O que disseram os outros: cientistas, estrangeiros, o modelo econômico e o ensino superior brasileiro

No debate de O Globo de 10 de março, chamou muito atenção a advertência feita pelo reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira, ao Ministério da Educação, de que o governo não deveria deixar que os cientistas assumissem o controle das comissões de avaliação dos planos de desenvolvimento das universidades, como está sendo proposto pela Academia de Ciências e pela SBPC. Cientistas, disse ele, são bons para fazer ciência, mas não para definir as políticas de ensino superior (os termos podem não ter sido estes, mas este foi o sentido).

Me parece que, em parte, ele tem razão; os cientistas têm muita dificuldade em entender e aceitar que, nos modernos sistemas de educação superior de massas, a pesquisa ocupa um nicho importante, mas existem outras coisas, como a formação profissional, a formação geral, e a formação tecnológica, no qual eles têm pouco a contribuir diretamente; e que existem muitas instituições – na verdade a grande maioria – dedicadas exclusivamente ao ensino em suas diversas formas. A imposição de critérios científicos como única métrica para a avaliar instituições e programas de ensino leva a distorções graves, como por exemplo a dificuldade que o Brasil tem tido de criação de mestrados profissionais, e as altas taxas de reprovação de muitos cursos das universidades públicas e privadas.

O que não fica claro é quem o reitor acha que deveria exercer o poder sobre as universidades e os sistemas de avaliação, no lugar dos cientistas. Dada a história conhecida da UFRJ, parece claro que ele tenderia a preferir a “comunidade universitária”, representada pelos sindicatos de docentes, funcionários e associações de estudantes, uma perspectiva coerente com a demanda pela gerência colegiada das instituições e eleição direta dos reitores, que o projeto do Ministério da Educação acolhe. Existe hoje uma ampla literatura sobre a “profissão acadêmica” e seu papel na regulação e controle dos sistemas educacionais – que, justamente com o Estado e o Mercado, compõem o famoso “Triângulo de Clark”. Mas esta “profissão acadêmica” é algo muito complexo, e inclui desde os cientistas e pesquisadores até professores ocasionais e pessoas sem maior formação. A experiência internacional mostra que os sistemas de ensino superior mais bem sucedidos são aqueles que procuram combinar as virtudes dos três vetores deste triângulo – a vitalidade do setor privado, a regulação do governo, e os valores, conhecimento e envolvimento institucional da comunidade acadêmica, da qual os cientistas são parte integrante e fundamental, embora não única. Qualquer tentativa de concentrar o poder em um destes vértices, às expensas dos outros, gera problemas.

Das muitas coisas ditas por Gustavo Petta, presidente da UNE, destaco duas. Primeiro, sua ardorosa defesa da cláusula do projeto do governo que impede o controle de estrangeiros em instituições de ensino lucrativas. Ele vê nestas empresas uma ameaça à nossa cultura, e uma porta aberta para a liberalização do comércio de serviços educacionais que está sendo proposta por alguns países à Organização Internacional do Comércio, e que poderia destruir nossas instituições educacionais. Eu penso que o segundo perigo é remoto, porque o ponto principal destas propostas, pelo que eu entendo, seria dar às instituições estrangeiras as mesmas regras de funcionamento que são dadas às instituições nacionais. Quanto ao primeiro perigo, tudo depende de que cultura queremos – uma cultura fechada e provinciana, tipo “porque me ufano de meu Brasil”, ou uma cultura aberta às idéias, influências e conhecimentos que vêm de todas as partes. De qualquer maneira, não há de ser esta cláusula que vai impedir que pessoas brasileiras continuem indo estudar no exterior, que cursos por Internet se desenvolvam sem respeitar barreiras geográficas e regulações ministeriais, e que nossas melhores instituições de ensino e pesquisa procurem emular as melhores do mundo. Se tivermos um ensino superior público e privado de boa qualidade, empresas educacionais estrangeiras só podem ser benvindas, e não ameaçarão ninguém. Se não tivermos, aí mesmo é que elas se tornam indispensáveis.

A segunda coisa dita pelo Presidente da UNE, com a qual eu concordo, é que a atual proposta de reforma do ensino superior do MEC é incompatível com a política econômica do governo Lula, baseada até aqui no equilíbrio orçamentário, no respeito aos gastos públicos e na abertura do país aos capitais e ao fluxo internacional de conhecimentos e tecnologias.

Da apresentação de Paulo Alcântara Gomes, reitor da Universidade Castelo Branco, me parece importante recuperar a idéia de que o que deveria preocupar não é se uma instituição é pública ou privada, e sim se ela tem ou não tem qualidade. Ninguém discordou, mas não houve tempo para explorar o que isto significaria na prática, em termos de organização do financiamento da educação superior brasileira em todos os seus aspectos.

Educação privada: direito ou função delegada?

Um dos temas que surgiram na discussão sobre o projeto de reforma universitária do MEC é se a educação em geral, e a educação superior em particular, é um bem público, de responsabilidade do governo, ou um dreito das pessoas, em relação ao qual o poder de intervenção do governo deve ser limitado. A posição do Ministério é clara: a educação é um bem público, e por isto ela só pode ser exercida privadamente por delegação e sob estrita vigilância do governo. Eu tenho defendido o oposto: a educação, em todos os níveis, é um direito dos cidadãos, e um serviço que pode ser proporcionado por quem se habilitar, com toda a liberdade, com interferência mínima do setor público.

Vale a pena aprofundar esta questão. A educação pública, como sabemos, é um produto dos estados nacionais que surgem a partir dos séculos 18 e 19, muitas vezes em forte conflito com a Igreja, que se transforma, sobretudo na França, em grande defensora da educação privada, que na realidade era a defesa da educação religiosa. A disputa entre Estado e Igreja pelo controle da educação foi, em grande parte, uma disputa ideológica, entre os defensores de filosofias iluministas e agnósticas e os defensores de valores religiosos, e também fez parte do processo de afirmação do poder dos estados nacionais sobre grupos específicos que resistiam a seu poder e sua autoridade. No Brasil, nos anos 30, a Igreja tentou assumir o controle da educação pública, mas acabou aceitando uma posição menos dominante, criando suas próprias universidades e garantindo o ensino religioso nas escolas públicas, como existe até hoje.

Esta não é, no entanto, a questão atual. Nas sociedades modernas, a educação passou a ser vista como um direito dos cidadãos, o principal instrumento para promover a igualdade de oportunidades em um mundo em que o trabalho e a participação social dependem da capacitação e do conhecimento. O setor público deve zelar e prover recursos para que todas as pessoas se eduquem, da mesma maneira em que deve zelar e prover recursos para elas tenham acesso à segurança e aos cuidados médicos.

Mas, que educação é esta que o setor público deve proporcionar, e até onde vai esta obrigação? Aqui as coisas se complicam, porque as ideologias voltam a se misturar. A visão republicana tradicional é que existiria uma distinção clara e óbvia entre o mundo da Ciência, do Conhecimento, da Cultura e dos Valores Cívicos, e o mundo da superstição, da religião, dos particularismos e dos valores privados; e que o Estado, através de suas repartições nos Ministérios e Secretarias de Educação, seria o guardião deste mundo iluminado, contra o mundo das trevas. Eu sou um racionalista empedernido, defensor dos valores da ciência, da racionalidade e do interesse público, mas isto não me impede de ver que as coisas não são divididas tão claramente assim, e que as burocracias públicas não têm o monopólio das virtudes, nem o setor privado o monopólio dos vícios. Eu acredito que a responsabilidade do Estado, na área da educação geral e pública, deve se limitar a uma agenda mínima – assegurar que todos tenham acesso à leitura e à escrita, e aos meios de informação – e não a uma agenda máxima – definir de antemão os conteúdos de todos os conhecimentos que as pessoas devam ter. Seu papel é garantir a igualdade de oportunidades, e não fazer com que todas as pessoas sejam iguais, conforme o mesmo molde.

No ensino superior, esta questão se complica por duas razões principais. Primeiro, porque muitas profissões conseguiram, através dos anos, que o Estado assumisse o papel de zelar pelo seus monopólios profissionais privados, e isto é apresentado como se fosse o Estado, em nome da sociedade, que estivesse zelando pelo interesse público. Os exemplos extremos são a medicina e o direito, e todas as profissões de nível superior no Brasil procuram imitá-los através de legislações de reconhecimento e regulação profissional.

Mas não está certo isto, que o Estado cuide para que não existam falsos médicos e advogados incompetentes, enganando a população? Mais ou menos. No Brasil, os homeopatas têm direito a praticar medicina, mas as enfermeiras não podem receitar remédios para um resfriado, e os optometristas não podem dar receitas para óculos. Existe, neste momento, uma grande discussão sobre uma proposta de definição legal de “ato médico” que, se for adotada, acabaria com a autonomia profissional de várias categorias. Estas disputas se fazem em nome dos conhecimentos e das competências dos diversos setores e grupos, mas é também uma disputa política, cujo resultado pode ser muito diferente de um país a outro. Novamente aqui, o mais recomendável é que o setor público se limite ao controle de situações de abuso extremas, e faça com que a propria sociedade, através das associações científicas e profissionais e da opinião pública, vá definindo o que é aceitável ou não, aceitando que continuarão a existir ambiguidades, pessoas que adoram a homeopatia, e outros que consideram que os homeopatas não passam de charlatães.

O outro complicador, em relação ao ensino superior, é que existe uma relação pouco clara entre os benefícios privados dos títulos de nível superior e os benefícios públicos, ou sociais, desta educação. No passado, havia a idéia de que seria possível planejar, “cientificamente”, quantos médicos (homeopatas, alopatas, etc), engenheiros, advogados e sociólogos o país necessitaria. Hoje ninguem, em sã consciência, acredita nisto. Todo mundo quer ser “doutor” hoje, ainda que seja para não ficar para trás em relação aos amigos, e em geral os benefícios privados dos cursos superiores são altos. Mas, se os advogados ganham muito dinheiro e a profissão cresce cada vez mais, isto é bom ou mal para o país?

Aqui, mais do que na educação básica, fica claro que não cabe ao setor público financiar toda a educação superior, nem vigiar para que ela obedeça aos padrões e normas definidos pelos diversas diversas corporações profissionais e pelas burocracias dos ministérios. O setor público pode, e deve, identificar e apoiar as áreas aonde existam carências evidentes, inclusive de formação de alto nível, e desenvolver mecanismos de apoio para que pessoas sem recursos não se vejam excluidas dos benefícios do acesso à educação superior, mas não deveria ir muito além disto.

Finalmente, é bom lembrar que, na nossa experiência, a educação pública sempre começa boa quando é limitada e de elite, e perde qualidade e se burocratiza quando se massifica. Assim foi com os antigos grupos escolares, com as antigas escolas secundárias e escolas normais, e isto é o que parece estar ocorrendo com o ensino superior público, em grande parte. Não se trata de uma incompetência inerente ao setor público, mas de uma dificuldade que decorre, em parte, da limitação de recursos, e em parte pela lógica burocrática e ritualista que se implanta quando se tenta controlar redes gigantescas de escolas e universidades a partir de burocracias centralizadas, quase sempre atravessadas por interesses e contingências políticas as mais diversas.

É por isto que se busca, em todos os níveis, tornar as instituições de ensino mais autônomas, mais diversificadas, mais abertas a estímulos externos, e desenvolver sistemas de estímulo ao bom desempenho. O papel do setor público é estimular a criação de mecanismos adequados de financiamento para atividades prioritárias e para a correção das iniquidades de acesso, e sobretudo de estimular a sociedade a estabelecer padrões e mecanismos consensuais de controle de qualidade, aceitando, ao mesmo tempo, a pluralidade e a diversificação.

O projeto de reforma do esino superior do MEC incorpora algumas destas idéias, ao estimular a autonomia das universidades públicas e o maior envolvimento das instituições com a comunidade externa, assim como ao buscar mecanismos para tornar o ensino superior mais acessível a pessoas carentes. Pena que estas idéias se percam na visão extremada do poder do Estado sobre a educação, na ojeriza à iniciativa privada e ao mercado, e na confusão entre sociedade e os interesses corporativos dos sindicatos e da “sociedade organizada”.

O projeto de reforma do ensino superior do MEC

Estou colocando na página o texto que preparei com o Cláudio de Moura Castro comentando a proposta de reforma universitária do Ministério da Educação (está em “livros”). O Estadão de domingo 23 de janeiro publicou tambem um pequeno texto resumo. O texto do MEC foi apresentado como documento para discussão, e é este o sentido dos nossos comentários.
Para ajudar na discussão (coisa rara entre nós, com a confusão que costuma ocorrer entre diferenças de opinião e briga), pretendo publicar aqui os comentários, a favor ou contra, que o texto possa suscitar

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