Reagan e Trump

Assim que saíram os resultados da eleição de Trump, mandei uma nota para alguns amigos dizendo que estava vendendo baratinho, no site “enjoei”, meu diploma de doutorado em ciências políticas da Universidade da California, Berkeley, assinado por Ronald Reagan, então governador da California. Na véspera, havia sido feliz por dois dias, acreditando, com base em alguns farrapos de evidência (como os resultados de uma pesquisa no estado de Iowa), que havia uma boa chance de uma maré pró Kamala Harris que poderia decidir a eleição em seu favor. A maré aconteceu, mas contra. Há muito que desisti de dar prioridade a meu chapéu de cientista político, preferindo o de sociólogo, mas achei que agora não poderia deixar de dizer alguma coisa sobre as eleições, e me pareceu que o paralelo com Ronald Reagan seria bom um gancho.

Reagan era um locutor de rádio, artista de filmes “b” e apresentador de televisão que ganhou notoriedade por se comunicar bem, e foi financiado por um grupo de empresários para propagar as ideias conservadoras que lhes interessavam. A California, nos anos 60, era um dos estados mais prósperos e dinâmicos dos Estados Unidos, e possuía também o sistema mais avançado de educação superior pública, liderado pela Universidade da California e tendo por base uma grande rede de colégios comunitários. A California foi também o berço do movimento hippie, do movimento estudantil nos Estados Unidos, e das mobilizações contra a guerra do Vietnam.  O governo estava solidamente nas mãos do Partido Democrata, que havia se comprometido nacionalmente com o movimento dos direitos civis e procurava se desvencilhar da guerra no Vietnam, na qual havia se envolvido. Reagan ganhou as eleições pelo Partido Republicano em 1966 apoiado por empresários que queriam mais liberdade para seus negócios, grupos religiosos e de classe média que se ressentiam da revolução de costumes e dos movimentos sociais  e dos impostos que o Estado cobrava para manter suas políticas sociais e de modernização econômica, e pessoas pouco educadas que se ressentiam das elites formadas pelas universidades do Estado. Foi governador até 1975, e, depois de algumas tentativas, foi eleito presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989.

Exceto talvez em relação ao tema dos imigrantes, era uma plataforma praticamente igual à de Trump, em sua oposição aos movimentos sociais, à presença do Estado na economia e na sociedade e ao anti-intelectualismo. Uma outra semelhança entre Reagan e Trump é que nenhum dos dois tinha muita paciência nem competência para entender as complexidades da tarefa de governar. A diferença é que Reagan se contentava com o  papel de presidente de fachada, deixando o governo para os “adultos” que o rodeavam, enquanto Trump acha que pode decidir tudo sozinho, e não tem o menor respeito ou consideração pelas instituições públicas, que Reagan não questionava.

Nos dois anos que passei em Berkeley, 1967-8,  havia duas agendas, a dos movimentos políticos que agitavam o campus e o programa de estudos do departamento de ciência política, que estava dividido em duas correntes, a de “filosofia política”, que buscava dar um fundamento acadêmico e intelectual aos movimentos da rua, e a mais empírica, que buscava entender e explicar a lógica de funcionamento dos sistemas políticos, sobretudo o americano. Eu já tinha tido meu aprendizado de movimento estudantil no Brasil de pré-1964, e dei prioridade à segunda, tentando entender sobretudo as origens institucionais dos sistemas modernos de governo. Este foi o tema de minha tese de doutorado, voltada para as instituições coloniais brasileiras e seu impacto na política e sociedade contemporâneas, muito antes que Daron Acemoglu e colegas ganhassem o prêmio Nobel de economia por redescobrirem esta questão.

Em Berkeley, nunca conheci um americano que fosse republicano, mas havia montes deles em Los Angeles e outras partes. Reagan, como governador,  mandou cortar parte dos recursos da Universidade, mas presidia seu Conselho de Regentes e assinou meu diploma (quase certamente por alguma máquina). Naqueles anos o establishment americano, assustado pelos movimentos reformistas, começava um ciclo de reação conservadora, e o Brasil continuava mergulhado no autoritarismo do regime militar. Mas ainda reconhecia e avalizava os diplomas produzidos por suas instituições.

A moral da história, se é que ela tem moral, é que não há nada especialmente novo na reação conservadora de Trump, vitorioso contra um Partido Democrata que se exauriu ao tentar atender ao mesmo tempo as agendas dos movimentos sociais, dos movimentos identitários, da agenda climática, e as responsabilidades econômicas e militares de “big brother” de um mundo cada vez mais complicado e refratário a seu comando. Parte dos apoiadores de Trump endossam sua agenda conservadora; mas suspeito que a grande maioria dos que votaram nele são, simplesmente, “contra tudo que está aí”.

A diferença é que o ataque de Trump ao establishment americano é muito mais profundo do que uma simples oscilação da balança de poder. O paralelo com Reagan faz algum sentido, mas talvez o principal paralelo a ser feito, com os devidos cuidados, é com as lideranças fascistas que dominaram a política de seus países e destruiram os governos constitucionais na Itália e Alemanha um século atrás.

A inflação de diplomas – 2

Meu artigo recente sobre o crescente descompasso entre a educação superior e o mercado de trabalho no Brasil provocou alguns comentários sobre aspectos importantes do problema que eu não teria como tratar nos limites de espaço de um artigo de jornal. Antônio Augusto Prates, meu colega sociólogo da UFMG, escreve que é o prestígio do diploma, mais do que a busca de qualificação profissional, que tem motivado tanto a procura por educação superior quanto as políticas públicas para o setor. Segundo ele,  “as pessoas estão dispostas a pagar pelas deficiências de formação profissional em troca do acesso à graus superiores na escala de prestígio social. Nesse caso é o mercado de bens simbólicos que afeta sobremaneira as decisões políticas sobre a expansão do ensino superior”.  Eduardo Oliveira Beltrame, cientista catarinense que hoje trabalha no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), menciona a referência que faço aos aspectos mais gerais da educação, como formação cultural, valores e capacidade de aprender, e  diz que,  ‘dada a aceleração das transformações pelas quais a sociedade e mundo passam nos últimos 150 anos, mas sobretudo nas últimas décadas (principalmente mudanças culturais, tecnológicas, ambientais, e os modos de vida decorrentes da nossa avassaladora urbanização), eu penso que estes outros aspectos da educação que transcendem a questão do mercado de trabalho são na verdade os mais importantes”.  E o sociólogo José Pastore, especialista em mercado de trabalho, em comentário enviado ao jornal O Estado de São Paulo,  chama a atenção para o fato de que, no Brasil, a grande maioria das ocupações não requer muita educação. “São ocupações simples, rudimentares, de baixos salários e muita rotatividade: balconistas, ajudantes, garçons, domésticas…”  A educação poderia ajudar mais se os empregos fossem de melhor qualidade, diz ele, mas “isso não mudará de repente porque é reflexo de nossa histórica estrutura de produção”.

Beltrame também pergunta por referências que tratam do tema da educação em sentido mais amplo, que vai além do mercado de trabalho. É importante, aqui, distinguir a educação básica, cujo objetivo é formação geral, da educação superior, em que o tema do mercado de trabalho é mais central, embora não seja o único. Participei alguns anos atrás de um grupo de trabalho de um projeto denominado “International Panel for Social Progress” que preparou um documento que apontava para quatro grandes funções da educação, a formação geral e humanística, a formação para a cidadania, a preparação para o mercado de trabalho e a busca de equidade. Existe uma tradução do texto para o português, e é uma tentativa de dar um panorama bem abrangente do tema, nos diferentes níveis e contextos (Spiel and Schwartzman 2018a; Spiel and Schwartzman 2018b). Sobre a educação superior e sua relação com o mercado de trabalho, recomendaria a visão comparativa proporcionada por Ulrich Teichler, o decano das pesquisas sobre educação superior, em artigo de 2018, entre outros ((Teichler 2018).

O texto de Teichler é importante pela visão comparativa que trás. É muito diferente falar de educação superior em países em que metade ou mais dos jovens chegam a este nível e em outros em que só uns poucos têm este privilégio; e é muito diferente falar em sistemas em que a educação superior está orientada para a formação geral, como nos “colleges”  ingleses, e outros em que ela está estruturada para proporcionar diplomas profissionais, como na tradição francesa que o Brasil herdou. Em todos eles existe sempre a dimensão  simbólica e de prestígio de que fala Prates, mas existe também a expectativa de que o “status” proporcionado pela educação superior traga outros benefícios, como empregos rentáveis e reconhecimento social.

O modelo de Bologna, adotado hoje pela maioria dos países da Europa Ocidental, consiste em levar a educação geral até os três primeiros anos da educação superior, e só a partir daí abrir o leque para a especialização profissional, através de mestrados e cursos mais avançados. O sistema de “colleges”, de educação geral, que o modelo de Bologna adota, tem como origem a experiência extremamente elitista das universidades inglesas e americanas de grande prestígio, como Oxford, Cambridge, Havard e Yale, adotado também pelos chamados “liberal arts colleges” como Amherst, Swarthmore e Wellesley nos Estados Unidos, e outros na Inglaterra como London, Birmingham etc.  São cursos para poucos, muito seletivos, e seus alunos têm acesso praticamente garantido a carreiras de alto prestígio e reconhecimento.  Mas não é nada claro que este modelo possa ser universalizado,  como pretende o processo de Bologna. Na Europa, ao lado das carreiras universitárias tradicionais, os países possuem também amplos sistemas de formação profissional, ou vocacional, que já começa no nível médio, e do qual participa a metade ou mais dos jovens. Nos Estados Unidos, boa parte dos jovens vai para os community colleges de dois anos, e não completam os quatro anos de formação geral. Os dados mais recentes, para a população americana entre 25 e 34 anos, mostram que 91% completam o ensino médio, mas só 38% completam o college de 4 anos, que é considerado como um título pré-universitário (“undergraduate”)[1]. Existam algumas tentativas de desenvolver cursos superiores de formação geral no Brasil, os chamados “bacharelados interdisciplinares”, mas são experiências limitadas e que ainda precisam ser melhor avaliadas.

Finalmente, o comentário de Pastore aponta para o fato, mencionado brevemente em meu artigo, de que a educação, sozinha, é incapaz de criar um mercado de trabalho de alta qualidade e produtividade, como supunha a teoria do “capital humano” desenvolvida pelos economistas da educação. Em muitos países, pessoas altamente qualificadas por universidades locais acabam imigrando para países em que o mercado de trabalho é mais atrativo, da mesma maneira que o capital gerado localmente acaba sendo investido no exterior.  A educação é importante, mas não é capaz de, sozinha, compensar pelas políticas econômicas, financeiras e institucionais inadequadas.

Tudo isto leva a questões importantes de como e quanto o país deve investir nos diferentes tipos e níveis educacionais.  Deveria ser claro que prioridade deveria ser o investimento na educação básica de qualidade, mas a pressão por investimentos em educação média e superior é sempre grande, e recentemente o governo anunciou a intenção de criar mais cem institutos federais de tecnologia, que, ao contrário do que se imagina, não formam pessoas com preparação adequada para o mercado de trabalho, e sim licenciados e bacharéis destinados em grande parte ao subemprego, como ocorre com grande parte dos formados no ensino superior tradicional.

Referências

Spiel, Christiane, and Simon Schwartzman. 2018a. “A contribuição da educação para o progresso social.” Ciência & Trópico 42(1):22-88.

—. 2018b. “The contribution of education to social progress.” Pp. 751-76 in Rethinking Society for the 21st Century, edited by International Panel for Social Progress: Cambridge University Press.

Teichler, Ulrich. 2018. “Higher education and graduate employment: Changing conditions and challenges.” International Centre for Higher Education Research: Kassel, Germany:7-33.


[1] https://data.census.gov/table/ACSST1Y2021.S1501?t=Educational+Attainment&g=010XX00US,$0400000&y=2021

Polarização e calcificação da política brasileira – críticas e comentários

O texto sobre Polarização e calcificação da política brasileira, com observações a respeito do livro Biografia do Abismo, estimulou vários comentários que contribuem para ampliar o entendimento do tema, alguns dos quais estou compartilhando.  Isto me permite também explicar melhor algumas ideias possam ter ficado pouco claras.

Começo pelo registro da mensagem de Felipe Nunes, um dos autores do livro. Escreve Felipe que “do ponto de vista teórico, o paradigma que você apresenta não diverge do nosso quando evoca o Schattschneider. Aprendi a gostar do trabalho dele com o John Zaller no meu doutorado da UCLA. Na minha avaliação, o nosso livro é basicamente a aplicação dessa ideia para o Brasil de 2018 a 2022. Como as elites (pelas redes sociais), em particular o Bolsonarismo, moldaram a opinião pública brasileira, que agora está calcificada. Acho que a nossa diferença está na calcificação. Você acha que coisas como ‘anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso’ podem desfazer a calcificação. Mas pelos dados que a Quaest tem publicado, esses eventos não fazem nem cócegas na polarização da opinião pública. Está tudo calcificado. O raciocínio motivado está ajudando a explicar quase todo tipo de resposta da opinião pública no Brasil. Mas é claro que a calcificação é só uma tese. E como toda boa tese pode e deve ser refutada pela realidade. Vamos ver o que acontece daqui para frente. Queria ser otimista como o senhor sobre os efeitos dos arranjos políticos na opinião pública, mas eu confesso que como bom atleticano, estou pessimista!”.  

Eu não quiz dizer que as acomodações das elites com o fim da Lava Jato e as concessões ao Congresso podem “desfazer” a calcificação,  mas sim que elas ajudam a atenuá-la, e mostram que existem outras coisas na política além da opinião pública. Foi por isto mesmo que achei interessante o artigo comparando as teorias de Downs e Schattschneider.

Nesta linha, o empresário Stefan Bodgan Salej observa que o texto leva a muitas reflexões, uma delas “o papel de grupos empresariais ou econômicos, sejam nacionais ou estrangeiros, no sistema político brasileiro. E aí não só a aliança eleitoral, mas exercício do poder a posteriori, como no exemplo de reforma tributária mais recentemente. Nas grandes empresas brasileiras o cargo mais importante é diretor de relações institucionais, a pessoa que obtém o máximo do estado pelo mínimo de retorno”.

O cientista político e brasilianista Barry Ames me escreve, em inglês, que tem duas observações sobre o artigo. A primeira é que eu deveria ver seu livro recente, com Andy Baker e Lúcio Rennó,  Persuasive Peers: Social Communication and Voting in Latin America (Princeton Univ. Press). “A pesquisa foi feita antes do crescimento dos meios de comunicação social, mas temos muito a dizer sobre o contexto social e comportamento eleitoral. O livro se baseia sobretudo em meus projetos em Juiz de Fora e Caxias do Sul”.  A segunda é que “tem um livro saindo proximamente pela Companhia das Letras por Marcos André Melo e Carlos Pereira intitulado Por que a democracia brasileira não morreu?  De Dilma ao terceiro mandato de Lula.  Eu escrevi a introdução do livro. A tese principal é que as instituições brasileiras são tão fragmentadas que é muito difícil para que um movimento anti-demorático consiga ganhar força no legislativo. Eles argumentam, e eu concordo, qiue Bolsonaro nunca teve chance de instalar o tipo de regime autoritário como os Levitsky e Ziblatt, entre outros, mencionam. A polarização do eleitorado nos Estados Unidos reforça e é reforçada pelo sistema bipartidário. No Brasil isto não pode acontecer (…). Em certo sentido, seu texto reflete a contrapartida do ‘copo meio vazio’ da tese do ‘copo meio cheio’ de Carlos Pereira. Você diz que o sistema brasileiro impede que o país desenvolva as políticas púbicas que tirariam o país da armadilha de renda média. Carlos argumenta que o sistema brasileiro minimiza as chances de um encaminhamento autoritário”. 

Concordo que seria difícil no Brasil fazer uma transição gradual da democracia parlamentar para o autoritarismo como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán, mas um golpe militar simplesmente fecharia o Congresso.

O economista e imortal Edmar Bacha, comentando uma primeira versão do texto, pergunta “se a calmaria se deve à acomodação dos interesses relevantes pelo lulopetismo, significando isto que o bolsonarismo seria uma carta fora do baralho”. “Merecia atenção a diferença do caso americano, onde o trumpismo se alimenta de uma insatisfação com a emigração (como na Europa), com a desindustrialização (provocada pela China e pelas novas tecnologias), e com o identitarismo abraçado pelo Partido Democrata. Quais as “causas”  econômicas correspondentes que alimentam o Bolsonarismo no país? Faltou essa análise, que teria ver possivelmente com a ascensão do agronegócio, além da frustração com o PSDB, cujo lugar agora ocupa o PSD, por enquanto como linha auxiliar do bolsonarismo light”. E conclui dizendo que, “francamente, 60% nem de um lado nem de outro eu queria acreditar, mas me parece um exagero. Será que as eleições municipais deste ano ajudarão a compreender o enigma? Se eu fosse um empirista norte-americano, lhe diria para formular uma hipótese sobre a calcificação que poderia ser falsificada pelas próximas eleições municipais”.

O sociólogo Bernardo Sorj, também comentando uma versão inicial, observa que “o PT  certamente foi um dos construtores da polarização (a herança maldita, as elites, etc.).  A pergunta é porque foi Bolsonaro quem conseguiu mobilizar o  polo  adversário ao PT nas eleições presidenciais, nas quais o binarismo ideológico no Brasil tem  peso.    Acredito que um elemento central foi explicitar uma agenda que conseguiu  aglutinar os evangélicos e católicos conservadores, algo a que o polo tradicional ao PT, o PSDB,   nunca foi sensível. Você está certo de que a eleição de 2018 foi o momento alto da polarização, em particular pelo  efeito Lava-jato. Bolsonaro, apesar de 4 anos na presidência ,não conseguiu manter o nível de polarização”. E finalmente observa que “o problema histórico é sobre o papel do game changer (Mussolini, Hitler casos extremos). Quanto estava escrito na estrutura social e quanto depende da iniciativa dos operadores políticos? O razoável é pensar que se trata de uma mistura de ambos em cada situação histórica.  E o papel do efeito demonstração.  O efeito Trump e da nova extrema direita nos Estados Unidos e suas técnicas de atuação, ao igual que o fascismo, se espalharam pelo mundo”.

O cientista político Sérgio Fausto comenta que  “o ‘acordão’ por cima pode perfeitamente coexistir, até o início do novo ciclo d eleições gerais, com a polarização na sociedade. Ou seja, a tese da calmaria não conflita necessariamente com a da ossificação (em tempo: quando falo em eleições gerais, me refiro às presidenciais, para o Congresso e os governos estaduais). Penso que a tese da ossificação (um termo excessivo por indicar uma rigidez que o quadro não parece ter) é compatível com o modelo do ‘semi-sovereign people’. Os dois campos estão assentados em organizações bem estruturadas e capilares: família militar, inclusive polícia, e igrejas evangélicas, de um lado; PT, sindicatos, movimentos e ONGs de esquerda, de outro. Acho que a polarização depende muito dos personagens do drama. A ausência de Bolsonaro do cenário eleitoral, mas não político, abre uma brecha; enquanto o Lula aí estiver, porém, a brecha não se abrirá muito. Você tem toda razão que o que conta é o cálculo eleitoral e não uma ‘intervenção esclarecida das elites’ (a inclinação autoritária do argumento não passa despercebida). Em termos práticos, penso que devemos insistir na tese de que o quadro é mais maleável do que pintam os autores. E ir plantando. Colher mesmo, acho que só depois de 2026.”

O cientista político Edson de Oliveira Nunes escreve, no Facebook, que “quem sabe vale lembrar também o trabalho de Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage, 2020) que argumenta que a cosmovisão à nova destra é mais ‘completa’ que aquela à sinistra em termos de apelo popular”. Fica a recomendação.

Finalmente, o cientista político Paulo Elpídio Menezes Neto também se vale do Facebook para questionar se de fato o 8 de janeiro de 2023 pode ser descrito como tentativa de golpe de estado. Segundo ele, “associar as manifestações de 8 de janeiro a uma ‘tentativa de golpe de estado’ constitui uma redução desviante, muito parecida com outros episódios da história recente. Vide Weimar”. “Não se pode falar em golpe de estado”, argumenta, “por conta de algumas vidraças e de um relógio de antiquários. Ademais, a infiltração por grupos black blocs nunca foi suficientemente esclarecida. Nem as armas do ‘levante’ encontradas entre os 1400 derrotistas recolhidos à Papuda…”

Eu acredito que houve realmente uma tentativa de golpe de estado, da qual a invasão do Planalto seria somente o estopim para que as forças armadas assumissem o poder e suspendessem o resultado das eleições invocando seu suposto  “poder moderador”.  Não faltam outros elementos para corroborar isto, como as tentativas anteriores de desmoralizar as urnas eletrônicas, o abandono intencional da segurança do Planalto pelo governo do Distrito Federal e setores do Exército, assim como a minuta do golpe encontrada na residência de Anderson Torres, as reiteradas referências de Bolsonaro a “minhas forças armadas” e os encontros pouco explicados com figuras estranhas como Daniel Silveira, Marcos do Val e Walter Delgatti.  Mas, como tantas outras ações do grupo de Bolsonaro, foi tudo feito incompetentemente, como um exército Brancaleone que nunca conseguiu se organizar. Nenhum dos mentores desta tentativa estava entre os 1400 que acreditaram neles e acabaram sendo levados para a Papuda, e nenhum destes mentores foi indiciado pela justiça até agora.

Acendendo uma vela

Capa da revista Mosaico, do Diretório Central dos Estudantes da UFMG, 1961. (Ilustração de Amaury Guimarães de Souza).

A pedido da International Review of Educational Development, escrevi um pequeno ensaio refletindo sobre minha experiência de participação em estudos e elaboração de propostas de políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia e educação. Como é para um público internacional, achei que deveria também descrever o contexto destas experiências, desde meus tempos de faculdade em Minas Gerais na década de 60. O artigo se chama “Lighting a candle” – acendendo uma vela – e o texto, em inglês, está disponível aqui.

Eu concluo dizendo que não tenho certeza de ter tido sempre razão nas políticas que propus e nas ideias que defendi ao longo destes anos. O certo é que minhas proposições quase sempre ficavam em minoria. Minha explicação é que a escolha e implementação de políticas públicas é determinada sobretudo por uma combinação de inércia e preservação de interesses estabelecidos, e não pelo mérito das propostas, força dos argumentos ou qualidade das evidências. Pelas decisões feitas e não feitas, o Brasil tem um sistema educativo caro, inchado, ineficiente e muito resistente a buscar alternativas que poderiam levar a bons resultados se fossem postas em prática. Tomara que as coisas melhorem no futuro, o que compensaria ter passado tantos anos segurando uma vela acesa e algumas vezes queimando meus dedos

As guerras de cada um

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de novembro de 2023)

Existiram um dia a Ucrânia, Palestina, Israel, e têm direito de continuar existindo? Como?  São perguntas que afloram ao ler “A Ucrânia de cada um”, livro organizado por Flávio Limoncic e Mônica Grin na emoção da guerra fraticida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também fraticida batalha de Gaza. Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia, nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste Europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram suas vidas no Brasil e outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passaram. E estes, estimulados a construir suas vidas no novo mundo, olhavam para frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais.

Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar, e é preciso lembrar de onde viemos.  Os velhos se foram, os filhos e netos amadureceram, e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e fotografias, em registros e nas redes de Internet, as histórias de seus pais e o sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no domínio de cada uma das antiga cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia, Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kischinev – quase todas hoje partes da Ucrânia, Moldova e Polônia.

As histórias familiares fazem parte da identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Dado o que passou, é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local, baseada em uma língua comum e instituições comunitárias, de cunho religioso ou não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão em uma importante tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as Américas, e que aos poucos vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à tradição do messianismo religioso do “hassidismo”, seja no sionismo secular em suas diferentes vertentes. Ou finalmente pela busca de identidades novas: participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fosse o nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e cultura de países europeus como a Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão bem-sucedida quanto  o foi nos Estados Unidos e Europa Ocidental

A Ucrânia foi por muito tempo lugar de coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica, mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser reconhecidos e apreciados.

Meu tataravô materno, no século 19, fazia parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões religiosas, terminar sua vida  em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola,  onde nasceu minha mãe.  Meu pai se dizia romeno, nascido em uma das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa, hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.

Nada disto nos dá uma solução simples para as guerras de hoje, mas fica, pelo menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar. Na apresentação do livro, Flávio e Mônica citam a  Bashevis Singer dizendo que, na língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios militares ou táticas de guerra. Hoje são estas as palavras que mais se ouvem nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da primeira grande guerra. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.

José Murilo de Carvalho

Triste a perda de José Murilo hoje. Fomos colegas do curso de sociologia e política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, completamos os estudos de doutorado na mesma época, convivemos por anos como professores do IUPERJ no Rio de Janeiro, com ele se vai mais um pedaço importante de nossa história. De um jeito tímido, calado, Murilo olhava com desconfiança as pretensões e devaneios teóricos e filosóficos dos colegas, e se aferrava ao chão firme dos fatos. Sua tese de doutorado, na Universidade de Stanford, foi uma pesquisa histórica sobre a formação das elites imperiais brasileiras, e a partir daí foi se desenvolvendo com um dos principais historiadores do país. Quando, nos anos 70, eu coordenava uma pesquisa sobre a história da ciência no Brasil, lhe pedi que fizesse um trabalho sobre a Escola de Minas de Ouro Preto, e o resultado foi, como tudo que fazia, uma joia de documentação e interpretação histórica.

Murilo escreveu muito sobre a República brasileira, que sempre via com olhar crítico, e admirava os grandes estadistas do Brasil imperial, dos quais falava como se os tivesse conhecido pessoalmente. Escreveu um livro dedicado ao Imperador D. Pedro II, de cujos méritos (do Imperador, não do livro) nunca chegou a me convencer. Quando, em 1993, houve o plebiscito para que o país escolhesse entre parlamentarismo e presidencialismo, ele foi um dos poucos que defenderam a monarquia. Perguntei a ele, na época, por que a defendia, e resposta foi que, afinal, alguém precisava fazer isso.

O monarquismo de Murilo não passava, nem de longe, pela defesa da escravidão, nem era uma crença tola das virtudes do regime imperial. O que ele buscava destacar, nestes como em outros escritos, era o valor do espírito público e a admiração pelas pessoas que trabalhavam sem concessões pelas ideias e causas que julgavam justas. Como ele.

Que descanse em paz, Zé.

SUCATA – os que voltam

Depois de publicar o texto sobre os altos níveis de abandono dos estudantes de nível superior no Brasil, tomei conhecimento do artigo de Felipe Tumenas Marques, do ano 2020, com dados inéditos sobre os estudantes que voltam a se matricular no ensino superior depois que abandonam. O artigo, “The return to higher education of dropout students in Brazil.” Cadernos de Pesquisa 50: 1061-1077, está disponível aqui. A pesquisa foi feita identificando os alunos que abandonaram os cursos no período 2009 a 2017, e verificando se eles retornaram depois. O artigo também menciona outros estudos sobre o tema que existem.

A boa notícia é que metade dos que se desligam voltam a estudar em algum momento depois, muitos no mesmo ano ou no ano seguinte. É possível também que haja um problema no registro do censo, pessoas que aparecem como tendo abandonado e depois retornado de fato tenham simplesmente se transferido de um curso básico para uma área de formação específica, ou de uma licenciatura para um bacharelado (agradeço a Renato Pedrosa por ter chamado minha atenção para esta possibilidade). Então, a situação não é tão grave quanto a que eu havia indicado.

A pesquisa detalha mais a informação, mostrando, por exemplo, que cerca de 30% dos que se desligam se matriculam em outra instituição no mesmo ano, e 10% no ano seguinte; que só cerca de metade se rematricula na mesma cidade; e que a maioria dos que se desligam de instituiçoes públicas se rematriculam em instituições privadas.

Pode ser que, no setor público, parte da explicação seja que muitos estudantes que fazem o ENEM só conseguem se matricular em instituições distantes, ou em outras carreiras que não as preferidas; ou que procurem cursos menos exigentes. Os dados não indicam quantos dos que se rematriculam finalmente concluem os cursos e quantos voltam a abandonar, o que significa que continuamos sem saber bem a proporção dos que realmente abandonam os estudos definitivamente.

De qualquer maneira, os índices de abandono são altos, e a alta circulação de estudantes entre cursos e instituições indica também ineficiências no sistema. Ainda bem que a situação é menos grave do que parece à primeira vista, e existem pesquisadores tratando de conhecer melhor o que está ocorrendo. O próximo passo será entender melhor e começar a lidar com o problema.

O Mundo que se Pensa: Homenagem a Bruno Latour

Estou compartilhando o convite para o evento organizado pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo dedicado a a rever a obra do autor que faleceu no dia 09 de outubro de 2022, no qual terei prazer em participar.

Quando: dia 22/03/2023, das 9:30 às 12:30
Onde: Sala Alfredo Bosi, Rua Praça do Relógio, 109, Cidade Universitária, São Paulo. Haverá também transmissão on line.

Este evento integra a programação do mois de la Francophonie.

Abertura: Guilherme Ary Plonski (IEA-USP) e Nadège Mezié (Consulado Geral da França em São Paulo)

Exposição:

Simon Schwartzman (Departamento de Política Científica e Tecnológica, IGC/Unicamp)

Stelio Marras (IEB-USP)

Michel Lussault (Ecole Normale Supérieure de Lyon) – online

Moderação:

Elizabeth Balbachevsky (DCP/IEA/NUPPS-USP)

Leitura de trechos da obra de Bruno Latour:

Isaque Almeida (France Alumni Bresil)

Transmissão:

Acompanhe a transmissão do evento em www.iea.usp.br/aovivo

Inscrições

Evento público e gratuito | Sem inscrição

Evento em português/francês | Com tradução simultânea

Não haverá certificação

Organização

Consulado-Geral da França em São Paulo

IEA

Apoio

France Alumni Brasil

Heloisa Pait: Meus professores da Fefeleche

(Estudante da FEA-USP de 1986-89)

Francisco Weffort, Paula Montero, Chico de Oliveira, Beth Lobo, Ruy Fausto e Regis Andrade.

Esses são os professores da Fefeleche que fizeram parte de minha formação. A Beth Lobo nos deu para ler L’Établi, um relato da experiência do autor como operário numa fábrica da Citroën, uma coisa totalmente diferente do que víamos na FEA, e que me encantou. Ela insistia para eu mudar para a sociais, e de algum modo, mudei. Beth Lobo faleceu muito cedo, e confesso que escrevendo agora sinto falta dela. Queria poder falar com ela, já madura, professora, doutora, das fábricas por onde passei.

Ruy Fausto faleceu recentemente, e busquei seus cursos como quem busca no shopping a melhor loja e nela a melhor roupa. Queria um marxismo puro e correto, a lente perfeita para ver o mundo, e nisso não me decepcionei: estava ali um marxismo rigoroso, que analisava até os travessões do texto, as movimentações dos capítulos, a dança dos conceitos. De vez em quando me voltam à cabeça os modos de produção e as formas de cooperação, e vai saber se não são as aulas herméticas do professor buscando seus sentidos no mundo real.

Do Regis, também falecido cedo, lembro que nos deu coisas que não imaginávamos obter: nos deu a liberdade para a pesquisa e o foco também. Tinha perguntas claras e queria que nós fôssemos lá fuçar e descobríssemos. Está entre meus melhores professores de todos os tempos, não só da graduação, mas da vida. Ousou demais, e isso lhe permitia deixar que ousássemos. Dirigia como um doido, mas nas nossas reuniões de pesquisa ouvia atento, sem pressa, com perguntas pausadas, como se nos assistisse. Sentíamo-nos gente, e quando dou uma boa aula penso nele.

A Paula Montero, desses todos, é a que está viva. Fiz um curso com ela dado pelos três departamentos das sociais, sobre o pensamento social brasileiro. O curso foi excelente, e das aulas dela me lembro dos seus olhos, grandes e saltados, que já exigiam de nós uma acomodação. Acho que entendi naquele curso a própria idéia de pensamento, de um conjunto de autores e textos que pode ser interrogado, analisado de modo ponderado. Dos cursos da tradição uspiana de exegese textual, esse é o que ficou, pois descortinava os elos entre a exegese e a vida mundana.

Acho que o curso que fiz com o Chico de Oliveira era sobre estrutura de classe e estratificação social. E penso que o curso do Weffort era sobre a América Latina, mas esse não encontro no meu currículo, talvez tenha feito como ouvinte. Os cursos estão embaralhados em minha memória. Lembro que Chico de Oliveira tinha mais certezas, Weffort mais dúvidas. Um deles subiu até a porta, numa sala em auditório, para pedir a um aluno que estava olhando pelo visor para entrar na aula, ou sair da porta, pois aquela posição ali de vigia lhe lembrava os tempos da ditadura.

Ambos eram uma ponte entre aquele “tempo da ditadura” e os novos tempos, tempos da democracia, que eles procuravam entender, como o Regis, ainda atarantados com esse novo regime, votos, partidos, eleições. Todos, na verdade, eram essa ponte, alguns ignorando uma transição que tinha acabado de acontecer, buscando as forças profundas da sociedade, outros reconhecendo que algo havia mudado e era preciso compreender, como o Regis e o Weffort.

Esses professores, é preciso dizer, acolhiam a nós, “economistas”, numa universidade onde alunos de outros cursos não eram necessariamente bem recebidos, nem na FEA nem na FFLCH. Éramos das primeiras turmas de uma tal resolução 3045, do reitor Goldemberg, que permitia que fizéssemos matérias em outras unidades. Mas nem todos os professores e funcionários gostavam da idéia, criando toda a sorte de obstáculos. Então só o fato de terem nos aceitado nas aulas e ainda nos tomado como interlocutores já diz muito sobre cada um.

Do Weffort, lembro ainda, com carinho, que me indicou para fazer minha primeira pesquisa com o Regis, ou seja, meu primeiro emprego. Ele também leu minha monografia, uma leitura de Dependência e Desenvolvimento, de Fernando Henrique Cardoso, a partir da leitura de Karl Marx do Ruy Fausto, ou seja, um exercício de crítica e interpretação. Ele aceitou conversar comigo numa tarde ensolarada, no Cedec. Sobre a monografia, olhou para mim de igual para igual, como leitor mesmo, e me fez uma pergunta que ainda ouço, quando escrevo coisas assim meio abstratas: “Tá. E daí?”

Não soube responder, mas não importa. Boas perguntas são assim, ficam penduradas na cabeça da gente, à espera do encontro com alguma possível resposta. Cada um desses professores, de um jeito, faz parte do que eu escrevo hoje, seja me levando para viagens mágicas, seja me trazendo para o mundo social. Cada um deles me interroga, seja me chamando a tomar posições, me exigindo rigor conceitual, me instando a compreender melhor o momento e meu lugar nele. E me interrogando, como Weffort, que consequências terão, afinal de contas, o nosso trabalho, sobre as vidas das pessoas.

O sábio e os sabidos

(publicado em O Estado de São Paulo, 13 de agosto de 2021)

“Vem me fazer uma visita”, me disse José Arthur Giannotti, da última vez que nos vimos, em um seminário no Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disse que ia, lembrando de outras ocasiões em que me recebeu em sua casa no Morumbi, falando sobre os temas de filosofia, política e das pessoas que o fascinavam. Acabei não indo, e agora ele nos deixou. O encontro anterior havia sido em um voo desde Brasília em que nos encontramos e no qual ele falou longamente sobre o que estava escrevendo sobre Wittgenstein. No final perguntou se eu estava entendendo, eu disse que sim, e ele sorriu, contente, “viu como é simples? Até você entende!”. 

Na verdade não havia entendido direito, hoje acho que compreendo melhor. Se Giannotti era tão difícil de entender, tanto por escrito quanto falando, como explicar o grande sentimento de perda de tanta gente, agora que ele se foi? Não deve ser só por sua produção como filósofo, cujo valor cabe aos colegas de profissão avaliar.  Para os demais, foi sem dúvida importante sua presença e liderança na vida intelectual brasileira que começa na antiga Faculdade de Filosofia da USP na Rua Maria Antônia, continua no famoso grupo de leitura de “O Capital” nos anos 50 e 60, e se prologa nos anos em que presidiu  e participou do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP, a instituição criada pelos professores de filosofia e ciências sociais que, como ele, haviam sido expulsos da USP pelo regime militar. Mais importante, no entanto, eram a  permanente abertura e disposição para o debate e o diálogo, contestando certezas estabelecidas, trazendo ideias inesperadas, e fazendo pensar.

Mas, o que pensava Giannotti, que ideias defendia? O que me parece que ele recupera de Wittgenstein, nos escritos mais recentes, é a noção de que os conhecimentos não se dão de forma abstrata, pelo exercício formal da lógica e da dedução, mas a partir de jogos da interação  e convivência social, que  geram  mundos compartilhados de “jogos de linguagem”,  em cujo interior adquirem  significado.  A vida social supõe um esforço constante para construir novos significados, sendo o desafio a expansão de jogos de linguagem abertos ao diálogo e convivência  plural. O mundo da ciência, da tecnologia, da vida em sociedade, das relações de poder e dos conflitos, tudo isto tem origem nestas linguagens compartilhadas, o que leva a uma agenda política que é a da recuperação desta humanidade comum que nos une, inclusive a nossos adversários.

É tudo muito abstrato, mas se torna mais claro quando se lê seu livro sobre a “Universidade em Ritmo de Barbárie”,  escrito em 1986, refletindo sobre os trabalhos da Comissão Nacional de Reformulação da Educação Superior criada nos primeiros anos da Nova República.  O desafio de então, como o de hoje, era como defender e valorizar uma universidade e  uma comunidade científica que haviam sido violentamente atacadas pelo governo militar, e fazer com que elas, na democracia que se abria, não sucumbissem à lógica dos interesses corporativos que colocavam em risco sua própria razão de ser, e abrissem espaços para o diálogo e o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. “A universidade moderna”,  diz ele, “configura uma enorme máquina, altamente sofisticada e complexa, que engole e produz saberes, sábios e sabidos”.  O sábio é quem ensina, pesquisa, questiona, serve de modelo e forma seus alunos.  É quem dialoga, retomando e ampliando os jogos de linguagem da comunicação. O sabido é quem se aproveita da lógica institucional para amealhar vantagens, posições de prestígio e de poder.

Não são entes totalmente distintos, o sábio precisa também ser sabido para sobreviver na máquina universitária.  Mas é fundamental preservar a missão central da vida universitária, e para isto, nos diz Giannotti, é  preciso isolar o sabido, uma tarefa quase impossível, porque a lógica dos interesses de curto prazo fez com que a universidade brasileira se tornasse uma “fábrica de sabidos” . As avaliações externas, os processos internos de seleção de dirigentes baseados na qualidade acadêmica, o fortalecimento da natureza pública das instituições educacionais, sejam elas estatais ou privadas, são alguns dos mecanismos necessários para evitar que a voracidade dos sabidos não termine por sufocar as instituições de ensino e pesquisa de que se alimentam.

O mundo da comunicação e do diálogo que buscava Giannotti não era o mundo falsamente harmônico que esconde a desigualdade, a pobreza e a exploração. Giannotti se formou no ambiente intelectual francês de crítica e revisionismo do marxismo, onde se buscava resgatar as preocupações centrais de Marx com a exploração capitalista e a miséria, sem cair na aberração do totalitarismo do “socialismo real”.  Sem tentar escapar do mundo moderno da tecnologia, da burocracia, das grandes corporações e das redes de comunicação, mas criticando a desigualdade, a alienação e o mundo frenético e empobrecido dos sabidos que produz, Giannotti se manteve sempre como o sábio do pensamento independente, crítico, e do diálogo.

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