Saúde e morte das democracias

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de agosto de 2024)

Em Por que a democracia brasileira não morreu? (Companhia das Letras, 2024), Marcus André Melo e Carlos Pereira argumentam que ela é mais forte do que se pensa, graças à complexidade dos interesses diversos própria do chamado “presidencialismo de coalizão”.   Bolsonaro tentou, mas não teve força suficiente para contrariar os interesses consolidados no legislativo, judiciário, governos estaduais e na burocracia pública, incluindo parte importante das forças armadas. Em diversos momentos, setores ligados ao PT tentaram governar sozinhos, mas não conseguiram. A arte de governar consistiria em reconhecer como legítima e negociar com esta pluralidade de interesses setoriais e particulares, e assim obter apoio para políticas mais amplas que possam ser de interesse geral, como o controle da inflação, o crescimento da economia e a redução da violência.

Claro que estas políticas serão sempre menos perfeitas na democracia do que se fossem implementadas por um governo idealmente todo-poderoso, mas também menos sujeitas a grandes desastres. A democracia, na frase famosa de Churchill, é a menos ruim entre as diversas formas de governo e, bem ou mal, temos feito progresso. Se equivocariam, assim, os que acreditam que a democracia está em crise. Como Felipe Nunes e Thomas Traumann, que, em livro recente, dizem que, por causa da polarização, o Brasil como um todo, e não só o sistema político, entrou em um abismo (Biografia do abismo, Harper, 2023). Ou Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que, alguns anos antes, mostraram em detalhe como as democracias morrem por dentro (How democracies die, Crown, 2018).

O livro de Melo e Pereira ajuda muito a entender como funciona nosso sistema político, mas, ao afastar o medo da morte, corre o risco de fazermo-nos despreocupar com sua saúde. É sem dúvida importante reconhecer e dar legitimidade à pluralidade de interesses na sociedade, mas não é saudável que o sistema eleitoral funcione de maneira tal que os eleitores não sabem quem elegem para o Congresso, que parte crescente do orçamento federal seja destinado a emendas parlamentares de destinação desconhecida, que o aumento dos gastos seja sempre superior ao aumento dos impostos, e que os governos, em seus diferentes níveis, não consigam desenvolver políticas efetivas para lidar com a baixa produtividade, desigualdade econômica, educação, pobreza, violência pública e deterioro ambiental.  Assim como é não é normal que o judiciário sistematicamente livre os políticos de processos por corrupção, e que tantos interesses privados sejam protegidos por isenções fiscais e parcerias pouco claras com agências governamentais. Os autores reconhecem estes problemas, mas argumentam que eles não se devem a “patologias imaginárias” do sistema político, como as deformações do sistema de representação proporcional e do multipartidarismo, mas à falta de mecanismos efetivos de controle, que deveriam se fortalecer em função da disputa eleitoral a alternância no poder.  Não parece, no entanto, que o processo político brasileiro desde o fim do regime militar tenha tido este efeito.

São duas as principais doenças de nossa democracia de coalizão que deveriam nos preocupar.  São enfermidades crônicas, mas vêm se agravando, e não podem ser simplesmente ignoradas pelo “business as usual” da política. A primeira é quando o custo da conciliação e cooptação dos diversos interesses se torna alto demais em comparação com os benefícios que a estabilidade pode trazer. Aqui, é importante não confundir a repartição de benefícios e vantagens com formas descentralizadas de governo, que podem ser superiores à de um executivo todo-poderoso. A segunda é a perda de legitimidade do sistema político quando se torna claro que a lógica do toma-lá-dá-cá prevalece sobre o interesse geral da população. A primeira doença corrói a democracia por dentro, fazendo com que ela se torne cada vez mais disfuncional; a segunda doença a ameaça de fora, destruindo instituições e colocando o país nas mãos de demagogos.

O Brasil tem uma grande concentração de riqueza, e muitos setores, ricos e pobres, que vivem da apropriação das rendas geradas pelos setores mais produtivos. É fato que muitas destas desigualdades e privilégios estão hoje consagrados na Constituição, como se fossem direitos, mas é fato também que a Constituição está longe de ser imutável. A função da política não pode ser, simplesmente, a de manter os diferentes setores satisfeitos, como se fossem imutáveis, ao pêndulo da alternância de poder, e atender os interesses gerais da sociedade com os recursos que sobram, se é que sobram. Em uma democracia, a política é também uma disputa permanente para alterar a distribuição da riqueza e do poder. Isto se faz tanto através dos mecanismos regulares de participação política, as eleições, como também pela disputa de ideias, o trabalho de convencimento pelos meios de comunicação e diferentes formas de participação social e política, incluindo a atividade empresarial, os movimentos religiosos e as sociedades civis de diferentes tipos. A política vai muito além do jogo partidário e eleitoral, e é isto que a torna arriscada, mas também relevante e necessária.

Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca /  Selo Real, 2021)

Polarização e calcificação da política brasileira – críticas e comentários

O texto sobre Polarização e calcificação da política brasileira, com observações a respeito do livro Biografia do Abismo, estimulou vários comentários que contribuem para ampliar o entendimento do tema, alguns dos quais estou compartilhando.  Isto me permite também explicar melhor algumas ideias possam ter ficado pouco claras.

Começo pelo registro da mensagem de Felipe Nunes, um dos autores do livro. Escreve Felipe que “do ponto de vista teórico, o paradigma que você apresenta não diverge do nosso quando evoca o Schattschneider. Aprendi a gostar do trabalho dele com o John Zaller no meu doutorado da UCLA. Na minha avaliação, o nosso livro é basicamente a aplicação dessa ideia para o Brasil de 2018 a 2022. Como as elites (pelas redes sociais), em particular o Bolsonarismo, moldaram a opinião pública brasileira, que agora está calcificada. Acho que a nossa diferença está na calcificação. Você acha que coisas como ‘anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso’ podem desfazer a calcificação. Mas pelos dados que a Quaest tem publicado, esses eventos não fazem nem cócegas na polarização da opinião pública. Está tudo calcificado. O raciocínio motivado está ajudando a explicar quase todo tipo de resposta da opinião pública no Brasil. Mas é claro que a calcificação é só uma tese. E como toda boa tese pode e deve ser refutada pela realidade. Vamos ver o que acontece daqui para frente. Queria ser otimista como o senhor sobre os efeitos dos arranjos políticos na opinião pública, mas eu confesso que como bom atleticano, estou pessimista!”.  

Eu não quiz dizer que as acomodações das elites com o fim da Lava Jato e as concessões ao Congresso podem “desfazer” a calcificação,  mas sim que elas ajudam a atenuá-la, e mostram que existem outras coisas na política além da opinião pública. Foi por isto mesmo que achei interessante o artigo comparando as teorias de Downs e Schattschneider.

Nesta linha, o empresário Stefan Bodgan Salej observa que o texto leva a muitas reflexões, uma delas “o papel de grupos empresariais ou econômicos, sejam nacionais ou estrangeiros, no sistema político brasileiro. E aí não só a aliança eleitoral, mas exercício do poder a posteriori, como no exemplo de reforma tributária mais recentemente. Nas grandes empresas brasileiras o cargo mais importante é diretor de relações institucionais, a pessoa que obtém o máximo do estado pelo mínimo de retorno”.

O cientista político e brasilianista Barry Ames me escreve, em inglês, que tem duas observações sobre o artigo. A primeira é que eu deveria ver seu livro recente, com Andy Baker e Lúcio Rennó,  Persuasive Peers: Social Communication and Voting in Latin America (Princeton Univ. Press). “A pesquisa foi feita antes do crescimento dos meios de comunicação social, mas temos muito a dizer sobre o contexto social e comportamento eleitoral. O livro se baseia sobretudo em meus projetos em Juiz de Fora e Caxias do Sul”.  A segunda é que “tem um livro saindo proximamente pela Companhia das Letras por Marcos André Melo e Carlos Pereira intitulado Por que a democracia brasileira não morreu?  De Dilma ao terceiro mandato de Lula.  Eu escrevi a introdução do livro. A tese principal é que as instituições brasileiras são tão fragmentadas que é muito difícil para que um movimento anti-demorático consiga ganhar força no legislativo. Eles argumentam, e eu concordo, qiue Bolsonaro nunca teve chance de instalar o tipo de regime autoritário como os Levitsky e Ziblatt, entre outros, mencionam. A polarização do eleitorado nos Estados Unidos reforça e é reforçada pelo sistema bipartidário. No Brasil isto não pode acontecer (…). Em certo sentido, seu texto reflete a contrapartida do ‘copo meio vazio’ da tese do ‘copo meio cheio’ de Carlos Pereira. Você diz que o sistema brasileiro impede que o país desenvolva as políticas púbicas que tirariam o país da armadilha de renda média. Carlos argumenta que o sistema brasileiro minimiza as chances de um encaminhamento autoritário”. 

Concordo que seria difícil no Brasil fazer uma transição gradual da democracia parlamentar para o autoritarismo como ocorreu na Hungria de Viktor Orbán, mas um golpe militar simplesmente fecharia o Congresso.

O economista e imortal Edmar Bacha, comentando uma primeira versão do texto, pergunta “se a calmaria se deve à acomodação dos interesses relevantes pelo lulopetismo, significando isto que o bolsonarismo seria uma carta fora do baralho”. “Merecia atenção a diferença do caso americano, onde o trumpismo se alimenta de uma insatisfação com a emigração (como na Europa), com a desindustrialização (provocada pela China e pelas novas tecnologias), e com o identitarismo abraçado pelo Partido Democrata. Quais as “causas”  econômicas correspondentes que alimentam o Bolsonarismo no país? Faltou essa análise, que teria ver possivelmente com a ascensão do agronegócio, além da frustração com o PSDB, cujo lugar agora ocupa o PSD, por enquanto como linha auxiliar do bolsonarismo light”. E conclui dizendo que, “francamente, 60% nem de um lado nem de outro eu queria acreditar, mas me parece um exagero. Será que as eleições municipais deste ano ajudarão a compreender o enigma? Se eu fosse um empirista norte-americano, lhe diria para formular uma hipótese sobre a calcificação que poderia ser falsificada pelas próximas eleições municipais”.

O sociólogo Bernardo Sorj, também comentando uma versão inicial, observa que “o PT  certamente foi um dos construtores da polarização (a herança maldita, as elites, etc.).  A pergunta é porque foi Bolsonaro quem conseguiu mobilizar o  polo  adversário ao PT nas eleições presidenciais, nas quais o binarismo ideológico no Brasil tem  peso.    Acredito que um elemento central foi explicitar uma agenda que conseguiu  aglutinar os evangélicos e católicos conservadores, algo a que o polo tradicional ao PT, o PSDB,   nunca foi sensível. Você está certo de que a eleição de 2018 foi o momento alto da polarização, em particular pelo  efeito Lava-jato. Bolsonaro, apesar de 4 anos na presidência ,não conseguiu manter o nível de polarização”. E finalmente observa que “o problema histórico é sobre o papel do game changer (Mussolini, Hitler casos extremos). Quanto estava escrito na estrutura social e quanto depende da iniciativa dos operadores políticos? O razoável é pensar que se trata de uma mistura de ambos em cada situação histórica.  E o papel do efeito demonstração.  O efeito Trump e da nova extrema direita nos Estados Unidos e suas técnicas de atuação, ao igual que o fascismo, se espalharam pelo mundo”.

O cientista político Sérgio Fausto comenta que  “o ‘acordão’ por cima pode perfeitamente coexistir, até o início do novo ciclo d eleições gerais, com a polarização na sociedade. Ou seja, a tese da calmaria não conflita necessariamente com a da ossificação (em tempo: quando falo em eleições gerais, me refiro às presidenciais, para o Congresso e os governos estaduais). Penso que a tese da ossificação (um termo excessivo por indicar uma rigidez que o quadro não parece ter) é compatível com o modelo do ‘semi-sovereign people’. Os dois campos estão assentados em organizações bem estruturadas e capilares: família militar, inclusive polícia, e igrejas evangélicas, de um lado; PT, sindicatos, movimentos e ONGs de esquerda, de outro. Acho que a polarização depende muito dos personagens do drama. A ausência de Bolsonaro do cenário eleitoral, mas não político, abre uma brecha; enquanto o Lula aí estiver, porém, a brecha não se abrirá muito. Você tem toda razão que o que conta é o cálculo eleitoral e não uma ‘intervenção esclarecida das elites’ (a inclinação autoritária do argumento não passa despercebida). Em termos práticos, penso que devemos insistir na tese de que o quadro é mais maleável do que pintam os autores. E ir plantando. Colher mesmo, acho que só depois de 2026.”

O cientista político Edson de Oliveira Nunes escreve, no Facebook, que “quem sabe vale lembrar também o trabalho de Jonathan Haidt, The Righteous Mind: Why Good People Are Divided by Politics and Religion (Vintage, 2020) que argumenta que a cosmovisão à nova destra é mais ‘completa’ que aquela à sinistra em termos de apelo popular”. Fica a recomendação.

Finalmente, o cientista político Paulo Elpídio Menezes Neto também se vale do Facebook para questionar se de fato o 8 de janeiro de 2023 pode ser descrito como tentativa de golpe de estado. Segundo ele, “associar as manifestações de 8 de janeiro a uma ‘tentativa de golpe de estado’ constitui uma redução desviante, muito parecida com outros episódios da história recente. Vide Weimar”. “Não se pode falar em golpe de estado”, argumenta, “por conta de algumas vidraças e de um relógio de antiquários. Ademais, a infiltração por grupos black blocs nunca foi suficientemente esclarecida. Nem as armas do ‘levante’ encontradas entre os 1400 derrotistas recolhidos à Papuda…”

Eu acredito que houve realmente uma tentativa de golpe de estado, da qual a invasão do Planalto seria somente o estopim para que as forças armadas assumissem o poder e suspendessem o resultado das eleições invocando seu suposto  “poder moderador”.  Não faltam outros elementos para corroborar isto, como as tentativas anteriores de desmoralizar as urnas eletrônicas, o abandono intencional da segurança do Planalto pelo governo do Distrito Federal e setores do Exército, assim como a minuta do golpe encontrada na residência de Anderson Torres, as reiteradas referências de Bolsonaro a “minhas forças armadas” e os encontros pouco explicados com figuras estranhas como Daniel Silveira, Marcos do Val e Walter Delgatti.  Mas, como tantas outras ações do grupo de Bolsonaro, foi tudo feito incompetentemente, como um exército Brancaleone que nunca conseguiu se organizar. Nenhum dos mentores desta tentativa estava entre os 1400 que acreditaram neles e acabaram sendo levados para a Papuda, e nenhum destes mentores foi indiciado pela justiça até agora.

Polarização e calcificação da política

Em artigo recente, escrito um ano após a tentativa de golpe de estado de janeiro de 2023, afirmei que a polarização ideológica, que teria dominado a política brasileira até as eleições de 2022, parecia ter arrefecido.Vários leitores discordaram, se referindo à Biografia do Abismo – como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil, livro recente de Felipe Nunes e Thomas Traumann (Harper Collins, 2023).  O livro faz uso abundante de dados de pesquisas de opinião realizadas pela empresa Quaest, dirigida por Nunes, e busca interpretar o que está ocorrendo no Basil no contexto mais amplo de fortalecimento da direita e de polarização política em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. A tese principal do livro é que a política brasileira se calcificou em polos antagônicos, cuja radicalização transbordou para outros campos de atividade como a educação, a economia e as relações sociais. A principal explicação para o que está ocorrendo seria o “novo ecossistema de comunicação política”, centrado nas redes sociais, e alimentado por duas figuras carismática opostas, Lula e Bolsonaro. Neste sistema, as pessoas tenderiam a se fechar em bolhas que se autoalimentam, sujeitas à avalanche de informações falsas e mecanismos que tendem a reforçar ideias pré-concebidas.  A democracia está se rompendo, e só um reconhecimento do problema e uma ação deliberada das elites, restabelecendo as regras e os limites da convivência, poderia, quem sabe, deter este processo.

A principal evidência que tenho para a hipótese que a polarização política está se arrefecendo é a grande conciliação que tem ocorrido entre as elites políticas de esquerda e direita, pela anulação dos processos da lava-jato e a concessão de recursos e poder crescentes para o Congresso. Os principais atores da direita política brasileira não são mais Jair Bolsonaro e seus filhos, mas Arthur Lira, Tarcísio Freitas e Valdemar da Costa Neto, para os quais as questões ideológicas têm muito menos relevância do que as questões de poder. Esta conciliação está sendo feita a um alto custo e com consequências imprevisíveis, mas isto é um outro tema.

O livro de Nunes e Traumann é excelente ao mostrar como a polarização política se deu e ao descrever em detalhe a lógica das eleições de 2022, mas me parece que deixa a desejar na interpretação do que está ocorrendo. O problema, me parece, tem a ver com a teoria implícita que ele adota a respeito de como os processos político-eleitorais ocorrem. Para entender isto, uma pequena incursão à literatura existente precisa ser feita.

A teoria mais tradicional sobre comportamento eleitoral, de origem marxista, é que os eleitores votam conforme seus interesses de classe – operário vota em operário, burguês vota em burguês. A política seria uma disputa de classes,  e, como os pobres e operários são a maioria, eles sempre ganhariam as eleições, não fosse o problema da “falsa consciência”, em que eles são iludidos e não percebem quais são seus verdadeiros interesses e quem verdadeiramente os representa.   Esta teoria refletia, ainda que de maneira muito imperfeita, as divisões eleitorais da Europa ocidental até meados do século XX, mas nunca conseguiu dar conta de fenômenos como o nacionalismo, os partidos de base religiosa e, na América Latina, o populismo em suas diversas manifestações, interpretados como uma espécie de aberração em relação ao comportamento “esperado” dos diferentes setores.

As ciências sociais norte-americanas abriram uma outra perspectiva ao procurar entender diretamente o comportamento do eleitor, e, a partir daí, o funcionamento do sistema eleitoral e do regime democrático, fazendo uso de pesquisas de opinião e dados eleitorais.  Estas pesquisas se iniciam com os trabalhos pioneiros da “escola de Columbia”, de Robert K. Merton, Paul Lazarsfeld e Elihu Katz, na década de 40, sobre comunicação de massas (Katz and Lazarsfeld 1964; Lazarsfeld, Berelson and Gaudet 1968) e mais adiante com as pesquisas eleitorais da “escola de Michigan”, com os trabalhos de Angus Campbell,  Phillip Converse, Donald Stokes e outros (Campbell et al. 1960). Dois artigos tiveram grande influência nesta literatura, o do economista Antony Downs, de 1957, que propunha um modelo simples de decisão dos votos dos eleitores e de comportamento dos partidos (Downs 1957), e outro de Phillip Converse, de 1964, sobre como os eleitores entendem e pensam as questões da política (Converse 1964; Friedman and Friedman 2018).

O que estas pesquisas mostram é que, em geral, os eleitores tomam suas decisões a partir de fragmentos muitas vezes desconexos de informações, que não se estruturam de forma coerente como uma ideologia ou um entendimento mais profundo do sistema político. A pergunta, então, é como o sistema democrático, que se pretende representativo, consegue funcionar sobre uma base tão precária. A resposta é que os eleitores se informam com pessoas ou fontes em que confiam, e votam com os candidatos que melhor refletem seus interesses. Os textos pioneiros de Merton, Lazarsfeld e Katz falavam no “two steps flow of communication”, em que líderes de opinião explicavam e legitimavam as informações que chegavam pelos meios de comunicação à massa, e Converse, na mesma linha, identifica uma pequena percentagem de eleitores que organizam as informações políticas em uma “ideologia”, ou quadro de referência coerente, e pessoas próximas seguem. No modelo de Downs, as preferências dos eleitores tendem a se distribuir conforme uma curva normal, em um contínuo da esquerda à direita, o que faz com que os partidos procurem se posicionar o mais próximo possível da média de opiniões, para receber o maior número possível de votos. Isto explicaria o sistema bipartidário americano e a alternância de poder, dada a oscilação dos resultados obtidos pelos diferentes governos no atendimento às  preferências dos eleitores. Uma outra explicação para a estabilidade do sistema americano, até aquela época, era a forte tendência de os eleitores votarem  conforme sua identificação histórica com determinado partido, o que servia de amortecedor para grandes oscilações.

O que estas teorias não explicam é como este aparente equilíbrio foi sendo rompido nos Estados Unidos pela polarização crescente, que culminou na eleição de Donald Trump, um processo que também vem ocorrendo, em maior ou menor grau, em outros países.  A resposta, segundo um artigo mais recente de dois cientistas políticos, Hacker e Pierson, estaria em uma outra maneira de entender o processo político eleitoral, não mais através do comportamento dos eleitores, mas através das ações deliberadas dos grupos de interesse que disputam o poder no sistema eleitoral e, para isso, procuram organizar o eleitorado e o próprio sistema eleitoral a seu favor.  O autor de referência, no caso, deixaria de ser Antony Downs, e passaria ser E. E. Schattschneider, cujos trabalhos iniciais datam da década de 1930, e cujo texto mais conhecido, The Semi-Sovereign People, é de 1960 (Hacker and Pierson 2014; Schattschneider 1960). Na perspectiva de Schattschneider, a disputa política não se dá simplesmente pela competição pelos votos de uma massa indiferenciada de eleitores, mas pela ação de grupos que procuram moldar as opiniões e orientações de seus eleitores conforme seus interesses. No regime democrático, o eleitor continua sendo soberano, mas é uma soberania limitada e condicionada pelo trabalho de determinados grupos para conquistar o poder e exercê-los conforme seus interesses. É esta ação que pode explicar o que o modelo de Downs não consegue, a transformação da curva normal de preferências em uma distribuição bimodal, ou seja, em polarização.

Uma maneira pela qual os grupos de interesse atuam para influenciar o comportamento dos eleitores é pela criação de organizações e associações políticas destinadas a garantir determinados resultados. Um exemplo dado pelos autores é o de uma pesquisa sobre a criação de sindicatos de professores nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60. A pesquisa mostrou que estes sindicatos não surgiram de forma natural e automática pela agregação dos interesses comuns dos professores, mas foram o resultado do trabalho sistemático do Partido Democrata em determinados estados para organizá-los. Estes processos cruciais de organização e mobilização do eleitorado, e os resultados que produzem, se tornam invisíveis quando o processo político é analisado exclusivamente a partir das opiniões e atitudes dos eleitores.

Aplicando esta perspectiva ao Brasil, é possível observar que o getulismo e o lacerdismo, o golpe de 1964, a campanha pelas Diretas Já, as eleições de Jânio Quadros, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso e os protestos de 2013 mostram que a mobilização e radicalização política, à direita e à esquerda, não são coisas novas no Brasil, mas foram mobilizações efêmeras, que não criaram raízes. A novidade importante neste cenário foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores no início dos anos 80.  O PT começou como o braço político de um setor específico do sindicalismo industrial, com uma retórica que buscava renovar o antigo discurso político da esquerda. Aos poucos, na medida em que foi conquistando posições de poder, passou a incorporar também sindicatos do setor de serviços, organizações do campo, setores da burocracia, setores da Igreja Católica, políticos tradicionais  e aliados do setor empresarial.  A primeira vitória de Lula contra José Serra em 2002 se deveu sobretudo ao desgaste do PSDB depois do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, mas, a partir daí, com o programa do bolsa família, o aumento dos gastos públicos e a distribuição de benefícios e vantagens a parceiros, o PT foi incorporando cada vez mais setores a seu projeto de poder, criando um arco de alianças que foi capaz de sobreviver à crise de 2015 e renascer.

Em contraste com o PT, nenhum outro partido político brasileiro, até recentemente, depois da dissolução da aliança entre o velho PSD e o Partido Trabalhista de Getúlio Vargas na eleição de Jânio Quadros, tentou ou conseguiu organizar uma parceria estável e organizada com determinados setores da sociedade. O PSDB, que a princípio poderia ter se transformado em um forte partido de massas graças ao histórico de oposição à política tradicional do antigo PMDB de Orestes Quércia e o sucesso do Plano Real, nunca deixou de ser um partido de quadros, na terminologia proposta por Maurice Duverger, e acabou por se deteriorar após a derrota de Aécio Neves para Dilma Rousseff em 2014.

A novidade do Bolsonarismo foi criar sua própria clientela organizada, aproveitando-se dos espaços deixados de fora do Partido dos Trabalhadores após a crise de 2015 e pelo fracasso do PSDB e outras correntes de centro e à esquerda de construir uma alternativa . Estes espaços foram muitos, e incluem as populações das periferias das grandes cidades, que buscavam proteção nos novos cultos religiosos e na convivência sofrida com o crime organizado; os setores da classe média baixa que não se beneficiaram da expansão da máquina administrativa e não tiveram acesso à educação pública e ao sistema de saúde público subsidiado; empresários que sofriam com os altos e baixos e a ineficiência da economia; e as polícias militares e partes das forças armadas que não recebiam os mesmos benefícios e a mesma atenção que outras partes do serviço público. Some-se a isto setores da sociedade que se sentem ameaçados pelas políticas e mobilizações identitárias que colocam em questão padrões tradicionais de comportamento, relacionamento e dominação que já vinham se desfazendo naturalmente e que, por isto mesmo, são ansiosamente defendidos.  Tal como nos Estados Unidos, estas parcerias foram estabelecidas inicialmente através do uso inovador das novas redes de comunicação social, De forma simétrica ao discurso do PT em nome do “povo” contra a “herança maldita” e as “elites”, elas foram reforçadas pela ressureição do antigo discurso integralista de Deus, Pátria e Família e contra a corrupção. Com Bolsonaro no governo, esta rede passou a ser alimentada diretamente com subsídios, distribuição de cargos e outras formas de organização e institucionalização, incluindo o estímulo ao armamento da população civil.

Estas redes de interesse e a ação sistemática de determinadas correntes políticas para estabelecer alianças e mobilizar apoios não são facilmente capturadas por pesquisas de opinião que medem as atitudes e orientações dos eleitores por amostras e grupos focais, e, por isto, não aparecem com destaque no livro de Nunes e Traumann. Mas, sem esta análise não conseguimos saber qual a profundidade e a resiliência da calcificação ideológica que eles postulam. Existem autores que estimam que o “núcleo duro” do PT, ou seja, eleitores vinculados a suas redes de organização, mobilização e favorecimento de interesses, seria da ordem de 15 a 20% do eleitorado, e as redes criadas pelo bolsonarismo teriam um tamanho semelhante. Além das pessoas que participam diretamente de suas redes, a força das diferentes correntes depende também, naturalmente, da quantidade de pessoas atraídas ou convencidas  por sua retórica, que é mais incerta. As eleições de 2022,  como o livro mostra, foram decididas em grande parte pelo voto contra, e não a favor de um ou outro lado. Isso significa que cerca de 60% do eleitorado estaria, em princípio, disponível para apoiar outras correntes políticas que conseguissem organizar e representar seus interesses de forma mais efetiva.

Um tema central nesta questão é o lugar e o que se pode esperar da democracia. Os estudos de opinião pública, comportamento eleitoral e sistemas partidários em todo o mundo mostram a fragilidade da ideia de que os governos democráticos são a  simples expressão direta da “vontade do povo”. Isto não justifica, no entanto, a tese dos movimentos políticos de extrema esquerda e direita de que os regimes políticos não importam, porque não passam de instrumentos de dominação de determinados grupos sobre outros. Um conceito mais apropriado de democracia é que ela é uma forma de governo legitimada por um processo político aberto, que garante que o poder de determinados setores não se perpetue e exerce funções importantes de administrar conflitos e garantir o pluralismo e os direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos, e sobretudo das minorias. A grande fragilidade dos regimes democráticos é que os setores mais interessados em sua manutenção são, em geral, os menos motivados e capacitados para se organizar e mobilizar a sociedade para defendê-la, em contraste com seus opositores nos extremos.  Ao final de seu livro, Nunes e Traumann falam sobre os problemas da democracia e dizem, com razão, que a única maneira de defendê-la é com mais democracia e o fortalecimento das instituições e da cidadania. É isto, e não a mera exortação às elites políticas para que se comportem e coloquem limites aos ataques mútuos, que pode reestabelecer um mínimo de convivência na política brasileira e fortalecer a democracia.

Em meu texto anterior, eu dizia que havia indícios de que polarização do início de 2023 parecia que havia se arrefecido, não que havia desaparecido. Para saber o quanto,  vamos ver em que medida os resultados das próximas eleições municipais dependerão de alinhamentos ideológicos ou de circunstâncias locais, e sobretudo como serão as eleições de 2026.

Referências

Campbell, Angus, Phillip Converse, Warren E. Miller, and Donald E Stokes. 1960. The American Voter. New York: Willey.

Converse, Philip E. 1964. “The nature of belief systems in mass publics.” Critical review 18(1-3):1-74.

Downs, Anthony. 1957. “An economic theory of political action in a democracy.” Journal of Political Economy 65(2):135-50.

Friedman, Jeffrey, and Shterna Friedman. 2018. The nature of belief systems reconsidered: Routledge.

Hacker, Jacob S, and Paul Pierson. 2014. “After the “master theory”: Downs, Schattschneider, and the rebirth of policy-focused analysis.” Perspectives on Politics 12(3):643-62.

Katz, Elihu, and Paul Felix Lazarsfeld. 1964. Personal influence the part played by people in the flow of mass communications. New York, N.Y: Free Press of Glencoe.

Lazarsfeld, Paul Felix, Bernard Berelson, and Hazel Gaudet. 1968. The people’s choice how the voter makes up his mind in a presidential campaign. New York: Columbia University Press.

Schattschneider, E. E. 1960. The Semi-Sovereign People – a realist view of democracy in America. New York: Holt. Rinehart and Winston.

O futuro das forças armadas

(Publicado em O Estado de São Paulo, 10 de fevereiro de 2023)

A tentativa frustrada de Jair Bolsonaro de jogar as “suas” forças armadas na aventura de um golpe não deu certo, detida que foi pela atuação firme do judiciário e pelo profissionalismo dos principais comandantes, mas serviu para recolocar na agenda a questão do papel dos militares na sociedade brasileira.  O governo Lula procurou reagir aplacando os militares, oferecendo apoio a seus projetos de modernização e reunindo os comandantes com empresários, acenando com o ressurgimento da fracassada indústria nacional de armamentos, tentada pelo regime militar na década de 70. Quem sabe que, assim, eles deixariam a política de lado, e ficariam tranquilos em suas casernas?…

É preciso ir mais a fundo, e nas últimas semanas muitas ideias e propostas têm circulado sobre como repensar o papel das forças armadas, em substituição à antiga doutrina de segurança nacional que imperou durante a guerra fria, e que se tornou obsoleta com o fim do regime militar em 1985 e a dissolução da União Soviética em 1991. 

Esta doutrina sempre teve duas caras. Uma, o princípio reiterado de que a “função precípua” das forças armadas seria a defesa do país contra eventuais inimigos externos em uma guerra convencional, que, fora a Guerra do Paraguai e contingente da FEB na Segunda Guerra, nunca se materializou. A outra, a atuação em questões internas, como a construção das redes de telégrafos dos tempos de Rondon, a presença na região Amazônica e nas áreas de fronteira e a doutrina de segurança nacional, justificando os governos militares após 1964. Também fez parte desta doutrina vários projetos militares de desenvolvimento tecnológico, incluindo o programa nuclear do Almirante Álvaro Aberto, nos anos 50, o projeto de submarino nuclear da Marinha, o Centro Tecnológico da Aeronáutica em São José dos Campos e as empresas de indústria bélica – Engesa, Avibras e Embraer. Destes, o único claramente bem-sucedido foi a Embraer, que se transformou em uma multinacional privada de natureza predominantemente civil. As forças armadas brasileiras consomem anualmente cerca de 1.6% do PIB, 115 bilhões de reais, 80% dos quais para pagamento de pessoal, um contingente de cerca de 350 mil pessoas na ativa, e existem propostas para aumentar estes gastos ainda mais. Quanto desta antiga doutrina ainda é válida, e quanto precisaria ser modificada, dado o novo cenário da política internacional, as revoluções havidas na tecnologia militar e civil, e a consolidação da democracia brasileira? 

A doutrina oficial está consubstanciada em três documentos encaminhados pelo Ministério da Defesa ao Congresso Nacional em 2020, a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional. Documentos como estes deveriam ser periodicamente revistos e aprovados pelo Congresso, mas na prática eles não têm sido discutidos, e nem chegam à opinião pública. Lendo estes documentos, nota-se a ênfase em três prioridades estratégicas de cunho tecnológico, a nuclear, a espacial e a cibernética. Felizmente, o Brasil renunciou há décadas à pretensão de desenvolver armas nucleares, e o projeto do submarino nuclear, que se arrasta há mais de 30 anos, corre o risco de resultar em equipamentos que já nascem tão obsoletos quanto nossos porta-aviões.  O programa especial sofreu um golpe terrível com tragédia de Alcântara de 2003, quando 21 especialistas morreram em uma explosão do que seria o lançamento do primeiro foguete espacial brasileiro, e desde então as tecnologias espaciais evoluíram enormemente, ficando cada vez mais longe de nosso alcance. A área de segurança cibernética é cada vez mais crucial para garantir o funcionamento da sociedade brasileira em todos os aspectos, e exigiria, para ser bem-sucedida, uma concentração de investimentos e recursos humanos que estamos longe de fazer.

Parece claro, olhando este conjunto, que uma política atualizada de segurança nacional deveria se concentrar em alguns temas e áreas críticas de natureza local, como a proteção das fronteiras, da costa e da região amazônica, do meio ambiente e dos recursos nacionais. É preciso evoluir para um contingente muito menor, tecnicamente qualificado e apoiado por equipamento tático, com capacidade de deslocamento e intervenção rápida, e não em equipamentos mais pesados e típicos de guerras convencionais passadas. O serviço militar obrigatório, que já não funciona, precisa ser substituído por um contingente mais profissional e mais aberto a especialistas de formação civil. Para a defesa estratégica contra eventuais inimigos externos, não temos como agir sozinhos, e precisamos participar de alianças e instituições que contribuam para a defesa dos regimes democráticos, da estabilidade política e da cooperação internacional, nas esferas econômicas, ambientais e de manutenção da paz. Para o desenvolvimento de nossa tecnologia, precisamos de uma economia aberta e fortes parcerias entre instituições militares e civis, públicas e privadas.

A questão da intervenção dos militares na política é o passado. O futuro é a contribuição que as forças armadas, renovadas, podem e precisam dar ao país.

Sergio Fausto: desintoxicação política

(artigo de Sérgio Fausto, publicado em O Estado de São Paulo, 16 de novembro de 2022)

Levará tempo para dissipar o veneno que impregnou a atmosfera política brasileira nos últimos anos. A boa gestão da economia pelo futuro governo é condição necessária para que isso ocorra. Mas não é condição suficiente. 

A impregnação vem de longe, ao menos desde 2014, quando se fez “o diabo” para reeleger Dilma e, em seguida, para apeá-la do poder. O processo ganhou intensidade e escala sem precedentes nos últimos quatro anos e atingiu seu ponto de saturação máximo nesta campanha eleitoral. As cenas vistas nos últimos dias mostram aonde chegou o delírio promovido pelo autoritarismo bolsonarista. 

O ovo da serpente começou a ser chocado quando a disputa normal entre as forças democráticas se tornou uma luta destrutiva entre “nós” e “eles” e se acirrou a competição por mais recursos privados para o financiamento da atividade política, com as consequências conhecidas. A Lava Jato saiu dos trilhos, mas os esquemas de corrupção eram reais. A dura travessia do mandato presidencial que agora se encerra deve servir de lição definitiva para que o erro e o pecado não se repitam. 

Além da antipolítica, o bolsonarismo mobilizou um anticomunismo primitivo e o temor à dissolução dos valores e da família tradicionais, instrumentalizando o cristianismo para ambos os fins. Criou fantasmas, inflados à base de notícias fraudulentas e distorções da realidade factual, para despertar sentimentos paranoicos de ameaça. A desinflação desses fantasmas é essencial para o País voltar à normalidade. 

Toda paranoia requer um grão de verdade para ganhar asas e se descolar da realidade. A resistência do PT a chamar os regimes autoritários ditos de esquerda na América Latina pelo que são (ditaduras, nos casos de Cuba e Nicarágua, e quase ditaduras, no da Venezuela) e a criticar a violação de direitos humanos nesses países serviu de alimento para a mensagem infundada de que, com Lula, o Brasil caminharia para o socialismo. Para piorar, houve prodigalidade nos empréstimos estatais feitos a grandes empreiteiras brasileiras para a realização de obras nesses países. Juntando uma coisa e outra, a extrema-direita formou a dupla de ataque comunismo-corrupção. Desarticulá-la requer do novo governo deixar claro, por palavras e atos, que não se moverá, na política externa, por velhas paixões ou eventuais simpatias ideológicas (ao contrário do que fez o governo Bolsonaro). 

Também em relação ao conservadorismo moral, trata-se de colocar a bola no chão. Na análise das pesquisas qualitativas que há muito tem feito com grupos evangélicos, a socióloga Esther Solano chama a atenção para o fato de que, entre eles, estão longe de ser uniformes as opiniões sobre gênero, sexualidade e família. Há unanimidade na rejeição ao que, aos olhos de mulheres pobres conservadoras, é percebido como uma tentativa de imposição de padrões morais estranhos ao universo ao qual pertencem. Mas existe amplo espaço de diálogo sobre temas como a violência contra as mulheres, as desigualdades de gênero no mercado de trabalho e a sobrecarga feminina no cuidado com crianças e idosos da família. O fortalecimento de políticas públicas voltadas para atenuar ou resolver esses problemas limitará as possibilidades de manipulação de temores de ordem moral pela extrema-direita. Além de implementá-las, o novo governo deve fazer a mediação política entre os grupos progressistas engajados com a agenda de gênero, sexualidade e direitos reprodutivos e a maioria mais conservadora na sociedade e, principalmente, no Congresso, para não cair em armadilhas como a do impropriamente chamado “kit gay”. 

Outra tarefa inadiável será restabelecer a normalidade das relações entre civis e militares, que começou a sair dos eixos no governo Dilma Rousseff e descarrilou com Bolsonaro. De um lado, é preciso desmilitarizar o governo e, de outro, prestigiar as Forças Armadas como instituição do Estado brasileiro. Cicatrizar as feridas abertas pelo golpe de 1964 e pela violação de direitos humanos durante o regime autoritário levará tempo. Não se trata de esquecer o que ocorreu no passado, mas sim de concentrar a atenção no que é preciso fazer agora, sem agravar tensões contraproducentes. 

Na mesma linha, importa despolitizar a Polícia Rodoviária Federal, reforçar a gestão profissional da Polícia Federal e restabelecer a autonomia da Procuradoria-Geral da República. A instrumentalização maior ou menor desses órgãos do Estado em favor do projeto político de Bolsonaro foi parte central da estratégia de ataque às instituições democráticas. Que o projeto tenha fracassado não exime de responsabilidade aqueles que dele participaram. Quem, comprovadamente, tenha atuado no financiamento e na organização de atos visando a ameaçar a ordem democrática e a integridade física de ministros do STF, coagir eleitores e jornalistas, entre outros crimes, deve sofrer as consequências do que fez, assegurados o pleno direito de defesa e a presunção de inocência. 

Extensa e complexa, a agenda de normalização do País deve ser enfrentada com serenidade, mas com firmeza.

Os trens de Mussolini

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 2022)

Me lembro como se fosse hoje. Eu era aluno em um conhecido colégio em Belo Horizonte, e entre uma aula e outra, em uma roda de conversa, o professor de filosofia, ex-integralista e tomista, falava entusiasmado sobre as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar com aquilo, que eu vinha de uma família judia, muitos meus familiares haviam sido assassinados nos campos de concentração.  “Ah, entendo”, disse o professor, “então você tem um problema pessoal com isso”.

Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o monstro do nazifascismo, valores estes proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração. 

Dos dois lados, havia os que acreditavam firmemente em suas bandeiras, e apontavam o dedo para as violações cotidianas destes direitos pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos, a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os remanescentes do colonialismo na África e Ásia, muitas vezes de forma sangrenta, como no Vietnam.

Para quem pensava que o mais importante era a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que eventualmente seriam resolvidos em um regime de liberdade política e econômica.  E havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, o único que realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.

Esta disputa entre valores, e de regimes políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos, marcou o mundo ao longo do século 20, e só foi interrompida pela novidade do nazifascismo, que foi além do cinismo, e passou a incorporar como valores a guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação.  Era uma doutrina que se dizia se inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, por elites cosmopolitas, perdiam sentido. 

A história mostrou o horror e o desastre criados por esta doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais dos direitos humanos do que jamais tivemos.  Mas a distância ainda é grande, mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.

É esse o caldo de cultura para o ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini, afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isto não é mais importante, como pensava meu professor de filosofia, do que a retórica da ética e dos direitos?

É assim também que raciocinam muitos dos que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema direita, e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isto, e espero que não seja só meu.

Meu voto útil

Simone Tebet é, sem dúvida, a grande novidade e a melhor candidata nesta eleição presidencial. Firme, inteligente, com um sólido currículo político apesar de muito jovem, desenvolveu um excelente plano de governo buscando contribuições nos diferentes setores da sociedade, tem se saído muito bem nos debates, e inspira confiança. Ela faz parte de uma nova geração de mulheres e homens que estão tentando tirar o sistema político brasileiro, e o próprio governo federal, do lamaçal em que se meteu, e que merecem e precisam de todo o apoio para se fortalecer politicamente. 

Ciro Gomes também é convincente nas críticas que faz ao antigo e atual presidente, e tem algumas propostas interessantes, sobretudo na área da educação, baseadas da bem-sucedida experiência do Ceará. Por outro lado, creio que o “Projeto Nacional de Desenvolvimento” que propõe não resiste a uma análise econômica mais aprofundada.

Infelizmente, nenhuma das duas candidaturas se tornou viável. Ciro Gomes sempre jogou sozinho, movido muitas vezes pelo ressentimento, e nunca teve chance de crescer politicamente. Simone Tebet foi o melhor que se conseguiu na busca de uma candidatura de terceira via que pudesse dar ao país uma alternativa à polarização entre o PT e Bolsonaro, mas entrou na competição tarde demais e com pouco apoio, vítima do jogo infindável de interesses locais do MDB e PSDB. 

Tenho muita dificuldade em entender como pessoas minimamente informadas podem ainda apoiar Jair Bolsonaro. Para quem não sabia dos anos que passou convivendo com o baixo clero da Câmara de Deputados e se enriquecendo nas relações com o submundo da política e das milícias cariocas, sua plataforma conservadora, de combate à corrupção, liberalismo econômico e conservadorismo social, poderia ter sido convincente, sobretudo depois do desastre dos últimos governos do PT.  Mas seus quatro anos de mandato deviam ter sido suficientes para mostrar que não se tratava na verdade de um político conservador, mas de um homem disposto a tudo para manter seu poder e de seus familiares, destruindo instituições, desmontando o orçamento público, estimulando a violência e querendo se impor como ditador.

Resta Lula. Tenho também dificuldade em entender como pessoas informadas possam se entusiasmar com sua candidatura. É verdade que, no primeiro mandato, seu governo manteve uma política econômica equilibrada e deu início a importantes programas sociais. Mas depois perdeu o rumo, e nem ele nem o PT reconheceram os erros que jogaram o país na pior crise econômica da história. Havia a corrupção, com a qual Lula e seus companheiros foram no mínimo coniventes, e sobretudo erros colossais de política econômica e social, que fizeram com que o país desperdiçasse a grande oportunidade que foi a reorganização da economia trazida pelo plano real e os recursos do “commodities boom”, a alta dos preços internacionais dos produtos de exportação brasileiros.

Em tempos normais, meu voto no primeiro turno seria para Simone Tebet, mesmo sem chances de ganhar, ajudando a fortalecer sua presença na política nacional. Mas não estamos em tempos normais, com as ameaças de golpe e ataques diários de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

Não há nenhuma certeza de que em um futuro governo liderado por Lula prevalecerá o bom senso, abrindo espaço para as reformas econômicas, institucionais e fiscais que o país necessita para romper o círculo vicioso da estagnação econômica e pobreza, e para as políticas sociais e ambientais de qualidade que se tornam cada dia mais urgentes. A seu favor está o esforço para sair do círculo fechado do PT e construir uma grande aliança de apoios, e o histórico de respeito à independência da polícia federal e do judiciário de seus governos. 

 Haverá acertos e erros, mas, sobretudo, um regime democrático em que os governos podem ser criticados e substituídos quando necessário.  É preciso decidir a eleição logo no primeiro turno, para garantir a democracia. Depois teremos que lidar com o que for preciso, de forma civilizada.

O Último dos Tucanos

(Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de julho de 2022)

José Serra entra para a história como o único Senador que votou contra o estupro da Constituição e do teto orçamentário perpetrado pelo Congresso. É o último da geração de políticos tucanos que lutaram contra a ditadura militar, saíram do antigo MDB para criar o PSDB quando o partido foi dominado pela política corrupta de Orestes Quércia, conseguiram deter a inflação e reorganizar a economia do país, dando início às políticas sociais, e entregaram o governo de forma civilizada em 2002, quando Lula ganhou as eleições. 

Espero que a “Pec Kamikaze” não seja suficiente para manter no poder o bando fascista de Bolsonaro, mas Lula não ajuda.  Como os antigos reis Bourbons, ele nada esquece e nada aprende. Seu comentário sobre a PEC foi que, no seu governo, os orçamentos seriam aprovados com a “participação da sociedade”, como se quatro mandatos presidenciais não bastassem para saber que não é a assim que orçamentos federais são aprovados e administrados. Sobre os preços dos combustíveis, defendeu a reestatização da Petrobrás, que seus governos levaram quase à falência. Antes havia falado contra os políticos “sem alma” que só se preocupam com o teto de gastos e o equilíbrio orçamentário, e não com as necessidades do povo sofredor. Como se só ao “mercado” interessasse ter uma economia vigorosa e estável, capaz de criar empregos e pagar bons salários, e que os recursos públicos sejam destinados a investimentos e políticas sociais de qualidade, e não aos bolsos dos políticos e das corporações com mais capacidade de pressão.   Sobre os escândalos de corrupção no Ministério da Educação, o único que fez foi balbuciar algo sobre o direito de defesa dos acusados, como que temendo o fim do “garantismo” judiciário que faz que, no Brasil, todos os crimes de políticos sejam perdoados. E, machão, não se comoveu com os crimes de assédio sexual que derrubaram o presidente da Caixa Econômica, dizendo que não era policial nem procurador.

Rejeitados pela maioria da população, os dois candidatos entram em um processo eleitoral que será turbulento, e cujo ganhador herdará um país exausto e em frangalhos. Como explicar que não tivesse surgido um terceiro nome? Temos Simone Tebet tentando ocupar este espaço, mas que começa enfraquecida pelo próprio processo em que sua candidatura se formou, por uma negociação interminável dos interesses locais dos velhos partidos. E temos Ciro Gomes, sozinho, golpeando à esquerda e à direita, incapaz de sair de sua bolha. Mesmo que uma destas candidaturas consiga crescer – o que não é impossível, porque os eleitores decidem seus votos na última hora, como vimos recentemente na Colômbia – o futuro presidente dificilmente terá condições de pôr fim à crise fiscal e à usurpação dos recursos públicos pelos congressistas do centrão, que puxam o país para o fundo.

Por três vezes tentamos deixar os políticos de lado elegendo um presidente “contra tudo que está aí”, e os três casos – Jânio, Collor e Bolsonaro – resultaram em desastre.   Os exemplos recentes de líderes populistas na região, como Lopes Obrador no México e Petro Castillo no Peru, sem falar de Hugo Chávez e Maduro na Venezuela, mostram que o problema é mais geral. Em seminário recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o professor Steve Levitsky lembrou dos três pilares das democracias modernas, apesar de suas imperfeições – partidos políticos estruturados, uma imprensa prestigiada e capaz de formar a opinião pública, e grupos de interesse fortes e diversos comprometidos com a estabilidade política. Hoje estes pilares estão minados pelos “três Ps” mencionados em artigo recente de Moisés Naím – o populismo, a polarização, acentuada pelas políticas identitárias, e a pós-verdade das redes sociais.

Quatro anos atrás, com o derretimento do PT, a crise econômica se aprofundando e as manifestações de protesto crescendo, surgiram várias tentativas de organizar movimentos que buscavam substituir os políticos tradicionais por uma nova geração de líderes, mais bem formados e comprometidos com os temas da desigualdade social, aperfeiçoamento do Estado, moralidade pública e desenvolvimento econômico e social. Mas foram tentativas pequenas e dispersas, que não conseguiram fazer muita diferença. Tomara que, no futuro, possa haver uma convergência virtuosa de novos líderes e uma nova geração de políticos, retomando as bandeiras dos velhos tucanos e trazendo para o país novas perspectivas. 

Falavam tempos atrás que o Brasil crescia de noite, quando os políticos dormiam. Lembro de o velho Antônio Carlos Magalhães dizendo que, durante a noite e nos fins de semana, nos conchavos políticos no Palácio de Ondina, desfazia as boas medidas que que tomava durante o dia como governador da Bahia. Em alguns momentos, de fato, os ventos da economia internacional, como os ciclos favoráveis das commodities, ajudaram a economia a andar apesar de tudo, e não faltam exemplos de políticos virtuosos e iniciativas locais e regionais bem-sucedidas que mostram que nem tudo está perdido. Mas não será fácil.

Vencer o populismo

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de maio de 2022)

A campanha eleitoral de 2022 já começou, e uma das preocupações dos que buscam uma saída para a crise política iniciada com o impeachment de 2016 e a crise econômica que veio junto é como evitar que a próxima eleição seja dominada pelo populismo.  Mas o que é o populismo, e por que é preciso evitá-lo?

O termo “populismo” surgiu no século 19 para designar tanto o movimento político de intelectuais russos de estimular a mobilização dos camponeses contra os Czares quanto o antigo Partido Populista americano, precursor do Partido Democrata, que buscava os votos dos agricultores contra os grupos e instituições consideradas de elite. No século XX, na América Latina, foi usado para descrever a atuação de políticos como Juan Perón, na Argentina, Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, no Brasil, e Haya de la Torre no Peru, e é usado hoje para se referir a políticos como Hugo Chávez e Evo Morales, na América Latina, e Donald Trump, Viktor Orbán e Tayyp Erdogan em outras partes. Existe muita controvérsia sobre o que é e como interpretar o populismo, mas sua característica principal é a existência de líderes políticos que estabelecem uma relação forte e personalizada com setores importantes da sociedade, passando por cima das instituições e dos partidos políticos tradicionais.

O populismo pode se apresentar como movimento progressista, quando suas bandeiras são a distribuição de benefícios e a ampliação dos direitos da população mais pobre, ou como conservador, quando suas bandeiras são a defesa de determinados setores da sociedade contra os demais. Mas ele é, sobretudo, antidemocrático, autoritário e, em última análise, irracional, por agir sempre buscando efeitos políticos imediatos, sem se preocupar ou ignorando consequências de longo prazo.

O populismo não nasce no vazio, mas se apoia na identificação dos desejos e necessidades de setores significativos da população que se sentem marginalizados e preteridos do jogo político e das ações dos governos. Nisto, ele não é diferente de outras formas de mobilização política. Mas difere na medida em que seus líderes proclamam ser os únicos representantes da parte boa e moralmente aceitável do “povo”, transformando as disputas políticas em uma luta entre o bem e o mal, e não em uma competição entre diferentes partidos e correntes de opinião igualmente legítimos. A política populista é uma política de identidade, seus líderes proclamam que merecem apoio porque integram e representam a “parte boa” da sociedade (o povo, a nação, as pessoas virtuosas, os pobres, determinada religião, os nativos ou os brancos), e por isto não precisam apresentar seus programas e ideias, basta exibir suas virtudes e atacar a legitimidade de seus oponentes (ver a respeito Jan-Werner Müller, What is populism? University of Pennsylvania press, 2016)

Com isto as disputas eleitorais se radicalizam, e os resultados só são reconhecidos como legítimos pelos populistas quando ganham. Uma vez no poder, líderes populistas tendem a desmontar as instituições estabelecidas, substituídas por seguidores leais, e consolidam seu poder pela distribuição de benefícios para seus apoiadores, desprezando as formalidades legais que possam existir. Eles também se opõem, sistematicamente, aos produtores de ideias e pensamentos independentes, como a imprensa e as universidades, já que entendem que são eles, e mais ninguém, que sabem o que “o povo” quer e o que deve ser feito.  Nem todos os movimentos populistas têm todas estas características, e podem se modificar em diferentes momentos e circunstâncias. Mas, no limite, ao desmontar as instituições estabelecidas, substitui-las pelo poder pessoal do líder e não reconhecer a legitimidade da oposição, o populismo se aproxima do fascismo; e, ao ignorar o estado de direito, se aproxima dos cleptocratas, sempre dispostos a vender seu apoio a quem esteja no poder.

Em uma disputa eleitoral, a força do populismo é grande, porque os argumentos de superioridade moral, identidade e virtudes pessoais de um líder são muito mais simples e fáceis de comunicar do que argumentos complicados sobre pluralismo, respeito a instituições e políticas públicas complexas. E no entanto, o populismo também pode ser derrotado, pelo grande número de pessoas que exclui de seu “povo”, pelo cansaço da beligerância permanente que alimenta, e pela visibilidade da corrupção e da ineficiência com que governa. 

A primeira condição para vencer o populismo é entender e ter respostas melhores para os problemas legítimos que seus líderes pretendem representar – pobreza, insegurança, discriminação, a ineficiência do serviço público, a corrupção dos políticos. A segunda é não excluir nem desconsiderar os populistas e seus seguidores, ou seja, não fazer com os populistas o que eles fazem com seus oponentes. E a terceira é entender que o processo político-eleitoral não é, simplesmente, um confronto de argumentos e programas políticos, mas também um jogo de imagens e identificações que se dão, cada vez mais, nas redes sociais, e depende de líderes que possam se apresentar de modo verdadeiro e convincente. 

Não é fácil, mas não é impossível.


A doença da cleptocracia

(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de abril de 2021)

Um tema importante, mas pouco estudado nas ciências sociais, é o das causas e efeitos da cleptocracia, termo de origem grega que significa, literalmente, “governo de ladrões”. Em todos os regimes políticos, democráticos ou autoritários, os governantes e seus apoiadores se beneficiam de seus cargos. Mas o que marca a cleptocracia é a pilhagem sistemática dos recursos públicos em benefício dos governantes e seus familiares, atropelando as instituições ou manipulando-as a seu favor. Os cleptocratas têm muito pouco apoio na sociedade, e, no entanto, conseguem se manter por longo tempo no poder. Como isto é possível?

Cerca de 20 atrás, Daron Acemoglu, economista de origem turca que ficou famoso por combinar a análise econômica com a história e as ciências políticas, tratou de responder a esta pergunta, que é mais atual do que nunca, sobretudo no Brasil . Ele tomou como exemplo os casos extremos do Congo, com Joseph Mobuto, e da República Dominicana, com Rafael Trujillo, que governaram por décadas e arruinaram seus países, mas o modelo que desenvolveu é de aplicação muito mais ampla.

O que permite que a cleptocracia se estabeleça e se mantenha, diz Acemoglu, é a debilidade das instituições de um país. “Quando as instituições são fortes”, diz ele, “os cidadãos punem os políticos retirando-os do poder; quando as instituições são fracas, os políticos punem os cidadãos que não os apoiam. Quando as instituições são fortes, os políticos competem pelo apoio e endosso de grupos de interesse; quando as instituições são fracas, os políticos criam e controlam os grupos de interesse. Quando as instituições são fortes, os cidadãos exigem direitos; quando as instituições são fracas, os cidadãos imploram por favores”.

Na cleptocracia, todos perdem, exceto os cleptocratas, mas os diferentes setores da sociedade não conseguem se organizar para tirá-los do poder porque eles usam a conhecida tática de dividir para reinar. Pensemos em dois partidos que poderiam se unir para derrotar os cleptocratas na próxima eleição. Antes que se juntem, o governo chama a um deles, oferece vantagens e benefícios, e ameaça punir a quem ficar contra. Entre o medo e a ganância, o apoio é dado, e governo se mantém. No dia a dia, a técnica funciona trocando constantemente ministros e altos funcionários, gerando insegurança e fazendo com que as autoridades sejam leais aos governantes, e não às responsabilidades e fins das instituições em que trabalham.

Existem algumas condições para que este jogo de dividir para reinar tenha sucesso. O primeiro é quando os setores mais organizados da sociedade só conseguem pensar no curto prazo, porque não acreditam na estabilidade das instituições políticas e econômicas. Entre o ganho imediato de um privilégio concedido ou bom negócio feito hoje com o governo e um ganho futuro de uma eventual vitória eleitoral e a economia prosperando, apostam no ganho imediato. O segundo é quando os governantes conseguem concentrar recursos significativos em suas mãos, seja porque recebem ajuda internacional, ou porque se beneficiam dos lucros da exportação de alguns produtos grande valor, ou porque podem canalizar para si o dinheiro de impostos ou emitir dinheiro novo. O terceiro é quando a economia é pouco produtiva, o que faz com que os benefícios vindos dos favores do governo sejam muito mais vantajosos do que os da atividade econômica e profissional independente. O último é quando os diferentes grupos de interesse na sociedade são igualmente débeis em sua capacidade de se organizar e mobilizar recursos, o que faz com que nenhum deles seja capaz, sozinho, de desafiar e ganhar em uma disputa com os cleptocratas.

Outros dois fatores contribuem para a permanência das cleptocracias. Um é quando o poder político está concentrado em uma pessoa, mais do que em um cargo ou uma instituição. Com isto, em um eventual conflito entre os interesses do governante e as regras institucionais, prevalecem os primeiros. O outro é quando a sociedade é muito desigual, permitindo que um pequeno grupo mantenha seus privilégios, cooptando parte dos setores mais pobres distribuindo migalhas.

Para os que conseguem acompanhar, Acemoglu e seus colaboradores apresentam um modelo matemático que mostra de forma precisa como a cleptocracia funciona e se mantém. Aqui, basta dizer que uma consequência grave da cleptocracia é o ataque permanente às instituições existentes, não só do executivo, mas também do judiciário e do legislativo, que acabam por perder legitimidade e autonomia. O resultado é a desorganização da economia, o empobrecimento da sociedade e o aumento da insegurança, fatores que, por sua vez, facilitam a permanência dos cleptocratas no poder. Mobuto, Trujillo, Stroessner e tantos outros mostram que, quando a cleptocracia domina, é muito difícil se livrar dela. Mas ela pode ser entendida também como uma doença que vai crescendo aos poucos, e precisa ser debelada antes que seja tarde demais.

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial