissionais autônomos de transformariam em empregados, e as comunidades profissionais, em sindicatos de um proletariado letrado.  Quando, na década de 90, fizemos uma pesquisa sobre os professores universitários no Brasil, constatamos que havia, no país, um pequeno grupo de professores de alta formação, pesquisadores, que compartilhavam os valores de autonomia e liderança intelectual da comunidade acadêmica; um grupo bem maior, de formação intermediária, funcionários das universidades públicas, em que prevalecia a identidade corporativa e sindical; e um terceiro grupo fragmentado, sem identidade própria, trabalhando de forma precária para o mercado de ensino superior privado.

O que aconteceu com os professores universitários brasileiros desde então? Olhando os dados, algumas coisas chamam a atenção. Entre 2010 e 2023, o número de estudantes universitários passou de 6 para 10 milhões, mas o número de professores permaneceu praticamente o mesmo, cerca de 350 mil, metade no setor público, metade no privado. A razão é que o sistema público cresceu pouco, e o sistema privado aumentou sua eficiência pelo uso mais intensivo de seus professores, sobretudo através do ensino à distância. O número de alunos por professor no setor privado subiu de 22 para 40, enquanto, no setor público, permaneceu entre 10 e 12. Desapareceu, praticamente, a figura do professor horista no setor privado, substituído pelos contratos em tempo parcial.

Depois, os professores ficaram mais velhos e mais qualificados. Esta é a tendência geral, mas existem grandes diferenças por setor. No setor privado, a proporção de professores de 40 anos ou menos passou de 46% para 35%. Nas universidades federais, de 37% para 26%; e nas universidades paulistas, de 16% para 9%. A proporção de professores com doutorado passou de 56% para 75% no sistema federal, de 15% para 33% no sistema privado, e permaneceu acima de 95% no sistema paulista.

Ao mesmo tempo, a posição relativa dos professores universitários em termos renda piorou. Para demonstrar essa mudança, comparei três rendas médias: a das pessoas com educação superior em geral, a dos professores universitários do sistema privado e a dos professores do sistema público, todas em relação à renda média do país. A análise foi feita com dados de dois anos: 2012 e 2023.

Assim, tomando a renda média do país em cada ano como referência (igual a 100), em 2012, as pessoas com diploma universitário ganhavam, em média, 253% da renda nacional — mais do que duas vezes e meia a média do país. Professores universitários do setor privado recebiam 300%, e os do setor público, 400%. Já em 2023, essas proporções caíram para 202%, 268% e 357%, respectivamente, conforme os dados da PNAD.

Essa redução indica um enfraquecimento da vantagem salarial tanto para os portadores de diploma quanto, em maior medida, para os professores universitários.

Só com estes dados não dá para dizer quanto ainda persiste, entre eles, o modelo das comunidades profissionais autônomas, das corporações profissionais ou dos sindicatos. Mas temos indicações, por  outros lados, que o prestígio dos professores tem caído e sua autoridade, e da ciência que incorporam, contestada. No setor privado há um processo de profissionalização fragmentada que parece se consolidar: os professores trabalham mais, ganham menos, não têm estabilidade no trabalho,  e formam um “precariado” que não consegue se organizar para defender seus interesses. No setor público, com a maior qualificação, envelhecimento e a perda relativa de vantagens, podemos entender que prevaleça entre muitos uma atitude defensiva e de ressentimento, mais do que a de uma profissão autônoma e altiva. E mal temos lareiras para nos sentarmos a seu pé para conversar.

Recordistas mundiais

(Publicado em O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 2024)

O Censo da Educação Superior de 2023, publicado recentemente, confirma que somos recordistas mundiais em pelo menos duas coisas, a proporção de estudantes em instituições privadas, 80%, e em cursos à distância, metade. No setor público, somente 10% dos alunos estão em cursos à distância; no setor privado, 60%.  São ao todo cerca de 10 milhões de estudantes: 27% em cursos de negócios, administração e direito; 22% na área de saúde e bem-estar; e 17% na área de educação. Nas engenharias são 9%, na computação 7%, e, nas ciências naturais, 1.3%.

O Brasil não difere muito da maioria dos países, mas exagera. Em quase todo o mundo, também, são três as áreas com mais estudantes: administração (incluído economia, negócios e direito) saúde (incluindo medicina) e educação. A principal diferença do Brasil é o tamanho diminuto das áreas de ciências naturais e engenharias. Nos últimos anos, em quase toda parte, a educação superior privada cresceu, assim como a educação à distância. O setor privado cresceu porque o setor público não dá conta de atender toda a demanda, e a venda de serviços de  ensino se transformou em um bom negócio. Além disto, o setor privado conta geralmente com mais autonomia e capacidade empresarial para ir atrás de sua clientela.  O alunos das instituições públicas são em geral  jovens de origem social média ou alta que completam o ensino médio de qualidade e conseguem passar com boas notas nos processos seletivos. Para os mais velhos, geralmente mais pobres, que terminam o ensino médio com dificuldade e precisam trabalhar, a alternativa eram os cursos noturnos em instituições privadas. A pandemia mostrou que era possível dar estes mesmos conteúdos à distância a um menor custo, e isto se tornou irreversível. 

A principal explicação para nossos extremos é o elitismo do modelo adotado na reforma universitária de 1968, que perdura em suas linhas gerais. A reforma procurou trazer para o Brasil um modelo único de universidade de pesquisa vagamente inspirado na universidade alemã do início do século 19 e adotado por algumas universidades americanas, com professores doutores trabalhando em tempo integral, envolvidos em atividades de ensino e pesquisa e alunos bem qualificados e estudando também em tempo integral. É um modelo que custa caro e não tem como dar conta da crescente demanda por educação superior que só começaria no Brasil a partir da década 70, vinda de estudantes que chegam do ensino médio com formação menos rigorosa e precisando trabalhar. Os países que conseguiram lidar com esta transição foram o que os que mantiveram e até ampliaram a presença de suas instituições de elite, mas também investiram em outras modalidades de ensino profissional e técnico, já a partir do ensino médio. O Brasil insistiu em um modelo público único que se manteve imutável na forma, mas, ao se ampliar de maneira forçada, acabou se deteriorando em parte, criando grande desigualdade em seu interior e abrindo espaço para que o setor privado expandisse.

Por muitos anos, o governo federal tratou o setor privado como um problema, e não como parte da solução para sua incapacidade de ampliar e diversificar a oferta de educação. O sistema de avaliação criado em 2004 tinha como principal objetivo controlar o setor privado, o que nunca conseguiu. E os governos do PT,  supostamente contrários ao setor privado, ao se darem conta que só ele seria capaz de ampliar o acesso, passaram a subsidiá-lo através de dois mecanismos, as isenções fiscais do Prouni e o crédito estudantil garantido do FIES, fazendo com que ele se transformasse em um negócio cada vez mais vantajoso.

Os governos também fizeram um esforço de ampliar o setor público, através dos financiamentos do programa Reuni, e de democratizar o acesso através da política de cotas. Com a crise financeira a partir de 2015 e a rigidez burocrática e administrativa,  o setor público só conseguiu passar de 1.6 para 1.9 milhões de matrículas entre 2010 e 2020, enquanto o setor privado passava de 4,7 a 6,7 milhões. Com a política de cotas, a composição social do alunos no setor púbico se tornou mais equitativa, mas foi o setor privado que abriu mais oportunidades de estudo para pessoas vindas de condição social mais desfavorável.

E tem a questão, nunca enfrentada, da má qualidade e das altas taxas abandono. Entre todos que  entraram no ensino superior em 2019,  as taxas de desistência, em 2023, eram de 64% no ensino privado à distância, em um extremo, e 42% no presencial público no outro. Dos que se formam, metade não consegue trabalhar em atividades de nível superior. Cada vez há mais pessoas querendo estudar, cada vez mais os governos buscam subsidiar os estudos, mas não existe nenhum sistema que informe aos estudantes, aos futuros empregadores e aos próprios governos, em que instituições e áreas as pessoas têm mais chances de se qualificar a partir das condições trazem e fazer uso de seus conhecimentos. O sistema incha, mas fica do mesmo tamanho.

Cem novos institutos federais?

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de junho de 2024)

No final de março, o Ministério da Educação anunciou a criação de cem novos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Alguns jornais saudaram a iniciativa, dizendo que, finalmente, o governo estava dando atenção à educação técnica e profissional. Fiquei sem entender: como é que o governo federal, que mal consegue manter suas universidades e institutos funcionando, vai criar mais cem? E será que, criando, vai fazer diferença?   

Estes institutos foram criados em 2008, a partir de uma rede de Centros Federais de Educação Técnica de nível médio que existiam em vários Estados. Seus professores e funcionários foram equiparados aos das universidades federais, novos cargos foram criados, e, além de cursos técnicos de nível médio, eles passaram também a poder dar cursos superiores e de pós-graduação.   Hoje, são 39 institutos e dois que continuam como CEFETs. É difícil saber exatamente o que fazem, os dados são escassos e confusos, mas, pelas estatísticas do INEP, eles têm cerca de 230 mil alunos em cursos de graduação e 320 mil na educação média, matriculados em cerca de 600 locais diferentes, a grande maioria em cursos integrados com o ensino profissional. Além disto, têm cerca de 4 mil estudantes em cursos de pós-graduação, quase todos de mestrado. O projeto do MEC não é, na verdade, de criar cem institutos, mas cem novos locais para os cursos de ensino médio, o que poderia significar cerca de 50 mil matrículas adicionais.

Para entrar nestes cursos médios, é preciso passar por um processo seletivo, e as vantagens para os que conseguem são grandes. Eles estudam em tempo integral e os colegas são mais qualificados, criando um ambiente mais estimulante. Os professores também são mais qualificados, ganham mais do que os das redes estaduais, o número de alunos por professor é menor, e as instalações são melhores.  E, quando fazem o ENEM, os formados entram nas cotas de estudantes das redes públicas, ficando nos primeiros lugares. Esses cursos têm sido propostos como o modelo ideal para o ensino técnico médio no Brasil, mas os alunos, por serem selecionados e estudarem em escolas de qualidade,  tratam de ingressar em universidades em vez de se profissionalizarem como técnicos.

Para os cursos superiores, seria de se esperar que os alunos estivessem sobretudo em cursos  aplicados de curta duração(o que no Brasil se chama de “cursos tecnológicos”).  Isto ocorre, mas bem menos do que seria de se esperar: 26% comparado com 30% em cursos de formação de professores (licenciaturas) e 44% em cursos tradicionais de bacharelado. Das áreas de estudo, um terço está em educação, 44% em cursos de engenharia e computação, e os demais dispersos em outras áreas.  Estes institutos sofrem com uma praga conhecida que afeta o ensino profissional em muitas partes, a pressão para se tornarem o mais parecido possível com universidades, à custa das missões originais para as quais teriam sido criados.

O caso dos institutos é semelhante ao das universidades federais.  Começa-se com um modelo idealizado, caro e em pequena escala, e depois não se consegue expandir, seja pelas limitações do modelo, que se desvirtua, seja pela falta de recursos. Os institutos federais são uma gota d’água: cerca de 2 a 3% das matrículas, tanto do ensino médio quanto do ensino superior e tecnológico.  Daria para aumentar? Os Institutos Federais custaram, em 2022, cerca de 18 bilhões de reais, comparado com os 56 bilhões das demais 80 instituições superiores federais. A quase totalidade destes custos vai para pessoal, sobrando quase nada para investimentos e custeio.

 Nos cursos de graduação, partiu-se com a ideia de uma universidade pública, universal, gratuita e fundada na pesquisa. Hoje, quase 80% das matrículas do ensino superior estão no setor privado, e poucas universidades públicas conseguem manter atividades de pesquisa mais significativa. A educação superior tecnológica vem se expandindo, mas sobretudo no setor privado. Na pós-graduação, criou-se um sistema controlado  e subsidiado para formar mestres e doutores, mas a maioria de seus estudantes não têm interesse em fazer carreira  em pesquisa, as matrículas estão caindo, e a pós-graduação lato senso é muito maior, desregulada e não se sabe bem o que faz.

A questão central é qual o papel adequado para o governo federal e dos estados quando os gastos públicos não têm mais como expandir e as demandas e necessidades da sociedade vão muito além do que os governos podem proporcionar. A criação de 10 novos campi universitários no modelo tradicional, anunciada esta semana, assim como a restrições recentes aos cursos de educação à distância, mostra que o governo federal ainda não entendeu o problema. Melhorar o papel regulatório, estimular boas práticas, concentrar os recursos existentes em atividades estratégicas de relevância, qualidade e equidade, e estimular estados e municípios e o setor privado a canalizar melhor suas energias, parece fazer mais sentido do que insistir em, simplesmente, fazer mais do mesmo.

Estadão: Os cortes na FAPESP

(Transcrevo abaixo o editorial do jornal O Estado de São Paulo, “Notas & Informações”, 12 de maio de 2024)

” O governo paulista ensaia medidas para realocar recursos das instituições de pesquisa e ensino superior. No projeto da Lei Orçamentária Anual de 2025, primeiro o governo previu redistribuir uma parcela de recursos da USP, Unicamp e Unesp para outras instituições. Logo depois recuou. Mas o projeto prevê a possibilidade de uma redução de até 30% do orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Esforços para racionalizar e otimizar a dotação de recursos são legítimos. Mas não é assim que se faz, com tesouradas abruptas, sem articulação com as partes interessadas nem um planejamento de longo prazo. Tanto mais numa área a um tempo tão estratégica e tão vulnerável quanto a formação e pesquisa universitárias.

Em comparação ao resto do mundo, o sistema paulista está longe de ser ótimo, mas no Brasil ele é, em geral, o melhor. Há décadas USP, Unicamp e Unesp são as universidades brasileiras mais bem posicionadas em rankings internacionais, e o apoio da Fapesp impulsiona o Estado na vanguarda das pesquisas nacionais.

É possível melhorar? Sem dúvida. O sociólogo Simon Schwartzman, um dos pesquisadores sobre educação mais qualificados do País, há anos apresenta diagnósticos e propostas de modernização com base nas melhores práticas internacionais.

Em artigo no Estadão, Schwartzman demonstra como o sistema atual é falho tanto do ponto de vista da cobertura e equidade quanto, na outra ponta, na manutenção e garantia de excelência. O ensino estadual público é o mais qualificado, mas só atende 11% dos alunos da graduação. As políticas de ações afirmativas introduzem um fragmento diminuto de alunos vulneráveis nesse sistema de elite. O resto é obrigado a pagar por uma formação de qualidade duvidosa em universidades privadas. Assim, a ideia de investir em outras instituições acessíveis e eficientes não é impertinente. Ao mesmo tempo, o modelo do funcionalismo público vigente nas universidades públicas perpetua uma burocracia rígida que dificulta alocação mais ágil de recursos e mecanismos meritocráticos de incentivo, necessários à formação e pesquisa de alto nível.

Schwartzman sugere três aspectos cruciais para se atingir um sistema a um tempo mais equitativo e excelente: um plano diretor prevendo parcerias com outros níveis de governo e o setor privado; um mecanismo de elaboração de orçamentos plurianuais que dê previsibilidade de recursos básicos, mas também preveja alocações condicionadas a metas de desempenho; e o fortalecimento da autonomia universitária, sobretudo na flexibilidade do uso de recursos e modelos de contratação e remuneração de professores.

São medidas que podem otimizar os recursos públicos aplicados no sistema universitário, gerar novas fontes de receita e eventualmente abrir espaço para realocar recursos em áreas mais vulneráveis, como o Ensino Básico. Mas o caminho para elevar esse sistema de bom para ótimo exige planejamento e reformas. Realocações e cortes abruptos podem até economizar dinheiro no curto prazo, mas têm tudo para causar graves prejuízos no longo prazo.”

Vinculação de recursos e autonomia universitária em São Paulo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de maio de 2024)

Desde 1989 que o Estado de São Paulo vincula 9.57% de sua arrecadação do ICMs para suas três universidades, em uma proporção fixa de 5,02% para a USP, 2,34% para a Unesp e 2,19% para a Unicamp. Este ano, o governo do Estado tentou incluir outras instituições estaduais nesta conta, mas voltou atrás depois dos protestos dos reitores. Esta vinculação tem sido defendida como garantia da autonomia financeira contra a instabilidade e as interferências de políticos que afetam, por contraste, as universidades federais.

Muitos dados têm sido apresentados como prova de que a autonomia tem funcionado, como o aumento da produção científica, as posições da USP e Unicamp nos rankings internacionais e a qualidade profissional dos formados pelas principais faculdades. Mas é difícil saber se estes bons resultados se devem à vinculação financeira ou a outros fatores como a disponibilidade de recursos e a maneira pela qual professores e alunos são selecionados, entre os mais qualificados do Estado mais rico do país. E ao lado dos bons resultados, existem outros,  preocupantes, que sugerem que o sistema público paulista não pode continuar acomodado.

O dado mais evidente, que mereceria maior atenção, é a cobertura extremamente reduzida do setor público estadual. No Brasil como um todo, em 2022, 78% da matrícula no ensino superior estava em instituições privadas. No Estado de São Paulo, esta proporção sobe para 84.3%. O setor estadual público só atende a 11% dos alunos de graduação, sendo 120 mil nas três universidades, para uma matrícula total de 2.5 milhões no Estado. O setor federal, menos de 3%. Isto é o resultado de uma política deliberada, de manter um sistema público pequeno e elitista, deixando o setor privado lidar com o resto? Não parece, dada a preocupação dos últimos anos com as políticas de ação afirmativa. Não seria mais justo, socialmente, investir mais dinheiro público em instituições de mais fácil acesso e mais eficientes e baratas, como as do sistema Paula Souza, a Universidade Virtual e em parcerias, proporcionando formação mais prática, gratuita e de boa qualidade para mais gente? E como combinar isto com a manutenção de qualidade da pesquisa e da formação de alto nível dos cursos mais tradicionais?

Se o sistema atual falha do ponto de vista da cobertura e equidade, ele também tem problemas na outra ponta, de manutenção e garantia da excelência. O processo de concursos públicos para escolha de professores é formal, burocrático e dificulta que as universidades recrutem professores com perfis adequados para suas necessidades. A rigidez e padronização das carreiras e salários faz com que muitas áreas não consigam mais competir com o setor privado e instituições internacionais pelo talento que seria indispensável  para dar continuidade às pesquisas de ponta e a formação de alto nível de que o país necessita.

Nestas questões, tenho ouvido o argumento de que o ótimo é inimigo do bom, e que é melhor manter a rigidez orçamentária conquistada 35 anos atrás do que abrir o vespeiro de sua revisão anual.  Mas seria lamentável se conformar com a ideia de que instituições com tantas qualidades não deveriam buscar novos caminhos. A reforma tributária, com o fim do ICMS, de qualquer maneira vai forçar uma revisão, e é melhor, para as universidades, sair à frente com novas propostas do que ser atropeladas.

Um novo modelo para o sistema estadual deveria contemplar pelo menos três aspectos.  O primeiro é elaborar um plano diretor que  tome em conta os objetivos  de médio e longo prazo que o setor público deve ter e as parcerias que precisa estabelecer com outros níveis de governo e o setor privado para aumentar a cobertura, a qualidade e as vocações das diferentes instituições na formação profissional, formação para o magistério, pesquisa e cultura. Deve ser um documento conciso, construído em diálogo com diferentes setores, que estabeleça um consenso básico sobre o que o Estado deve fazer. Há anos que o conhecido sistema da California, com seus community colleges, universidades estaduais de ensino e a pós-graduação e pesquisa concentrados na Universidade da Califórnia,  tem sido citado como um modelo que o Estado poderia adotar, e ainda pode servir de inspiração. O segundo é criar um mecanismo regular de elaboração de orçamentos plurianuais  com participantes e processos definidos que possa garantir estabilidade de recursos e espaço para aperfeiçoamentos e mudanças de rumos com metas  e indicadores de resultados conforme o plano diretor, e não, somente, das antigas vinculações. E terceiro, fortalecer ainda mais a autonomia universitária, sobretudo no que se refere à flexibilidade no uso de recursos, processos administrativos e  políticas de recrutamento, contratação e remuneração de professores, que não podem continuar a ser rígidos e idênticos para todas as instituições e áreas de atuação. 

Com isto, o sistema público paulista poderia de fato se tornar mais funcional e equitativo, e suas universidades poderiam finalmente entrar para o século 21, como todos desejamos.

Inflação de Diplomas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 12 de abril de 2024)

Se há uma quase unanimidade no Brasil é que o país precisa de mais educação, e isto tem justificado um investimento cada vez maior no setor. Entre 2012 e 2023, a proporção de pessoas entre 18  e 40 anos com ensino médio completo ou mais passou de  53% para 71%, e com educação superior, de 11 para 19%. A estimativa é que, em 2018, o dado mais recente que consegui, o país tenha gasto 6.6% do PIB com os alunos da rede pública, dos quais 1.4% no ensino superior. E isto sem contar os gastos com aposentadorias e pensões de professores, bolsas de estudo, além do crédito educativo e Prouni, que beneficiam o ensino privado. É muito ou pouco? Afinal, ainda temos muita gente que não completou o ensino médio, e a educação superior deveria ser para todos. Vamos investir mais? Que tal gastar 10% do PIB, como aprovado, mas nunca cumprido, pelo Plano Nacional de Educação de 2014? Tirando de onde?

Antes de fazer isto, seria interessante refletir sobre um trabalho recente de pesquisadores do IPEA sobre a relação entre a educação e o mercado de trabalho no Brasil[1]. O que eles fizeram foi, com base na Classificação Brasileira de Ocupações, verificar qual o nível educacional requerido para cada uma delas – fundamental, média, superior – e depois, com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, verificar a proporção de pessoas que estão trabalhando em atividades abaixo, equivalente ou superior à sua formação, entre 2012 e 2022.

Os resultados são impressionantes. Nestes dez anos, a proporção de pessoas sobre-educadas, ou seja, com mais educação do que o requerido pelas ocupações que desempenham, passou de 26% para 37% do total, enquanto a de sub-educados, ou seja, pessoas trabalhando em atividades que requerem mais educação do que as que têm, caiu de 32 para 20%. É um caso claro de inflação educacional, em que se emitem cada vez mais títulos que o mercado de trabalho não tem como absorver. A maior parte dos sobre-ocupados são de nível médio, cerca 50%, mas a proporção entre os de nível superior também é alta,  pouco mais de 30%. Os dados mostram ainda que a grande maioria das ocupações existentes não requer muita educação.  Este quadro praticamente não se alterou nos últimos dez anos, exceto na indústria de transformação de alta tecnologia, em que há uma polarização, com mais trabalhadores de formação superior e de educação fundamental, e menos de educação média. Mas é um setor pequeno, com menos de 5% dos empregos.

Os autores não especulam muito sobre as razões deste quadro, exceto para dizer que ele deve ter sido afetado pelas crises no mercado de trabalho que vêm ocorrendo no Brasil desde 2015. Mas uma lição que podemos tirar é que não basta dar mais educação para que as pessoas se tornem mais produtivas.  Outra possível conclusão seria que se trata de um problema dos conteúdos da educação. Para obter um emprego compatível, não basta ter um diploma de nível médio ou superior, é necessário que este diploma esteja associado às competências que o mercado de trabalho requer. Mas, mesmo que esta associação exista, o mercado de trabalho tem uma lógica que depende de muitos fatores, dentre os quais a disponibilidade de recursos humanos qualificados é somente um – uma condição necessária, mas não suficiente.

A conclusão mais geral é que não faz sentido continuar aumentando os investimentos em educação de forma indiscriminada, isto só produz inflação de diplomas.  Além da grande frustração dos que não conseguem trabalhos condizentes com sua formação, existem os milhões que gastam tempo e dinheiro aprendendo coisas que nunca usam e  logo esquecem, os que abandonam seus cursos antes de terminar, e os que desistem e  saem cedo do mercado de trabalho, sobretudo mulheres.

 Claro que a educação tem outros objetivos além de preparar as pessoas para o trabalho –  formar pessoas mais cultas, mais solidárias, melhores cidadãos, com capacidade de aprender e lidar com uma sociedade em constante transformação. Mas, se as pessoas que se formam, sobretudo em nível superior, não conseguem trabalho compatível com seu nível de formação, e isso vem aumentando, algo está errado.  

Existe uma prioridade clara, que requer investimentos, que é a educação fundamental de qualidade, até os 15 anos de idade. É neste nível também que a questão das desigualdades deve ser enfrentada – não há política de ação afirmativa nem incentivo financeiro que consiga compensar as desigualdades de formação inicial. A partir daí, é necessário abrir espaço para caminhos alternativos, inovações e flexibilidade. A reforma do ensino médio, felizmente salva pelo Congresso em suas ideias centrais, pode contribuir para isto, se bem conduzida. E, no ensino superior e pós-graduação, é importante ser seletivo no uso de recursos públicos,  deixando de subsidiar sem maiores critérios as ilusões do diploma salvador, como se ele pudesse compensar pelas disfunções econômicas e institucionais que mantêm o país no atraso, e os jovens sem poder fazer uso de seu potencial.

___________


[1]Carvalho, Sandro Sacchet, e Maurício Cortez Reis. “Evolução da sobre-educação no mercado de trabalho no Brasil entre 2012 e 2022: primeiros resultados.” Boletim Mercado de Trabalho: Conjuntura e Análise. (IPEA), 2023.

A educação superior brasileira à luz da teoria

Apresentação ao Forum da Educação Superior da Academia Brasileira de Ciências e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 27 de fevereiro de 2024

Queria agradecer à Academia Brasileira de Ciências e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência pela oportunidade de abrir este fórum sobre a educação superior Brasileira, com o tema sugerido de “um resgate histórico sobre o ensino superior no Brasil”. Conhecer a história é essencial para compreender o sistema de educação superior que temos hoje, não somente para recuperar valores e experiências passadas que possam servir de ensinamentos, mas sobretudo para entender as concepções e instituições com as quais convivemos muitas vezes sem nos darmos conta de onde vieram, e que poderiam ser diferentes, como de fato são em muitas outras partes do mundo. Com o pouco tempo que me é dado, me pareceu oportuno interpretar esta história à luz de alguns conceitos centrais do campo de estudos sobre educação superior, que aqui estou chamando de “teoria” à falta de melhor termo.

As universidades, como sabemos, datam da Idade Média, mas uma de suas características centrais, no mundo moderno, é o processo de transformação das antigas instituições de elite em amplos sistemas de educação de massas, analisado nos textos clássicos do sociólogo norte-americano Martin S. Trow (Trow 1972; Trow 1973). Trow foi um veterano da Segunda Guerra Mundial, e completou seus estudos superiores graças aos benefícios proporcionados pela legislação que ficou conhecida como “G.I. Bill”, que abriu oportunidades de estudo superior para milhões de ex-soldados americanos como ele. A massificação da educação superior nos Estados Unidos, na verdade, vem do século 19, com a legislação conhecida como a “Morris Act”, de 1862, que levou à criação dos “Land Grant Colleges”, uma grande rede de escolas superiores que se desenvolveram ao lado de instituições tradicionais como Harvard e Princeton, criadas à imagem das universidades inglesas, e outras como a Johns Hopkins, que procurou emular as universidades de pesquisa alemãs.

A experiência americana é importante para nós porque a última reforma do ensino superior brasileiro data de 1968, quando se decide trazer para o país o modelo norte-americano das universidades de pesquisa, em substituição ao antigo modelo de faculdades profissionais criadas pelos portugueses. As antigas faculdades brasileiras tinham por função formar e certificar pessoas para o exercício das profissões de nível superior, como o direito, a medicina e a engenharia, e os professores eram bacharéis que formavam seus alunos à sua imagem e semelhança. No novo formato, os professores universitários deveriam ser doutores pesquisadores, trabalhando em tempo integral, para os quais o ensino e a pesquisa seriam indissolúveis, e que formariam profissionais de alto nível e pesquisadores como eles. Apesar de ter sido criada pelo governo militar, a reforma de 1968 foi em geral bem recebida nos meios acadêmicos brasileiros, porque ela compartilhava muitas das concepções que haviam inspirado a criação da Universidade de São Paulo em 1934 e da Universidade de Brasília em 1962.

Em seus escritos, Martin Trow mostra como os sistemas de educação superior se transformam quando deixam de ser instituições de elite e passam a ser de massa, que atendem a mais de 15% dos jovens, e finalmente universais, quanto atendem à metade ou mais. Nos sistemas de elite, o acesso é limitado a poucos, a principal função é a formação do caráter e a preparação para posições de elite, e existe consenso sobre o papel das universidades na manutenção da hierarquia de conhecimentos e da alta cultura na sociedade. Nos sistemas de massa, o acesso se amplia, a educação superior passa a ser vista como um direito de quem consegue passar pelos processos seletivos, a formação técnica e profissional adquire mais importância, e o predomínio intelectual das antigas elites passa a ser disputado pela pressão dos grupos de interesse das diversas corporações profissionais No sistema universal, a educação superior passa a ser vista como um direito de todos, o peso da meritocracia é disputado, e os critérios de acesso e padrões de qualidade passam a depender das características dos diferentes grupos sociais e das demandas do mercado de trabalho.

A análise de Trow é mais complexa do que isto, e uma das críticas que tem recebido é que ela está baseada sobretudo na experiência inglesa e norte-americana.  Mas a concepção central, de que os sistemas vão se ampliando e se tornando mais complexos e contraditórios, continua válida. É importante notar que, quando o sistema de educação superior se amplia, as antigas universidades não são abolidas, mas se modernizam e passam a coexistir com novas instituições criadas com outros objetivos e por diferentes agentes. Em maior ou menor grau, todas as sociedades modernas em que a educação superior se desenvolveu têm universidades de pesquisa, faculdades para a formação de profissionais liberais, instituições de formação de professores para a educação básica, institutos dedicados à formação de técnicos especializados, colégios de formação geral, e outras dedicadas à educação continuada.  São instituições publicas ou privadas, de orientação leiga ou religiosa, e administradas por governos nacionais, locais, comunidades de diferentes naturezas e  grupos privados.

Quando, em 1968, o Brasil tenta copiar o modelo americano, nosso sistema de educação superior ainda era de elite, com menos de 200 mil estudantes, enquanto o sistema americano já era massificado. Isto, aparentemente, passou desapercebido tanto pelos intelectuais que, no Conselho Federal de Educação, lideraram a reforma de 1968 – Newton Sucupira, Anísio Teixeira, Maurício Rocha e Silva, Valnir Chagas – quanto pelos  consultores americanos trazidos pelo famoso acordo Mec-Usaid, que não atentaram para a grande base do sistema norte-americano formada pelos community colleges e e as faculdades profissionais.

 Mesmo em condições ideais, seria muito difícil transformar as antigas faculdades em universidades de pesquisa. Houve um esforço importante neste sentido,  não só na mudança de legislação, abolindo as cátedras, criando departamentos e institutos, etc., como também com a criação dos programas de pós-graduação e contratação de professores em regime de tempo integral, além dos investimentos em pesquisa que vinham da área de ciência e tecnologia e eram destinados em grande parte aos novos departamentos universitários. Mas, com a expansão da demanda, estas iniciativas foram rapidamente atropeladas por professores temporários que buscavam estabilidade nas universidades públicas, estudantes “excedentes” que passavam nas provas seletivas, mas não conseguiam vagas e uma procura por certificações universitárias que era  muito maior do que as universidades públicas poderiam atender.  O resultado foi que o modelo da universidade da pesquisa ficou inscrito na legislação, que até hoje persiste, com a mantra da “indissolubilidade do ensino, pesquisa e extensão’ escrita na lei, ao mesmo tempo em que, para a sociedade como um todo, ainda predomina a ideia de que as universidades são, sobretudo, coleções de faculdades  destinadas à formação profissional.

No vácuo, o sistema privado expandiu, frustrando as tentativas do governo federal de ajustá-lo às regras da reforma. Hoje, mais de 75% da matrícula do ensino superior brasileiro é privada, e a grande maioria das instituições públicas têm  o formato e os custos das universidades de pesquisa, mas na prática funcionam como as antigas faculdades tradicionais. Com 20% da população entre 18 e 24 matriculada no ensino superior, o Brasil tem hoje um sistema de educação superior de massas, com a diversidade típica para este nível, mas sem uma legislação que reconheça e lide de forma clara com a diversidade e pluralidade institucional (Schwartzman, Silva and Coelho 2021). No papel, é um sistema igualitário, em que todos os títulos são equivalentes, todos os professores são doutores e pesquisadores, e todas as instituições podem dar os títulos que queiram, desde que cumpram os critérios de qualidade, e a universidade é para todos. Na prática, é um sistema profundamente desigual, que ainda exclui 80% dos jovens, em que metade dos alunos nunca terminam seus cursos, e que absorvem um volume crescente de recursos públicos e privados. Comparado com outros países de nível socioeconômico semelhante, o Brasil é o país com uma das menores taxas de matrícula no ensino superior, que tem a maior proporção de estudantes no setor privado,  e em que o custo per capita dos estudantes do setor público é o mais alto. O Brasil tem também um amplo sistema de cursos de pós-graduação altamente subsidiado e regulado com a justificativa de que é o celeiro dos doutores e pesquisadores, quando, em grande parte, se transformou em um nível adicional de formação profissional, compensando as debilidades dos cursos iniciais para uma elite da elite.

O segundo conceito que eu gostaria de trazer é o de capital humano, desenvolvido sobretudo por economistas como Theodore Schultz  e Gary Becker,  (Becker 1962; Becker 1973; Schultz 1961; Schultz 1970) em contraste com as teorias credencialistas de autores como Randall Collins e Pierre Bourdieu (Bourdieu and Passeron 1966; Bourdieu and Passeron 1970; Collins 1979) .   Segundo os primeiros, existe uma forte relação entre educação e desenvolvimento econômico – os países ricos têm populações mais educadas, as pessoas mais educadas ganham mais, e isto justifica que pessoas e governos invistam recursos em educação.  Segundo os outros, o que a educação faz é, sobretudo, reproduzir as desigualdades sociais já existentes, com os filhos dos ricos e mais educados herdando os privilégios dos pais, e as instituições de ensino se dedicando sobretudo a distribuir credenciais que garantem acesso a posições de prestígio, renda  e poder. Para os primeiros, a expansão da educação superior leva a mais igualdade social, criando oportunidades. Para os segundos, seu principal resultado é aumentar a competição por credenciais,  a um custo crescente para todos.

A reforma do ensino superior de 1968 veio acompanhada, sobretudo na década de 70, com transformações no sistema de ciência e tecnologia do país e a criação do sistema de pós-graduação, como parte de um projeto nacionalista de desenvolvimento que ficou conhecido como o “milagre brasileiro”. Foi um projeto de curta duração, que entrou em crise juntamente com o regime militar, e desde então a economia tem passado por altos e baixos, ao mesmo tempo em que a sociedade se urbanizava e o sistema educacional se expandia. Neste processo, a demanda por recursos públicos para a educação se ampliou, justificada sobretudo pelas teorias de capital humano. A pós-graduação, concebida como mecanismo de formação de professores doutores para o sistema universitário e pesquisadores de alto nível, se transformou, em parte, em um sistema altamente subsidiado de qualificação profissional e distribuição de credenciais para um segmento de estudantes mais privilegiados do setor público (Schwartzman 2022). O número de pessoas com diplomas superiores aumentou, títulos universitários estão associados a rendas bem mais altas, mas, no agregado, a produtividade da economia não aumentou, e a desigualdade não diminuiu. Ainda que os dados sejam precários, existe a percepção que grande parte dos cursos superiores agregam pouco a seus alunos em termos de competências. Tudo isto faz com que se questione as políticas de subsídio indiscriminado à expansão do ensino superior, que até o final do século XX se limitava ao setor público, mas passou a beneficiar o setor privado através do crédito educativo subsidiado e do Prouni.

Sem entrar no cipoal de dados e teorias em apoio a cada um dos lados, é possível observar que os dois processos coexistem em diferentes graus. Difícil saber se a galinha ou o ovo vem primeiro, mas, quando a população se urbaniza, a economia cresce, o consumo e os serviços se ampliam, a necessidade de pessoas qualificadas aumenta, e a educação se torna um canal importante de mobilidade e ascensão social.  Se há estagnação, é difícil pensar que a educação, sozinha, possa mudar as coisas, e a distribuição de credenciais tende a predominar sobre a criação de competências e recursos humanos. As teorias de recursos humanos e as do credencialismo, ou da reprodução, têm sido usadas dos debates públicos sobre o financiamento da educação superior, mas podem também servir para desenvolver políticas públicas mais elaboradas que permitam distinguir os investimentos que contribuem mais efetivamente para o desenvolvimento de recursos humanos e equidade e outros que simplesmente alimentam ilusões e subsidiam a reprodução da desigualdade social.

Isto nos permite introduzir um terceiro conceito, que é  do academic drift,  ou viés acadêmico, que não está associado a nenhum autor específico, mas que está muito presente sobretudo na discussão europeia sobre ensino técnico e profissional (Harwood 2010; Kyvik 2007; Neave 1979). O termo descreve a tendência de instituições de ensino de orientação prática e aplicada em adotar as características próprias de instituições voltadas à ao conhecimento científico e de pesquisa. É um movimento contrário ao da diferenciação institucional descrita por Martin Trow. Na Europa, o exemplo mais conhecido é o da transformação das antigas escolas politécnicas em universidades, como no Reino Unido. Na raiz desta tendência está a hierarquia de prestígio e reconhecimento que ocorre nos sistemas de ensino, descrito pelas teorias credencialistas, que faz com que as instituições universitárias tenham mais recursos e os diplomas universitários sejam também mais valorizados no mercado de trabalho. No Brasil, as antigas Faculdades de Filosofia foram inicialmente concebidas como instituições de formação de professores para o ensino médio, tal como pretendido por um dos fundadores da Universidade de São Paulo, Fernando de Azevedo. Mas terminaram sendo em parte capturadas pelos professores que almejavam o status mais prestigioso de cientistas, o que explica o lugar secundário que as licenciaturas para a formação de professores ocupam hoje nas universidades públicas. O exemplo recente mais notório é o do sistema de Institutos Federais, que se originaram de escolas técnicas de nível médio e hoje desenvolvem cursos de bacharelado, licenciaturas e pós-graduação com pouca ênfase na formação tecnológica. Um outro exemplo de academic drift é a transformação de profissões técnicas de nível médio ou pós-secundário, como por exemplo a enfermagem ou o serviço social, em profissões de nível superior, com seus próprios cursos de pós-graduação, sociedades científicas e revistas especializadas. Faz parte da mesma lógica a resistência  à diversificação do ensino médio e expansão da educação técnica (Schwartzman 2011a). Em sociedades mais complexas, esta suposta hierarquia entre a cultura universitária e a formação prática é menos acentuada, e a produção de conhecimentos e formação profissional se dá de forma mais descentralizada (Gibbons et al. 1994). No caso do Brasil, no entanto, como o sistema educacional cresceu mais rapidamente do que a economia, existe uma forte pressão para cima que acaba colocando a todos na média, e dificulta a valorização da especialização institucional e divisão do trabalho. O sistema de avaliação da educação superior brasileira, o SINAES, criado em 2004, ao colocar todos os cursos e instituições em um “ranking” único, contribui para fortalecer esta tendência (Schwartzman 2011b).

O último conceito que gostaria de trazer é o do “triângulo de Clark”, proposto pelo sociólogo norte-americano Burton C. Clark (Clark 1979; Clark 1983), que tem a ver com a maneira pela qual os sistemas de educação superior são coordenados.  Segundo ele, existem três polos que atuam em graus diferentes em todos os sistemas, o Estado, o mercado e a comunidade acadêmica (que ele chama também de “oligarquia”). A universidade clássica alemã talvez seja o melhor exemplo da parceria entre estado e oligarquia, com pouco espaço para o mercado. A França talvez seja o melhor exemplo de preponderância do Estado, enquanto nos Estados Unidos há forte preponderância do mercado. É fácil ver que cada um destes polos traz maneiras próprias de gerir as instituições de ensino, mais formais e burocráticas quando pelo Estado, com mais peso para as comunidades acadêmicas e profissionais quando pelas oligarquias, e mais empresariais quando pelo mercado.  No caso do Brasil, existe uma constante competição e acomodação entre os três polos, com o setor privado fortemente orientado pelo mercado, o setor público fortemente controlado pela burocracia governamental, as instituições mais intensivas em pesquisa com presença mais marcante das oligarquias acadêmicas, e as demais instituições públicas com forte presença das corporações profissionais.

Cada país é único, mas a educação superior em praticamente todos os países atuais se organizou conforme os modelos clássicos da Europa Ocidental e Estados Unidos, descritos na obra clássica de Joseph Bem-David  (Ben-David 1977), e cresceu e se diferenciou conforme a sequência descrita por Trow. O entendimento da história da educação brasileira, e sua situação atual, têm muito a ganhar de uma perspectiva teórica que contempla o processo de diferenciação descrito por Martin Trow, as tensões entre os papéis de formação de capital humano e credencialismo, as pressões trazidas pelo viés acadêmico que afeta as instituições de ensino e as profissões, e a competição entre formas e culturas diferentes de coordenação institucional descritas no triângulo de Clark.  São temas amplos, que afetam o ensino superior de formas diferentes em cada lugar, e que ajudam a pensar sobre o destino que queremos dar à educação superior no país.

Referências

Becker, G. 1962. “Investment in Human Capital: A Theoretical Analysis.” The Journal of Political Economy 70(5):9-49.

Becker, Gary Stanley. 1973. Human capital -A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education. Chicago and London: The University of Chicago Press.

Ben-David, Joseph. 1977. Centers of learning : Britain, France, Germany, United States : an essay. New York: McGraw-Hill.

Bourdieu, Pierre, and Jean Claude Passeron. 1966. Les Héritiers, les étudiants et la culture. Paris,: éditions de Minuit.

—. 1970. La reproduction; éléments pour une théorie du système d’enseignement. [Paris]: éditions de Minuit.

Clark, Burton R. 1979. “The many pathways of academic coordination.” Higher Education 8(3):251-67.

—. 1983. The higher education system academic organization in cross-national perspective. Berkeley: University of California Press.

Collins, Randall. 1979. The credential society. New York: Academic Press.

Gibbons, Michael, Martin Trow, Peter Scott, Simon Schwartzman, Helga Nowotny, and Camille Limoges. 1994. The new production of knowledge – the dynamics of science and research in contemporary societies. London, Thousand Oaks, California: Sage Publications.

Harwood, Jonathan. 2010. “Understanding academic drift: On the institutional dynamics of higher technical and professional education.” Minerva 48(4):413-27.

Kyvik, Svein. 2007. “Academic drift: a reinterpretation.” Pp. 333-38 in Towards a cartography of higher education policy change: A Festschrift in Honour of Guy Neave, edited by J. Enders and F. van Vught. Enschede: Center for Higher Education Policy Studies.

Neave, Guy. 1979. “Academic drift: Some views from Europe.” Studies in Higher Education 4(2):143-59.

Schultz, Theodore W. 1961. “Investment in human capital.” The American Economic Review 51(1):1-17.

Schultz, Theodore William. 1970. Investment in human capital; the role of education and of research. New York,: Free Press.

Schwartzman, Simon. 2011a. “O Viés Acadêmico na Educação Brasileira.” Pp. 254-69 in Brasil: A Nova Agenda Social, edited by Edmar L. Bacha and Simon Schwartzman. Rio de Janeiro: LTC.

—. 2011b. “Para além do SINAES.” in VI reunião da Associação Brasileira de Avaliação Educacional, Mesa Redonda sobre “Para além do SINAES: quais as novas possibilidades de avaliação da educação superior?”. Fortaleza.

—. 2022. “Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?Estudos Avançados 36(14):227-54

Schwartzman, Simon, Roberto Lobo Silva, and Rooney R.A. Coelho. 2021. “Por uma tipologia do ensino superior brasileiro: teste de conceito.” Estudos Avançados 35:153-86.

Trow, Martin. 1972. “The expansion and transformation of higher education.” International Review of Education:61-84.

—. 1973. Problems in the transition from elite to mass higher education. Berkeley, CA: Carnegie Commission on Higher Education.

A CAPES e suas avaliações

Concordo com Robert Verhine, em sua resenha do livro de André Brasil sobre o sistema brasileiro de avaliação da pós-graduação, de que se trata de uma contribuição importante para o entendimento do tema. Embora tenha também lido o livro, este comentário não pretende ser uma outra resenha, mas uma reflexão mais geral sobre a questão da pós-graduação brasileira e o sistema da CAPES.

Minha principal observação é que os diferentes aspectos e modalidades da avaliação, apresentados no livro e mencionados na resenha, são tratados sobretudo como se fossem questões técnicas, quando na verdade elas refletem concepções diferentes sobre temas como a autonomia universitária, o papel do governo no apoio e ou indução da qualidade e produtividade dos programas de pesquisa e pós-graduação, e inclusive sobre a própria natureza dos cursos de pós-graduação.  Isto aparece com clareza na parte em que se contrastam os sistemas holandês e brasileiro de avaliação. O sistema holandês tem como base a autonomia das universidades, que competem entre si mostrando suas qualidades e com isto atraindo estudantes, recursos públicos e privados etc.  O governo participa tornando explícitos determinados padrões, e financiando diferentes programas ou instituições conforme seus resultados. O modelo brasileiro é hierárquico, top-down, e tem por objetivo controlar e regular o sistema.

É importante lembrar que este modelo foi criado na década de 1970, concebido inicialmente como um mecanismo para a formação de professores pesquisadores para as universidades que estavam sendo reformadas segundo o modelo norte-americano das “research universities” e para os centros de pesquisa que estavam sendo estruturados segundo as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico da época. Data daqueles anos a distinção entre a pós-graduação “estrito senso”, para a formação de pesquisadores, e “lato senso”, para qualificação profissional mais avançada para pessoas com diplomas de nível superior . Com o tempo, ao se ampliar, o setor estrito senso passou a incorporar cada vez mais pessoas interessadas em obter uma qualificação profissional ou um título que pudesse levar a uma promoção e maior salário na carreira, e não se qualificar como professor pesquisador. Isto ocorreu sobretudo nos mestrados, concebidos inicialmente como substitutos provisórios para os doutorados que o país ainda não tinha, mas que se tornaram permanentes. Além disto, na década de 90 a CAPES começou a incentivar a criação de “mestrados profissionais” que se afastavam ainda mais do conceito original de pós-graduacão estrito senso.

O resultado foi que se estabeleceu, na pós-graduação, uma dualidade semelhante à que havia também na graduação:  por um lado, um sistema regulado, subsidiado, baseado quase totalmente em instituições públicas, e por outro um sistema aberto, desregulado e pago, baseado quase que totalmente no setor privado. Hoje, o setor público tem cerca de 450 mil estudantes, dos quais 300 mil em programas de mestrado e o privado, cerca de 1.300 mil, segundo os dados da Pnad contínua. Embora, nos extremos, os dois setores sejam muito diferentes, com os doutorados e programas de excelência em pesquisa concentrados no setor público, e a proliferação de cursos de aperfeiçoamento, como os MBAs, no setor privado, existe uma grande área de superposição, sobretudo nos mestrados, que faz com que esta dualidade precise ser revista.

Reconhecendo que a formação para a pesquisa científica havia deixado de ser o objetivo principal da maioria dos programas, a CAPES começou a buscar outros critérios de avaliação além dos relacionados à produção  científica, o que foi tornando o sistema de avaliação cada vez mais complexo, com várias tentativas de combinar diferentes dimensões, mecanismos de avaliação, fontes de dados etc., apresentados no livro e discutidos na resenha de Verhine. Mas a questão fundamental, que precisaria ser discutida, é se já não seria a hora de desmontar este sistema criado meio século atrás e substitui-lo por um sistema semelhante ao que existe na Holanda e outras partes do mundo, em que as instituições oferecem os cursos e programas que consideram mais adequados, e os governos se responsabilizam por manter um marco regulatório amplo e programas específicos de fomento para atividades consideradas prioritárias, sem pretender regular e controlar, no detalhe, o funcionamento das instituições.

O  antigo argumento em defesa do sistema centralizado da CAPES, de que o sistema universitário brasileiro é novo e incipiente, poderia fazer sentido meio século atrás, mas hoje a CAPES é uma anomalia,  sem similar em outros países, e com disfunções importantes. Uma delas é complexidade cada vez maior do sistema de avaliação que procura ainda manter, que se torna cada vez caro de implementar,  difícil de entender e estimula comportamentos conformistas por parte dos programas, muitas vezes mais preocupados com seus conceitos do que com os resultados de seus trabalhos. A outra é a artificialidade da separação entre os dois setores, o público/subsidiado/estrito senso e o privado /pago / lato senso. O terceiro é captura dos sistemas internos de avaliação da CAPES pelas corporações profissionais das diferentes áreas de conhecimento, que faz com que os critérios externos de qualidade (pelo qual os programas de nível 7 deveriam ter um padrão de qualidade internacional, etc.)  sejam constantemente relativizados. O quarto é o cerceamento da autonomia universitária, na criação de programas inovadores de pesquisa, formação avançada e inovação. Outra disfuncionalidade é a inequidade do sistema, já que os alunos dos cursos de pós-graduação, tanto no setor público quanto no privado, provêm de nível social elevado, e não há justificativa para que os do setor público tenham seus cursos subsidiados e recebam bolsas, enquanto os do setor privado tenham que pagar. Hoje, a maior parte dos recursos das agências federais de apoio à pesquisa universitária, CAPES e CNPq, se destina a bolsas de estudo, restando pouco para o apoio à pesquisa propriamente dita. E agora, como seria inevitável, começam as políticas de cotas para o setor estrito senso. Muito parecido com o que já acontece com os cursos de graduação, com um setor público minoritário, subsidiado e controlado, e um setor privado cada vez maior, competitivo e quase totalmente desregulado.

Ao não tratar destas questões mais fundamentais sobre papel do governo, autonomia universitária,  setor privado, espaço para a regulação etc., a discussão sobre avaliação acaba se perdendo em tecnicalidades que na verdade não têm maior importância.  Um exemplo é a questão dos rankings, ou conceitos agregados, de 1 a 7  – por que eles existem e são mantidos no Brasil, mas não na Holanda? Isto tem a ver, claramente, com a regulação top-down do sistema brasileiro, que estimula comportamentos conformistas e acaba, em última análise, perdendo sentido, por causa dos interesses conflitantes das diferentes corporações e a própria complexidade do sistema de indicadores.  Outro é a questão da autoavaliação. Ela é importante para instituições que precisam competir por qualidade em suas diversas dimensões e ante uma ampla clientela de usuários e potenciais financiadores, mas se transforma em um ritual sem relevância se sua única função é atender aos critérios formais estabelecidos pela burocracia reguladora. Não é uma questão “técnica” nem de “cultura acadêmica” enquanto tal, e não há como resolvê-la através de diretrizes ou formulários de um ou outro tipo.

Em conclusão, o que precisa ser entendido é a verdadeira natureza do setor de pós-graduação no Brasil, sua relação com o sistema de pesquisa e inovação (que não são duas faces da mesma moeda) e o papel da CAPES, que não pode continuar sendo o mesmo de meio século atrás. É a partir daí que podemos entender melhor as virtudes e defeitos de seu sistema de avaliação.

Robert E. Verhine: Avaliando a pós-graduação no Brasil

Resenha de Brasil, André, Advancing the evaluation of graduate education: towards a multidimensional model in Brazil. Leiden, Holanda: Universiteit Leiden / ProefschriftMaken, 2023, 378p.

(para um comentário adicional a esta resenha veja a postagem seguinte, A CAPES e suas avaliações)

O modelo nacional de avaliação de programas de pós-graduação da CAPES, implementado em 1980, tem recebido muita atenção da comunidade acadêmica brasileira, especialmente considerando seu profundo impacto no financiamento e na regulação da pós-graduação no país. Enquanto muitos reconhecem que a estrutura da avaliação nacional, aplicada a todos os programas do país em intervalos regulares, tem sido eficaz na promoção da qualidade do programa, outros vêem o esforço de uma forma mais negativa, argumentando, entre outras críticas, que a qualidade educacional é vista de maneira restrita e excessivamente quantitativa, o que interfere na autonomia acadêmica das universidades garantida na Constituição brasileira. Embora muitos artigos tenham contribuído ao debate em curso, nunca houve um livro detalhado dedicado exclusivamente ao tema, até recentemente. Esta ausência na literatura de avaliação foi agora remediada, pelo menos para a comunidade internacional, por um livro que acaba de ser publicado em inglês, intitulado “Avançando a avaliação da educação de pós-graduação: rumo a um modelo multidimensional de educação de pós-graduação”.[1] O livro, que tem quase 400 páginas, é baseado em uma tese de doutorado de autoria de André Brasil, gestor de alto escalão da Diretoria de Avaliação da CAPES.

O livro está dividido em 12 capítulos e aborda detalhadamente a construção e a dinâmica da avaliação nacional, seu impacto na produção acadêmica e na qualidade da aprendizagem, seus pontos fortes e fracos e, por fim, as medidas que devem ser tomadas para seu aprimoramento. O livro conclui apresentando dez princípios que norteiam o modelo de avaliação da CAPES e oferece treze recomendações para seu aprimoramento, que, segundo o autor, foram “meticulosamente delineadas para respeitar os contornos socioculturais distintos do Brasil” (p. 298). Devido  à riqueza de detalhes do livro, a presente resenha não pretende analisar todos os seus muitos aspectos. Em vez disso, o resenhista apresenta elementos-chave que considera mais relevantes para a reforma e melhoria do modelo de avaliação da CAPES atualmente em uso.

Para quem já conhece o modelo CAPES, o capítulo mais interessante do livro é o Capítulo 5, que traz uma análise comparativa dos sistemas brasileiro e holandês de avaliação de programas de pós-graduação, identificando diferenças e semelhanças no que diz respeito à estrutura organizacional, métodos de avaliação e dados, partes interessadas relevantes e grau de transparência. A análise revela que as duas abordagens de avaliação são muito diferentes, refletindo pontos de vista distintos em relação à avaliação, à autonomia universitária e à gestão da educação superior. As universidades holandesas, que datam do século XVI, são muito mais antigas que as congêneres brasileiras, o que significa que a autonomia universitária e a internacionalização estão muito mais firmemente enraizadas nas primeiras do que nas segundas. Diferentemente do Brasil, na Holanda o uso do inglês é enfatizado e a pesquisa é organizada em unidades acadêmicas e não em programas de pós-graduação.

Como o Brasil começou tarde a promover o estudo e a pesquisa sobre a universidade, tem tentado recuperar o tempo adotando uma abordagem central e nacional para garantir a qualidade dos programas de pós-graduação, capaz de causar um impacto rápido e universalizado. Essa orientação centralizada resultou na criação do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) e na concentração da avaliação em órgão governamental nacional. A avaliação tende a ser uniforme, aplicada a todos os programas do país, e tem grandes implicações para as unidades avaliadas, estando diretamente vinculada às políticas regulatórias e de financiamento e desenhada para garantir o funcionamento, a estabilidade e a qualidade do sistema através de uma abordagem hierárquica governamental. No Brasil, o governo “dirige” o desenvolvimento da ciência no país, utilizando a avaliação dos programas de pós-graduação como principal ferramenta de regulação.

Na Holanda, o foco da avaliação está na pesquisa e não nos programas de pós-graduação, e a pesquisa é organizada de acordo com disciplinas e unidades acadêmicas, nas quais estão incluídos programas de doutorado (mas não de mestrado). Ao contrário do Brasil, o estado não possui uma atuação avaliadora na Holanda. Embora as diretrizes sejam fornecidas por organizações não-governamentais nacionais de reitores e de professores universitários, as instituições têm autonomia para definir a sua própria estratégia, organização e escopo de avaliação. Assim, o sistema de avaliação holandês é bottom-up e descentralizado. A avaliação é uma prática interna e participativa realizada com base na identidade, objetivos e estratégias de cada unidade avaliada, tornando o processo predominantemente interno, formativo, contextual e qualitativo. Não foi concebido para controle externo, regulação estatal ou responsabilização. Os protocolos nacionais definem objetivos gerais de avaliação a nível nacional, mas os critérios não são rígidos, padronizados ou obrigatórios. As unidades de investigação têm autonomia para as reorganizar de acordo com as suas características específicas. Os protocolos não definem regras ou diretrizes sobre as consequências da avaliação e nenhuma instituição nacional é responsável por definir ou aplicar sanções, recompensas e incentivos. Essa é prerrogativa de cada unidade ou instituição, seguindo suas políticas internas. Assim, ao contrário do caso brasileiro, na Holanda a avaliação não é regulatória, não estabelece classificações e não cria indicadores que permitam a comparabilidade entre unidades.

Ao fazer a sua análise comparativa, o autor do livro teve o cuidado de notar que os dois sistemas se baseiam em trajetórias históricas, desafios geográficos e estruturas institucionais. Os mecanismos de avaliação devem ser adaptados aos contextos únicos de cada país. Contudo, existem inspirações e lições que podem ser tiradas das experiências positivas de cada país. Em última análise, ele reconhece vantagens para ambas as abordagens, afirmando que, do ponto de vista comparativo, o modelo brasileiro tem servido de forma mais eficaz para estimular a produção de pesquisas e publicações, especialmente em um contexto em que o desenvolvimento da cultura da pesquisa é relativamente recente, enquanto o modelo holandês promoveu com mais sucesso um ponto de vista contextualizado conducente ao reconhecimento da diversidade, diferenciação e autonomia institucionais.

O autor volta à questão da autoavaliação de programa no Capítulo 11, que aborda a questão da multidimensionalidade, tema subjacente ao qual todo o livro é dedicado. Ele observa que, em 2018, a CAPES reconheceu a necessidade de desenhar uma estratégia de autoavaliação para o SNPG. Este reconhecimento, na opinião do autor, derivou de duas tendências principais. Em primeiro lugar, a expansão significativa do SNPG, que cresceu de cerca de 400 programas em 1980 para quase 5.000 em 2020, tornou-se um obstáculo para captar as narrativas complexas vividas pelo número rapidamente crescente de iniciativas de pós-graduação. Em segundo lugar, era cada vez mais evidente que a sua abordagem de avaliação externa tinha promovido um sistema científico excessivamente homogêneo, levando os programas de pós-graduação “a tornarem-se fotocópias de qualidade inferior aos de melhor desempenho” (p. 260).

No que diz respeito ao tema da multidimensionalidade, entendido como uma abordagem avaliativa que busca captar a realidade de forma ampla, focando em uma variedade de dimensões, subdimensões e indicadores operacionais que se relacionam, de forma articulada, com a qualidade educacional, o autor afirma que a autoavaliação é potencialmente “o instrumento mais valioso numa avaliação genuinamente multidimensional” (p. 273), pois, se bem desenvolvido, pode assegurar a relevância contextualizada que historicamente faltou ao modelo de avaliação da CAPES. Ele postula que uma abordagem multidimensional eficaz “só é verdadeiramente possível por meio da autoavaliação”, pois permite que a multidimensionalidade “incentive a diversidade na ciência brasileira e que possa empregar as próprias instituições como parceiras mais ativas no processo de avaliação” (p. 277).

É claro que, no Capítulo 11, a sua discussão sobre a abordagem da multidimensionalidade à avaliação trata de muito mais do que apenas a autoavaliação. Ele analisa a proposta multidimensional feita em 2018 pela Comissão do PNPG, responsável por acompanhar o Plano do período 2011-2020. Esta proposta defendia a utilização de cinco dimensões, com cada dimensão classificada separadamente numa escala de um a sete, preservando assim a classificação dos programas, mas eliminando a atribuição de uma nota única a cada programa. Embora a Comissão do PNPG tenha anunciado a sua proposta como um “novo modelo”, o autor argumenta corretamente que o seu enquadramento não muda muito em relação à avaliação já em vigor. Ainda assim, ele vê a proposta da referida Comissão como um avanço, representando “um passo modesto, mas relevante, para permitir que os programas de pós-graduação encontrem suas próprias identidades” (p. 273). O mesmo também ressalta o fato de ser uso-amigável, no sentido de que os programas individuais podem selecionar os indicadores ou itens que os ajudariam a definir os perfis dos seus programas de acordo com os seus interesses. Afirma, ainda, que essa flexibilidade orientada para o utilizador produziria resultados mais ricos e mais relevantes para a melhoria do programa.

Apesar da sua argumentação coerente, detalhada e bem fundamentada, muitos aspectos da sua narrativa podem ser questionados, incluindo o fato, reconhecido pelo próprio autor, de que o seu estudo não aborda os aspectos operacionais das suas muitas recomendações, limitando, potencialmente, sua aplicabilidade. Contudo, para este resenhista, quatro questões merecem atenção especial aqui. Cada uma é brevemente discutida abaixo.

  1. O autor defende a avaliação externa realizada pela CAPES. Embora reconheça suas limitações e a necessidade de reformas à luz da complexidade e diversidade do Sistema de Pós-graduação do Brasil, ele enfatiza seu importante papel na promoção da qualidade e da produção acadêmica, além de ser muito positivo ao descrever o uso de comissões de pares, áreas de avaliação, um padrão formulário de avaliação para orientar a aplicação de critérios e indicadores, e o Sistema Qualis para julgar, por meio de análises qualitativas e quantitativas, artigos de periódicos e outros produtos. Mas, por outro lado, sugere que a avaliação externa não é sustentável devido ao tamanho crescente do SNPG e critica-o frequentemente por limitar a diversidade e a inovação em todo o sistema. Assim, conforme descrito acima, ele concentra grande parte do livro na importância da autoavaliação, que descreve com detalhes brilhantes. Mas, nunca fica claro como ele vê a avaliação externa e a autoavaliação inter-relacionadas. A autoavaliação é um complemento ou substituto do modelo externo? Em alguns momentos, ele parece indicar que o processo interno deveria substituir a abordagem centralizada e de cima para baixo, como ocorreu na Holanda, enquanto em outros momentos ele sugere que o componente externo deveria permanecer o elemento principal, devido ao seu impacto global e a sua capacidade de fornecer resultados comparativos. Segundo ele, as duas iniciativas exigiriam articulação, mas ele não faz nenhum esforço para revelar o que “articulação” pode significar em termos concretos.
  2. Em diversas ocasiões, o autor defende uma abordagem de avaliação amigável, na qual o programa escolhe as dimensões e os indicadores com base nos quais seria avaliado. A recomendação faz todo o sentido no caso da autoavaliação, mas o autor parece aplicá-la também à avaliação externa, especialmente quando apoia o sistema de cinco notas proposto pela Comissão do PNPG por ser um passo modesto, mas relevante. O problema desse argumento é que o programa de pós-graduação não é o único “usuário”. Na verdade, como fica claro nos capítulos iniciais dos livros, o principal usuário é e sempre foi o governo brasileiro, que utiliza os resultados da avaliação para financiar estudos de pós-graduação (via a CAPES) e para regular a qualidade dos programas (via o Conselho Nacional de Educação). Outro usuário é o público brasileiro, que exige (e merece) que todos os programas de pós-graduação do país, independentemente de onde estejam, atendam a padrões mínimos de qualidade. O próprio autor parece contradizer sua postura a favor da chamada avaliação amigável, quando, por exemplo, defende o direito das áreas de avaliação estabelecerem indicadores e critérios a serem utilizados e quando afirma que um ingrediente essencial do modelo de avaliação da CAPES é seu quadro comparativo.
  3. Outra posição discutível adotada pelo autor envolve a defesa de notas múltiplas, sendo uma atribuída a cada dimensão, em vez de uma nota unitária gerada pela ponderação dos componentes com o modelo multidimensional da CAPES. Este ponto de vista não está incorreto, mas requer uma análise mais profunda. A abordagem multi-nota é útil para os programas, pois fornece uma imagem desagregada da sua qualidade que pode facilitar as decisões para a sua melhoria. Porém, o autor deixa de mencionar que os programas já recebem seus resultados de avaliação de forma desagregada, com avaliação em escala de cinco graus feita para cada quesito, item e indicador incluídos na Ficha  de Avaliação. Na área de Educação, por exemplo, cada programa recebeu, em 2022, uma avaliação para 62 elementos diferentes, abordando 3 quesitos, 12 itens e 47 indicadores. Por outro lado, o resultado da nota única é útil para outros fins, como na tomada de decisões governamentais relativas ao financiamento e à regulamentação e quando indivíduos e organizações, incluindo os do exterior, estão decidindo se devem ou não trabalhar com um determinado programa. A CAPES, por exemplo, recebe solicitações de todo o mundo perguntando sobre a equivalência entre os conceitos (E a ​​A) dados aos programas anteriores a 1998 e as notas (1 a 7) dadas a partir de então. Essas solicitações são uma prova do valor, da legitimidade e do reconhecimento internacional conferidos às notas da CAPES na forma como estão divulgadas atualmente.
  4. Por fim, ao defender o modelo de cinco dimensões proposto pela Comissão do PNPG, o autor ignora totalmente o formato de avaliação construído e aprovado pelo Conselho Técnico Científico (CTC-ES) da CAPES em dezembro de 2018. Ao invés de ser composto por dimensões avaliadas de forma independente e isoladas entre si, a Ficha de Avaliação aprovada pelo CTC-ES apresenta uma abordagem mais holística, integrada e condensada, organizada em torno de três dimensões e 12 subdimensões que espelham o chamado modelo clássico de avaliação de programas que se concentra, sistematicamente, em insumos (Programa), processos (Formação) e resultados (Impacto na Sociedade). A dimensão Programa, que existia anteriormente mas nunca foi ponderada, inclui como componentes-chave tanto o planejamento estratégico como a autoavaliação do programa, dois ingredientes que o autor considera cruciais para a melhoria do programa, mas que são omitidos no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Outra vantagem da Ficha aprovada em 2018 é que a dimensão formativa dá ênfase, pela primeira vez, às trajetórias e opiniões dos egressos do programa. Além disso, inclui como um de seus itens a produção acadêmica dos docentes, aspecto que era uma dimensão à parte tanto na avaliação da CAPES no passado quanto no modelo proposto pela Comissão do PNPG. Agora, no novo formato, trata-se apenas de um componente de dimensão mais geral, reduzindo assim sua influência, algo condizente com o pensamento do autor, ao mesmo tempo em que destaca a principal justificativa para promover a pesquisa e a publicação nos programas de pós-graduação, como estratégia pedagógica para possibilitar que os alunos aprendam sobre a produção de conhecimento trabalhando em estreita colaboração com aqueles que têm experiência profunda com tais processos. Também, a nova Ficha de Avaliação aumentou a importância dada aos impactos do programa e relativizou, de forma multidimensional, os impactos internacionais versus aqueles de natureza mais local. E ainda, como parte da nova abordagem, os indicadores qualitativos receberam muito mais peso e valor do que no passado. Todos estes avanços vão ao encontro dos argumentos apresentados pelo autor em vários momentos da sua longa narrativa, embora nenhum deles faça parte do modelo da Comissão do PNPG que o autor abraça.

Apesar das dúvidas levantadas acima, este resenhista avalia o livro produzido por André Brasil de forma bastante positiva. Em suma, o autor acredita que a avaliação da CAPES deveria ser mais flexível, adaptável e contextualizada, “permitindo variação e customização de acordo com as especificidades de cada programa de pós-graduação, em harmonia com contextos institucionais e disciplinares mais amplos” (p. 302). Os esforços para melhorar ainda mais o Sistema serão muito beneficiados pelo que este livro tem a oferecer. Dou a sua leitura a minha mais alta recomendação.

Nota


[1] Todos os trechos do texto colocados entre aspas foram traduzidos do inglês para o português pelo autor da resenha. 

Pesquisa, inovação, pós-graduação e ensino superior no Brasil

Estou compartilhando, para críticas e comentários, a versão preliminar de um trabalho sobre o tema acima, disponível aqui.

Este trabalho teve por objetivo obter uma visão abrangente das áreas de pesquisa, inovação, educação superior e pós-graduação no Brasil, com ênfase em uma análise mais detalhada dos conteúdos das teses e dissertações de doutorado e mestrado. O uso do termo “sistema” para descrever este conjunto pode dar a impressão equivocada de que ele obedece a uma lógica racional e coerente, que teria por objetivo desenvolver os recursos humanos do país em suas diversas dimensões. O que se observa, no entanto, é que cada um destes componentes se desenvolveu e funciona segundo uma lógica própria e não necessariamente coincidente. A pesquisa mais significativa está concentrada em um segmento do sistema universitário e em alguns institutos isolados, as despesas públicas em ciência, tecnologia e inovação não estão associadas, maioritariamente, à pesquisa e inovação enquanto tais, e a formação de doutores e mestres só em parte converge com a formação de pesquisadores.  Embora não seja uma conclusão surpreendente, ela traz implicações de políticas públicas importantes que deixam de existir quando se desconsidera a pluralidade de funções de cada um destes setores.

Este artigo é produto do projeto “Pesquisa em Pesquisa e Inovação: indicadores, métodos e evidências de impacto”, realizado pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo  – FAPESP (Processo FAPESP 2021/15091-8).

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial