Fabio Waltenberg: Teorias de justiça distributiva e as cotas nas universidades brasileiras

Fábio Waltenberg, doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, envia a seguinte contribuição:

Creio ser importante subdividir a discussão sobre as cotas nas universidades brasileiras em três questões distintas:

(a) As cotas são justas?
(b) As cotas são oportunas? (Benefícios superam custos?)
(c) As cotas são implementáveis?

Evidentemente, há interseções entre essas três questões, mas acredito que a discussão ganhe mais clareza ao ser organizada desta maneira. Por exemplo, mesmo que tivéssemos boas razões para responder positivamente às questões (a) e (b), uma resposta negativa à questão (c) poderia nos levar a tomar posição contra a adoção das cotas. Por outro lado, poderíamos responder positivamente a (b) e (c) mas discordar de (a). Em muitos textos tratando sobre as cotas, me parece haver uma confusão, na argumentação, entre as respostas dadas pelos autores a cada uma das questões.

Neste texto, trato brevemente da questão (a). Meu objetivo principal é apenas apresentar de que forma ela pode ser definida nos termos de uma teoria de justiça distributiva recente e importante. Não tenho a pretensão de respondê-la de maneira definitiva, e já adianto que minha resposta não passará de: “as cotas podem ser justas”. Dedico apenas algumas linhas às questões (b) e (c), não por serem menos importantes, mas por falta de espaço (e também de conhecimento mais aprofundado sobre o assunto).

(a) As cotas são justas?

Para responder à questão (a), isto é, para determinar se as cotas são justas ou não, me parece fundamental recorrer às teorias de justiça distributiva, área de pesquisa que se encontra na fronteira entre a economia normativa e a filosofia política, e que procura fornecer subsídios teóricos para fundamentar a repartição de direitos e obrigações entre os membros de uma sociedade, a partir de princípios éticos básicos. Posições normativas “puras” como a de utilitaristas (eficiência como valor primordial), libertaristas (liberdade) ou igualitaristas (igualdade), provavelmente levariam a prescrições que estariam em contradição com as “intuições morais” da maioria de nós. Indubitavelmente, a obra fundamental e divisor de águas é A theory of justice, de John Rawls (1971), que procurou dar um tratamento mais equilibrado aos princípios de liberdade, igualdade e eficiência. Abriram-se assim as portas para inúmeros desenvolvimentos dentro do que se costuma denominar igualitarismo liberal, entre os quais se destacam os trabalhos de: Michael Walzer, Jon Elster, Ronald Dworkin, Richard Arneson, Philippe Van Parijs, Amartya Sen, John Roemer e Marc Fleurbaey.

Evidentemente, o debate sobre as teorias de justiça distributiva continua ativo e acredito que dificilmente se poderá chegar a algo que se assemelhe a uma “teoria consensual”. Mas alguma convergência existe entre as teorias e, no meu entender, dado o estado-da-arte atual, o trabalho de Roemer (1998), Equality of opportunity, é particularmente interessante. Ele propõe um marco teórico que pretende ser filosoficamente sólido (importantes objeções às contribuições anteriores foram devidamente levadas em conta), mas que também seja pragmático e aplicável a problemas reais. Assim como outros autores, Roemer parte da idéia de que as “vantagens sociais” (ex: renda ou nível de educação) que os indivíduos possuem não devem depender de suas circunstâncias relevantes, isto é, daquilo que não podem controlar e que tenha alguma relevância na determinação de suas chances futuras (ex: terem nascido pobres). Ao mesmo tempo, essas vantagens ou desvantagens sociais devem ser sensíveis a variações no nível de exercício de responsabilidade por parte dos indivíduos (ex: é justo que, em circunstâncias semelhantes, receba uma renda maior quem trabalhe mais duro). Ciente de que a fronteira entre o que é causado por circunstâncias e o que o é por responsabilidade nunca poderá ser traçada de forma inequívoca, Roemer propõe uma solução pragmática que consiste, em primeiro lugar, em dividir a população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo (ex: mulheres pobres, homens pobres, mulheres ricas, homens ricos). A partir dessa divisão, as políticas públicas devem ser desenhadas de forma a retribuir de forma semelhante o esforço feito por indivíduos que se encontram na mesma posição dentro da distribuição de resultados (ex: desempenho no vestibular) de cada tipo. Por exemplo, se poderia determinar que pelo menos os 5 ou 10% melhores de cada tipo tivessem vagas asseguradas na universidade. Dessa forma, certos tipos (ex: mulheres e homens pobres) seriam beneficiados pela redistribuição da “vantagem social” que é estudar na universidade. Esse “presente” que recebem na forma dessa redistribuição se justifica pelo fato de que, anteriormente, foram os outros tipos os que receberam (arbitrariamente) outros “presentes”: por exemplo, nasceram ricos e receberam mais auxílio familiar. Resumindo, no interior de cada tipo, a meritocracia reina. Porém, entre tipos, há espaço para redistribuição/compensação.

Roemer não defende esta ou aquela definição de tipos. Ele procura apresentar sua solução de forma geral, e diz que em cada sociedade e para cada problema de alocação de recursos escassos, a definição de tipos poderá ser diferente. O que é pertinente em um país pode não ser em outro (ex: o gênero pode ser importante na definição de tipos no Afeganistão, mas provavelmente terá menos relevância na Suécia); determinada definição de tipos pode ser pertinente para a definição de alocação de recursos na área da saúde, mas pode não fazer sentido em educação. Além disso, apesar de reconhecer que certas “vantagens sociais” decorrem de diferenças em termos de circunstâncias, determinada sociedade pode decidir não compensar as circunstâncias totalmente, pelas mais diversas razões (eficiência, por exemplo). Vale mencionar dois casos extremos e interessantes. O primeiro ocorre quando, em um dado contexto, as diferenças de circunstâncias entre indivíduos não são suficientemente fortes. Conclui-se que há apenas um tipo na sociedade (ex: brasileiros) e que, portanto, não deve haver compensação alguma. O outro extremo é acreditar que as circunstâncias determinam, em 100%, o acesso a determinada vantagem social. Nesse caso, cada indivíduo seria considerado como sendo um tipo, e a regra de alocação de recursos seria uma compensação total, isto é, o objetivo da política pública seria francamente igualitarista.

Nos termos da teoria de Roemer, para se avaliar a política de reserva de vagas nas universidades brasileiras, a questão a responder é se é legítimo retribuir o esforço dos melhores alunos negros e/ou dos melhores alunos provenientes de escola pública, reservando-lhes vagas nas universidades públicas, sendo necessário, para isso, retirar algumas vagas de não-negros e/ou de alunos provenientes de escola privada. Não é possível discutir profundamente aqui essa questão (fundamental no debate das cotas), nem tenho resposta clara para ela. Proponho apenas introduzir o assunto, nos marcos definidos por Roemer.

Em qualquer país do mundo, a cor da pele é certamente uma circunstância (não está ao alcance do indivíduo escolhê-la). Mas a cor da pele é uma circunstância relevante, isto é, ela influencia o resultado dos alunos no vestibular? Certamente não tem influência direta, mas sim indireta. O negro no Brasil enfrenta dificuldades de diversas naturezas (ex: discrimação em diversas instâncias), o que justifica, para alguns, o uso da cor da pele na definição dos tipos à la Roemer. Quanto a estudar em escola pública, embora formalmente seja uma escolha, no Brasil pode ser tomado como uma circunstância (não está ao alcance de pais de alunos pobres escolher outra coisa). A relação de causa e efeito entre freqüentar escola pública e ter baixa probabilidade de passar no vestibular é um fato. O argumento favorável ao uso da característica “negros” na definição de tipos poderia repousar sobre a idéia de que uma política de cotas decorrente de uma definição de tipos meramente baseada no fator “escola pública” não seria suficiente para dar a muitos alunos negros a oportunidade de chegar à universidade. Isso seria verdadeiro se, dentro da distribuição de desempenho no vestibular do tipo “alunos provenientes da escola pública”, os negros se posicionassem mal, de forma tal que poucos chegariam a fazer parte dos 5 ou 10% melhores – em outras palavras, se os negros fossem os mais desfavorecidos entre os desfavorecidos (penso já ter lido evidências a esse respeito). Se isto for verdade, e se estivermos convencidos de que ser negro afeta as chances de se passar no vestibular, então há razões para se defender uma definição de tipos que leve em conta ambas as características: cor da pele e escola pública.

O argumento segundo o qual não se deve implementar uma política de cotas, mas sim melhorar a qualidade do ensino básico pode ser entendido como uma busca de um ideal de igualdade de oportunidades nos primeiros estágios do processo educativo, de tal forma que, quando chegasse o momento do vestibular, já não fosse necessário (nem legítimo) dividir a sociedade em tipos – todos seriam do tipo “brasileiros”. Em tese, o argumento faz sentido, mas o que fazer enquanto não houver igualdade de oportunidades nos primeiros estágios e enquanto a perspectiva de que seja atingida no curto prazo for mínima? Talvez as cotas sejam um bom caminho, ao menos durante alguns anos (décadas, talvez).

Como disse acima, meu objetivo aqui é essencialmente o de apresentar um marco que me parece adequado para se buscarem respostas à questão (a) e não tenho a pretensão (nem condições) de dar uma resposta definitiva. Nao obstante, a meu ver, com base na teoria de Roemer, uma política de cotas com tipos definidos em função da cor da pele e do tipo de escola em que estudaram pode ser considerada justa no Brasil, por constituir uma forma de compensação legítima de fatores pelas quais os indivíduos não são responsáveis, e que têm influência – direta ou indireta – sobre o acesso a uma “vantagem social” importante (acesso ao ensino superior).

(b) As cotas são oportunas? Seus benefícios superam seus custos?

Independentemente da resposta que cada um de nós queira dar à questão (a) podemos abordar as questões (b) ou (c). Com relação a (b) – as cotas são oportunas? – creio que a busca da resposta terá como ingredientes uma boa dose de raciocínio hipotético-dedutivo, combinada a uma análise (inclusive econométrica) das experiências de outros países (o que deu certo? o que não deu?). Creio que os textos que temos lido recentemente no blog do Simon Schwartzman (Fry & Maggie, Maio & Ventura, Militão, S. Schwartzman, L. F. Schwartzman etc.) contêm análises extremamente interessantes e ressaltam pontos importantíssimos, tais como os possíveis problemas jurídicos decorrentes das cotas (ex: a introdução na Constituição da distinção entre “raças”). Outro custo importante a ser levado em conta é o possível estigma que os negros podem ter que carregar, isto é, os custos psicológicos das cotas (ex: beneficiados feridos em seu amor-próprio), com eventuais prejuízos materiais (ex: se o mercado passar a considerar que um diplomado negro vale menos do que um diplomado não-negro). Questões de eficiência não devem ser esquecidas: uma compensação à la Roemer que seja ambiciosa demais poderia levar a uma piora na qualidade média dos estudantes (é claro que pode também não levar – trata-se de uma questão empírica para a qual não temos resposta). Também é preciso levar em conta os interesses dos prejudicados pelas cotas: há um certo grau de injustiça caso se mudem radicalmente as “regras do jogo” (isto é, as regras do processo educativo), depois de “começado o jogo”.

Esses custos devem ser comparados aos potenciais benefícios proporcionados aos contemplados pelas cotas, bem como à sociedade como um todo, a saber: benefícios imediatos (aspecto “consumo” da educação) e futuros (aspecto “investimento” da educação) usufruídos pelos cotistas; a revelação de talentos que não floresceriam na ausência das cotas (argumento do economista clássico Alfred Marshall em prol de “instruir as massas” na Inglaterra do século XIX); os benefícios para gerações futuras de cotistas; os efeitos de incentivo positivos para os grupos que nem mesmo remotamente consideravam possível chegar à universidade; o valor simbólico da medida (reconhecimento das desvantagens dos negros na sociedade brasileira e implementação de medida compensatória).

Mais uma vez, a minha resposta é a de que as cotas podem ser oportunas no Brasil, em grande parte em função do desenho institucional que tomarem, o que nos leva a discutir o ponto (c).

(c) As cotas são implementáveis?

Uma vez que a lei garantindo as cotas será submetida ao Congresso Nacional em breve, a questão (c) ganha uma grande relevância neste momento, qualquer que seja a resposta que cada um de nós gostaria de dar a (a) e (b). As cotas são implementáveis? Uma questão relacionada é: deveriam ser implementadas na forma em que foram concebidas no anteprojeto de lei ou é possível aprimorar o mecanismo para evitar certos problemas?

As dificuldades envolvidas na obtenção de uma informação podem inviabilizar o uso de determinada característica na definição dos tipos. Como dito acima, a solução de Roemer requer uma divisão da população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo. Ainda que possa ser justo dar cotas com base na cor da pela, em muitos casos não é possível verificar essa informação de maneira crível a um baixo custo (aliás, tal custo pode ser considerado como sendo infinito). Identificar quem estudou em escola pública tem um custo de verificação menor (ainda que não seja zero).

Os imperativos de eqüidade subjacentes ao mecanismo proposto por Roemer não precisam ser tomados ao pé da letra, e podem muito bem ser combinados com considerações de outras ordens, o que é freqüentemente o caso quando se passa da etapa de definição de regras de alocação de recursos para a etapa de implementação de tais regras. O alto custo de identificação de uma característica em um indivíduo certamente dificulta a implementação das cotas quando se quer que a cor da pele faça parte da definição de tipos, mas não a inviabilizam. Um pouco de “engenharia institucional” é necessária, por razões de implementação (c), mas também para se tentar minimizar os custos potenciais e maximizar os benefícios potenciais, ambos listados acima (b).

O que tenho em mente quando digo “engenharia institucional” são idéias como a que foi proposta por Luisa Farah Schwartzman no blog de Simon Schwartzman (15/4/2006). Ela propõe, em lugar das cotas, um sistema de metas em que “marcar a cor não teria conseqüência individual” (fundamental, a meu ver), em que as universidades teriam incentivos para acompanhar os alunos ao longo de toda a graduação, e que dá autonomia às universidades para ajustarem objetivos gerais da política (definidos pelo governo ou ministério) a contextos e objetivos particulares (de cada universidade). A proposta que tenho esboçado seria de “cotas moderadas, com focalização geográfica, acompanhada de outras políticas educativas (ex: cotas também para ensino básico)”.

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Gostaria de concluir respondendo a uma pergunta que tem sido uma constante nos textos tratando sobre as cotas: “que Brasil queremos?”.

Entre os objetivos da “Cátedra Hoover”, instituto de estudos em ética econômica e social da Université Catholique de Louvain, na Bélgica, encontra-se o seguinte: “Agir a serviço de nossos ideias. Sem cinismo, nem ingenuidade. Sem fanatismo, nem fatalismo.”

Que Brasil queremos? Um país em que direitos e obrigações, vantagens e desvantagens sociais, sejam constantemente desafiados, redesenhados e redefinidos, em função daquilo que, coletivamente, a cada momento, nos parecer mais pertinente, justo e adequado, com base em fatos, mas também em diferentes critérios normativos, e como resultado de debates em que distintos pontos de vista sejam avaliados de maneira serena. Em suma, em que diferentes observadores sociais possam agir a serviço de seus ideais, sem cinismo, nem ingenuidade; sem fanatismo, nem fatalismo. O debate sobre as cotas é uma excelente oportunidade para termos uma discussão normativa desse gênero.

Algumas referências úteis:

1. Para uma introdução às teorias de justiça distributiva, um bom livro é Ethique économique et sociale, de C. Arnsperger e Ph. Van Parijs, infelizmente mal traduzido no Brasil . Outra opção é O que é uma sociedade justa?, de Ph. Van Parijs, mas temo que esteja esgotado. Um livro-texto muito bom, em francês, é o de Marc Fleurbaey (1996), Théories économiques de la justice, Paris : Economica. Um bom artigo introdutório é Amartya Sen (2000) “Social justice and the distribution of income”, chapter 1, In: Atkinson, A.B. and F. Bourguignon (eds) Handbook of income distribution, vol 1, Amsterdam: Elsevier.

2. Para teorias específicas, ver: John Rawls (1971) A theory of justice. Cambridge, MA: Harvard University Press; John Roemer (1998) Equality of opportunity Cambridge, MA: Harvard University Press; Philippe Van Parijs (1995) Real freedom for all. What (if anything) can justify capitalism?, Oxford: Oxford Political Theory; e o artigo de Marc Fleurbaey (1995) “Equal oportunity or equal social outcome?” Economics and Philosophy, vol. 11, pages 25-55.

3. Quanto à definição de justiça em educação, uma visão panorâmica e ainda preliminar foi escrita no início do meu doutorado.  Outro artigo, mais pessoal e, espero, mais profundo e completo, está em preparação.

4. No que se refere a aplicações da teoria de Roemer à educação, uma referência básica é um artigo do próprio Roemer em co-autoria com Julian Betts: “Equalizing opportunity through educational finance reform”. Um dos resultados mostra que uma redistribuição de recursos com base em tipos definidos apenas em termos de renda não melhora muito a situação dos negros americanos.

5.  Vale notar que, neste artigo, meu co-autor, Prof. Vincent Vandenberghe, e eu não usamos “cor da pele” na definição dos tipos, mas sim “educação das mães dos alunos” (cinco tipos).

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Fábio D. Waltenberg é mestre em economia pela Universidade de São Paulo e doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. O título (provisório) de sua tese é: “Normative and quantitative analysis of educational inequalities”. Contato

Monica Grin: a quem serve o Estatuto da Igualdade Racial?

Monica Grin, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assina o seguinte artigo no O Estado de São Paulo de hoje, 30 de abril de 2006:

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99, que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros, indígenas e outras minorias. Este é apenas o prelúdio do que vem a ser o mais vigoroso projeto de racialização da sociedade brasileira.

Trata-se do projeto de lei 3.198, de 2000, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que institui o Estatuto da Igualdade Racial, a ser votado na Câmara dos Deputados após ter sido aprovado sem maiores debates no Senado. É uma peça legal de ampla estrutura, que fixa direitos para os “afro-brasileiros” em várias dimensões da vida social, econômica e cultural. Seu principal objetivo é combater a discriminação racial e as desigualdades históricas que atingem os “afro-brasileiros”, determinando que as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado devam ser pautadas pela dimensão racial, através da reparação, compensação e inclusão de suas vítimas, os “afro-brasileiros”, bem como pela valorização da diversidade racial.

Mais do que políticas compensatórias de caráter transitório, a aprovação do estatuto significará uma alteração radical nas bases universalistas da Constituição brasileira, uma vez que esse documento legal concebe a “raça” como figura jurídica de direitos a ser contemplada por políticas públicas. Uma intervenção legal dessa natureza deve supor, em primeiro lugar, a existência de uma sociedade na qual os indivíduos se auto-identifiquem através do pertencimento racial.

Ora, se esse não é o caso da sociedade brasileira, que tem evitado a rigidez de classificações étnico-raciais, pode-se afirmar que o estatuto é um instrumento legal que pretende reinventar, nos termos da raça, a nação brasileira.

O estatuto expressa o seguinte raciocínio lógico: desde a escravidão a sociedade brasileira se dividiu em “raças”. A “raça branca” dominante, através de discriminação racial sistemática e da omissão do Estado, produziu a exclusão de outra “raça” – os “afrodescendentes” – das oportunidades econômicas, sociais, políticas e culturais. Para que se corrija tal situação, cabe ao Estado, através das suas estruturas jurídicas e institucionais, intervir em todos os níveis da sociedade a fim de garantir justiça e igualdade racial para a “raça” excluída.

Para que seja eficaz a ação do Estado, é necessário delimitar rigidamente as fronteiras raciais, a fim de beneficiar aqueles que de fato seriam os merecedores da reparação ou da justiça racial. Por esse raciocínio, o estatuto torna obrigatória a autoclassificação racial de cada brasileiro em todos os documentos de identificação gerados nos sistemas de ensino, de saúde, de trabalho, de seguridade social e na certidão de nascimento.

Para evitar ambivalências, a declaração compulsória da identidade racial se restringe a duas categorias: os “afrobrasileiros” (pretos e pardos) e os “outros” (supostamente os “brancos”).

Definidas as fronteiras raciais, o documento propõe a implementação de programas de ação afirmativa destinados a enfrentar as desigualdades raciais. Na educação, as cotas nas universidades; na cultura, a valorização da cultura “afrodescendente” como monopólio da “raça” negra.

Propõe acesso diferenciado para os “afrodescendentes” no esporte, no lazer, no trabalho, na mídia, na Justiça, no funcionalismo público, nos financiamentos públicos, na contratação pública de serviços e obras, na saúde, através do controle e prevenção de doenças específicas da “raça negra”, tornando a “raça” uma entidade coletiva de direitos em qualquer campo da vida social, seja ele público ou privado.

Pergunta-se então: a quem serve a nova sociedade que o estatuto quer edificar? Um Brasil dividido em “raças” promoveria justiça para todos os excluídos das oportunidades econômicas, políticas, sociais e culturais? Seria a promoção da “raça” o melhor antídoto contra o racismo e seus efeitos?

Reclamada no estatuto, a reparação histórica, para ser plausível, deve identificar os atores responsáveis pela desigualdade, no caso os “brancos”, que descenderiam dos senhores de escravos. O argumento moral é que, se os antepassados “brancos” perpetraram discriminação e violência racial, seus “herdeiros raciais” devem arcar com essa culpa. Pergunta-se: como um “afro-brasileiro” pobre poderia convencer seu vizinho “branco” pobre de que este é culpado pela situação de pobreza em que ambos se encontram?

É fundamental a elaboração de iniciativas públicas e privadas para o combate da discriminação racial e de seus efeitos no Brasil. Contudo, o bom senso impõe que não é preciso pagar o alto preço do confronto entre dois supostos mundos. Basta atentar para experiências trágicas de promoção racial por decreto: Apartheid na África do Sul e Leis Raciais na Alemanha nazista e nos Estados Unidos.

Por fim, caberá aos nossos representantes no Congresso a responsável decisão sobre o modelo de sociedade que se quer adotar: uma onde o princípio da igualdade dos indivíduos fundamente o Estado de Direito; ou outra na qual a “raça” se torne um princípio absoluto a pautar as ações do governo e as formas de interação dos indivíduos.

José Roberto F. Militão: Cotas na universidade: a alforria do século XXI

José Roberto F. Militão nos envia a contribuição abaixo, que tem sido distribuida em várias listas de militantes do movimento negro. Ele é advogado, administrador e empresário, militante do movimento negro, e coordena a Organizaão da ´AFRO-SOLLUX´ – Planej. e Soluções em Economia Solidária.

A meus fraternos e meus críticos companheiros de movimento negro, saúdo a todos neste final de semana convidativo a reflexões (21/04), especialmente aos guerreiros que se empenham pela aprovação da lei de ´cotas´ antes da existência de um ´Estatuto de Promoção da Igualdade´, deles divergindo, sem desmerece-los, que a despeito de pedidos fraternos, neste momento crucial e determinante, não poderia deixar de manifestar as ponderações críticas, na condição de antigo militante a favor de ´ações afirmativas´, nem admitir no futuro, a pecha de omissão a inescusável dever da reflexão a respeito do destino de nossos jovens. A verdade é que além de ponderações emocionais não tenho visto racionalidade acadêmica que justifiquem embasamento a cotas.

Pondero, preliminarmente duas coisas: a primeira, dirigida ao futuro, é não ser compatível com a responsabilidade ética Webweriana, que a atual geração faça uma interferência, negativa, de tal magnitude, alterando doravante, a trajetória da juventude e do povo negro, nessa direção, salvo melhor juízo, enfraquecedora da luta geral contra o racismo e discriminações, sem avaliar os resultados disso a médio e longo prazo. A segunda, tem fulcro no passado, e nos efeitos da alforria (precurssora das cotas ao beneficiar poucos e manter milhões excluídos) que produziu enfraquecimento na luta contra a escravidão.

Assim, principio pelo fim: se nos anos 60/70 os racistas ´africaner´s´ tivessem concedido ´cotas´, teria havido Steve Biko e o movimento da consciência negra na África do Sul, culminando com a revogação da prisão perpétua de Nelson Mandela? As cotas a Steve e demais negros que nem chegaram à universidade, os neutralizava, pois, como sabiamente disse o mestre Herbert Marcuse: “o primeiro passo para um escravo conquistar a sua liberdade é ele tomar consciência de que é escravo”. E ouso questionar: Se Abdias, Lélia, Clóves Moura, Hélio Santos, Hamilton Cardoso, Sueli Carneiros, Carlos Alberto Medeiros, Gevanilda, Hédio, Joel Rufino, Kabenguele, Wânia e tantos outros tivessem sido cotistas, teria se consolidado a moderna consciência do movimento negro brasileiro?

Com tais premissas, também sob o aspecto da negativa e repúdio à figura institucional da pessoa jurídica ´raça´, manifesto inteira concordância ao último e ponderado artigo de Peter Fry e Yvonne Maggie (O Globo de 11/04/06), a respeito do projeto de lei de “Cotas Raciais” para negros e ouso complementar o título: ´COTAS: POLÍTICA SOCIAL DE ALTO RISCO (para a maioria da população NEGRA)´ e o justifico, concordando com a preocupação social de vários acadêmicos, porém, alegando outras distintas razões, que são do interesse exclusivo dos afrodescendentes.

Um deles, de cunho filosófico, é que a luta dos negros jamais foi separatista. Outros, da realidade historiada. Martin Luther King, viveu intensamente e foi assassinato pelo sonho de construir uma sociedade em que as pessoas fossem julgadas ´pelo seu caráter e não pela cor de sua pele´. Zumbi, acolhia em Palmares, além dos quilombolas, índios, mestiços e brancos. Spike Lee, nos mostra da infância do jovem Malcon Litle, recordações infames: Malcon X, afirma que era uma espécie de mascote, como um poodle rosa, porque era o único negro da turma. Isso significa que cotas, atacando efeitos da discriminação, transformará nossos jovens talentos em mascotes de turmas, pois as causas persistirão excluindo e desigualando milhões de negros no Brasil.

Sucede ademais que a nós, vítimas da hedionda e equivocada colonização RACIAL, cuja cultura acolhida e justificada por dogmas da igreja católica e teorias ´científicas´ do século XIX, ficou perpetuada, não nos interessa como cidadã(o)(s) uma sociedade racializada, conforme decorrente do projeto de ´COTAS NAS UNIVERSIDADES´. Para o século XXI, o desenvolvimento das ciências assegura a prevalência biológica de ÚNICA RAÇA HUMANA e a luta contra os preconceitos e discriminações, exige de todos aprofundar e radicalizar esse conceito na construção e aperfeiçoamento de uma sociedade de IGUAIS em todos os sentidos, sem nenhuma exceção, incluso a de raças, socialmente considerada. “Quando olhamos por alto as pessoas, ressaltam suas diferenças: negros, brancos, homens e mulheres, seres agressivos e passivos, intelectuais e emocionais, alegres e tristes, radicais e reacionários. Mas à medida que compreendemos os demais as diferenças desaparecem e em seu lugar surge a unicidade humana: as mesmas necessidades, os mesmos temores, as mesmas lutas e desejos. Todos somos um.” nos alerta James Joyce in “Finegans Wake”

Pondero ainda que pela estrutura sócio-política brasileira, se racialmente aceita, ela nos seria ainda mais perversa, tal como foi a escravocrata, em que os negros tinham o ´seu lugar´ bem definido: eram escravos ou alforriados (cidadãos de 2a. classe). Se racializada, o Brasil permanecerá uma sociedade em que os não-negros são detentores dos poderes e se permitida, ad argumentandum, por mera liberalidade fosse sociológica admissível e antropológicamente aceitável e juridicamente concebida, conforme desejam os ´cotistas´ a divisão da sociedade brasileira em ´raças´ (o que é vedado pelas cláusulas pétreas da CF), todas as perdas serão dos afrodescendentes.

A primeira delas, é que a violação do princípio geral da isonomia beneficiará a quem detém os poderes decisórios. A outra, é que institucionalizar ´cotas´ exige por princípio a admissão da divisão da humanidade em raças e isso é a negação da ciência e dos princípios republicanos e democratas: todos são iguais em direitos e obrigações.

Entretanto a maior perda, e mais projetável para o futuro, com o benefício a 2 ou 3% de jovens negros, será a inevitável criação de novos ´alforriados´ em pleno Século XXI, agora que começamos, sob a liderança e a compreensão de militantes políticos e de ilustres acadêmicos, negros e brancos, a compreender o nefasto papel involuntário imposto ao alforriado e a demolir os danos da cultura do ´embranquecimento´ e rejeição histórica do irmão negro, naquela compreensível busca de aceitação e ascensão social, marcada pela delação, traição e abandono que marcou o comportamento dos forros em relação aos escravos. A bem documentada biografia de Chica da Silva (acessível nos ´sites´ de buscas), a melhor evidência do comportamento do alforriado, é pública e nos foi representada a cores.

Nesta compreensão, é sempre necessária a crítica histórica: a alforria beneficiava mais a sobrevivência do regime assegurando uma classe ´intermediária´ de negros, que não eram escravos, nem eram cidadãos plenos (V.´Negros, Estrangeiros´; Manuela Carneiro da Cunha; 1985; Ed.brasiliense). Porém, é certo, que o manumisso, salvo exceções, jamais lutou ao lado dos quilombolas para enfraquecimento da escravidão nem foi aliado natural das insurreições e dos abolicionistas, e ainda tinha o dever legal (e moral) de tributário da eterna lealdade e gratidão ao senhor e ao regime sob pena até da revogação ou da deportação para qualquer lugar da costa africana. (não confundir o alforriado com os nascidos livres que atuaram em várias revoltas).

Por conseguinte, a alforria foi prejudicial ao fim da escravidão: a sua maior adoção pelo Brasil que em outros países, concedendo a ´semi-liberdade´ a conta-gotas, retirava da luta contra a escravidão os escravos mais preparados para o inconformismo, neutralizando-os, significando com isso, o retardamento do fim da escravidão por 70/80 anos.

Mais ainda, é bom reafirmar, os alforriados, ficavam condicionados a agir exatamente como faziam os senhores, beneficiários do sistema. Joaquim Nabuco (O Abolicionismo) denunciava o exemplo máximo da Guerra do Paraguai: “A infantaria brasileira que lutou na Guerra do Paraguai não era formada de soldados profissionais, mas pelos chamados Voluntários da Pátria, cidadãos que se apresentavam para lutar: Eram ESCRAVOS, enviados por fazendeiros e por NEGROS ALFORRIADOS.”

Por seu lado, Franz Fanon, diagnosticava: ” A colonização não se satisfaz somente em manter seu alvo em suas garras e esvaziar o cérebro do explorado de toda alma e conteúdo. Ela se volta para o passado dos oprimidos e o desfigura e destrói.” Isso é o que fizeram com os alforriados e farão com os cotistas. A destruição da consciência de luta.

Assim, deduzo, as ´cotas´ será privilégio consentido pelo sistema (com 28 deputados em 513 não temos correlação de forças para a conquista), por exemplo as instituições privadas vão receber um excedente de alunos que podem pagar, e ela vai retirar da luta e solidariedade contra o racismo e discriminações, nossos melhores talentos jovens, transformando-os em ´neo-alforriados´, os mais bem preparados, que teriam o futuro de recolher o conhecimento acadêmico e emprega-lo para a promoção da igualdade aos demais negros que jamais chegarão à universidade, neutralizando-os, conforme Herbert Marcuse. : “o primeiro passo para um escravo conquistar a sua liberdade é…”. A negativa dessa condicionante que afetará os cotistas, inevitavelmente, equivale em violação da ética da responsabilidade, segundo Max Weber: “quem age de acordo com a ÉTICA DA RESPONSABILIDADE, leva em conta as particularidades, avalia os meios disponíveis e considera as POSSÍVEIS CONSEQÜÊNCIAS, assumindo a responsabilidade por elas.” ( B.T. Bottomore e R. Nisbet, História da análise sociológica. Zahar ed. Rio, 1981)

Por outro lado, não posso deixar de anotar que tem o interesse de ONG´s negras e seus militantes, legítimos ou não, que por razões conjunturais e pragmatismo, seus interesses imediatos nem sempre coincidem com o interesse futuro da maioria. Aqui faço analogia com as feministas, nas recentes palavras, autocríticas e diagnóstico da líder feminista, respeitada filósofa e educadora britânica Alison Wolf: ” Acho que o feminismo sempre foi um movimento desonesto. Ele se apresentava como um movimento que defendia o interesse de todas as mulheres, mas era apenas voltado a uma minoria de mulheres da elite, mas com um discurso de que todas as mulheres são iguais e querem a mesma coisa. … eu poderia dizer que o feminismo, longe de ser uma luta pelos verdadeiros interesses das mulheres, seria uma ideologia que encoraja as mulheres a servirem ao capitalismo global, cuidando para que esse capitalismo tenha 100% dos melhores talentos em dedicação exclusiva, e não 50% (masculinos)” (Folha, Mais!, 02.04.06, p.5).

Destarte, não basta setores do movimento negro querer, precisamos saber se ´cotas na universidade´ atende ao interesse da maioria dos negros e à sociedade. Deduzo, pela história, que a consolidação na ´crença em raças´, não interessa, exceto às ONGs em busca de uma clientela sempre mobilizada para sustentar um precário benefício sem fulcro social e jurídico consistente.

Sob o ponto de vista de construção da igualdade, em sociedades multirraciais, uma novidade e um desafio para a humanidade, é certo que, visando ganhar apoios, setores do movimento negro faz uma gravíssima confusão, que alguns acadêmicos reproduzem, entre ´cotas´ e ações afirmativas. Essa confusão generaliza coisas distintas, o que é falso: ´POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVAS´ é uma doutrina de promoção da igualdade e respeito à diversidade que não deve se destinar exclusivamente à questão da raça, mas de gênero também. Os que a conhecem melhor, aceitam e estimulam sua adoção voluntária; ´cotas´ é um dos vários mecanismos experimentados na construção de ações afirmativas – o mais traumático e de menor eficácia – e onde foi adotado, exige o seja coercitivamente, especialmente os EUA, foram vetadas pelo Judiciário, criticadas pelos cientistas sociais e abandonadas, permutadas pelos demais mecanismos de ações afirmativas como o estímulo para a busca de talentos e critérios de diversidade com a remoção de obstáculos subjetivos e injustos.

A doutrina, segundo o Min. Joaquim Barbosa, assim define ações afirmativas: “Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação RACIAL, DE GÊNERO, DE IDADE, DE ORIGEM NACIONAL E DE COMPLEIÇÃO FÍSICA. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”. Por cotas, são denominadas certas políticas públicas mais radicais objetivando a concretização da igualdade material, nasceram no bojo ações afirmativas, mas com essas não se confundem. É nesse sentido, que o prof. Jorge da Silva, da UERJ, é enfático ao dizer que a ação afirmativa “não é simplesmente o estabelecimento de ‘cotas’ percentuais para negros”. (Silva; 2001; p. 28). Porém, alerta o citado Ministro do Supremo Tribunal, “que falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de COTAS, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo, deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal. (Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: O direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001).

Por último, se aprovada a lei, ela será do interesse do sistema e estaremos condenando nossa elite de jovens e todos os negros com formação superior, mesmo os que tenham mérito, igualados a doutores de 2a. classe, e então vamos fazer como fizeram os ´alforriados´, reconhecer e legitimar um status minus e pedir cotas também em empregos de 2a. classe, e aceitar o tal complexo de inferioridade que sempre nos foi atribuída, culpa exclusiva imputável à submissão dos forros.

Aliás, os dados sintetizados em 12/04 pela prof. Wânia Santana, reproduzindo o diagnóstico informados desde o SEADE/1986 aos mais recentes censos e pesquisas de amostras do IBGE, bem elucidam a nossa situação de vítimas do racismo e das discriminações, especialmente aos que já detêm o curso superior ´por mérito´, demonstrando que não basta o acesso ao ensino superior, precisamos combater por ações afirmativas, os critérios de tratamento e de oportunidades, in verbis:

“A escolaridade diferenciada entre brancos e pretos e pardos acaba por se refletir no mercado de trabalho. As pessoas ocupadas de cor branca tinham, em 2004, em média, 8,4 anos de estudo e recebiam mensalmente 3,8 salários mínimos. Em contrapartida, a população preta e parda ocupada apresentava 6,2 anos de estudo e 2 salários mínimos de rendimento. A diferença na escolaridade não é suficiente, porém, para explicar a desigualdade nos rendimentos: embora a média de anos de estudo de pretos e pardos tenha sido 74% da média dos brancos, o rendimento médio mensal da população ocupada preta e parda representou apenas 53% do rendimento dos brancos.

Mesmo entre pessoas com escolaridade equivalente, observou-se um diferencial significativo em todos os grupos de anos de estudo, com a população ocupada de cor branca recebendo sistematicamente mais que os pretos e pardos. A maior diferença foi encontrada no grupo de maior escolaridade: entre aqueles com pelo menos o ensino médio concluído (12 anos ou mais de estudo), os brancos recebiam em média R$ 9,1 p/hora, enquanto que os pretos e pardos tinham rendimento-hora médio de R$ 5,5. ”

Ora, em assim sendo, desprovidos de um ´Estatuto da Promoção da Igualdade´ (genérica), as causas de desigualdades que afetam a todos persistirão, acolhida a legitimação de ´raças´ juridicamente considerada e violada a ética da responsabilidade Weberiana, restando às ONGs desfraldarem nova campanha para ´cotas´ no mercado de trabalho, e estaremos de vez, assumindo a inferioridade, pérfida herança que, com razão, combatemos.

Concluo, imaginando que se o ´africaner´s´ tivessem estabelecido ´cotas raciais´ não teria havido a geração de ´Steve Biko´, nem o rápido final do ´Aphartheid´ e se ao defenderem ´cotas´, não estaremos abortando lideranças do mesmo escol, e reiterando, não é justo nem será ético essa intervenção no futuro de nossos melhores talentos: transforma-los em ´neo-alforriados´ estigmatizados pelo século XXI, retardando décadas na luta pelos direitos IGUAIS a todos os negros no Brasil. Aqui falo da igualdade, material e formal, aquele ideal aristotélico, que Rui Barbosa sintetiza como o tratamento igual aos iguais, com os recursos prescritos desde ´O Contrato Social´ de J.J. Rousseau, para quem, ´se a desigualdade é inevitável, a lei deva promover ações tendentes a assegurar a igualdade´ que vem ser a base doutrinária de ações afirmativas contra as discriminações.

Laura Randall: A experiência de New York e as políticas de ação afirmativa no Brasil

Laura Randalls, professora emérita do Hunter College, City University of New York, e co-coordenadora do Seminário sobre o Brasil da Universidade de Columbia, nos envia um artigo sobre “As lições da City University de New York para o estabelecimento de cotas nas universidades brasileiras. O texto completo está disponível no site do Brazilink. Em resumo:

“Lessons from the City University of New York for the Establishment of Quotas for University Admission in Brazil” provides new information that is relevant to the discussion of establishing quotas for University Admissions in Brazil. It describes a compensatory program “Search for Education, Elevation, and Knowledge” (SEEK) for low income and minority students, and presents retention and graduation rates for regularly admitted and SEEK students both as a group and for black and for white subgroups. Data regarding the impact of the degree of academic deficiency when admitted on retention rates is presented. We do not have enough information to estimate what share of the lower retention and graduation rates of blacks than of whites is due to socioeconomic conditions and what share is due to color. We note that the differential between blacks and whites is now roughly the same among regularly admitted and SEEK students.

Regularly admitted students graduate more rapidly than SEEK students; however, SEEK students’ retention rates are greater than those of students with equally deficient academic preparation who are not in the SEEK program. The importance of using low or no cost techniques to improve teaching and other school conditions and of increasing housing integrated by income to provide better education at pre-university levels is presented as policy choices that should be considered as well as quotas in evaluating the appropriate distribution of spending on interventions throughout the educational system, from pre-kindergarten through university levels.

Confundindo o Estatuto da Igualdade Racial e política de cotas?

Fábio Konder Comparato tem razão ao dizer, em carta para o jornal, que meu artigo na Folha de São Paulo de ontem não se aplica ao projeto de cotas raciais para as universidades. De fato, meu artigo se referia a um outro projeto, denominado “Estatuto da Igualdade Racial”. No entanto, não há dúvida que os dois projetos têm inspiração similar, que é a de oficializar a classificação das pessoas em raças estanques, como se isto fosse necessário para enfrentar os problemas da desigualdade social e da discriminação.

Fábio Wanderley Reis: democracia racial e ação afirmativa

Fábio Wanderley Reis, que vem acompanhando o tema da ação afirmativa desde pelo menos o seminário promovido pelo Ministério da Justiça em Brasília dez anos atrás, disponibiliza o seu artigo sobre “Democracia Racial e Ação Afirmativa”, de 2004, publicado na revista Econômica, da Universidade Federal Fluminense, em um dossê sobre o tema organizado por Célia Kerstenetzky.

Das estatísticas de cor ao estatuto da raça

A Folha de São Paulo publica na edição de hoje um artigo meu com este título. Como o espaço de jornal é limitado, tive que cortar algumas partes, e reproduzo aqui o texto completo, com algumas correções:

O Brasil nunca soube lidar direito com as questões de cor e origem. Já houve tempo em que autores como Nina Rodrigues e Oliveira Vianna acreditavam que os males do pais eram causados pelo sangue ruim dos negros e indígenas, problema que só seria resolvido, se fosse, com o branqueamento e purificação da raça. Mais tarde, Gilberto Freyre tentou difundir a idéia de uma civilização luso-tropical em que, apesar da escravidão, negros e brancos conviviam em harmonia. Nos anos 30 o Estado Novo proibia que filhos de imigrantes aprendessem a ler na língua materna, e botava na cadeia quem falasse alemão, italiano ou japonês nas ruas. Nos anos 50 e 60, os sociólogos marxistas da USP – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni – passaram a argumentar que, em última análise, as questões de raça ou nacionalidade eram questões de classe, que desapareceriam na medida em que aumentasse a consciência de classe dos pobres e proletários e a luta pelos seus direitos.

Nos anos 70, sociólogos de formação empírica do IUPERJ – Nelson do Valle e Silva, Carlos Hasembalg – mostraram que a “cor” – uma aproximação precária do conceito de raça nas estatísticas do IBGE que começvam a aparecer – tinha relação significativa com a condição de vida das pessoas de forma independente, embora correlacionada, de fatores como educação, profissão, etc. Os “pretos” e “pardos” percebem remuneração inferior pela mesma função e têm menos educação que os “brancos” na mesma faixa de renda. Junto com a divulgação destas estatísticas, começava a ganhar corpo um ataque frontal contra a imagem do Brasil como um país culturalmente homogêneo e racialmente integrado, cultivada desde D. Pedro II pelas agências de governo encarregadas da educação e da cultura.

A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas, e sentindo-se inferiorizados pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas. A reorientação dos anos recentes buscou inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação “correta” passou a ser: “o Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e a discriminação. A igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos para a ocultação das diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Ao invés da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros.” O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira.

O Estatuto é uma monstruosidade jurídica e conceitual. Ele pretende obrigar todas as pessoas a se classificarem como brancos ou afro-brasileiros nos documentos oficiais, ignorando os milhões que não se consideram nem uma coisa nem outra, e não reconhece a existência dos descendentes das populações indígenas, o grupo mais discriminado e sofrido da história brasileira. A partir daí, ele introduz direitos especiais para os afro-brasileiros na saúde, na educação, no mercado de trabalho, na justiça e em outros setores. Os direitos que o projeto de Estatuto pretende assegurar não são apenas os direitos humanos, individuais e coletivos tradicionalmente reconhecidos em nossa tradição constitucional – e que devem ser garantidos a todos. O que o projeto tem principalmente em vista é um novo direito a reparações; reparações supostamente devidas a uma categoria social, os afro-brasileiros, e que deverão ser pagas por outra categoria social – os brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, considerados coletivamente culpados e de antemão condenados pelas discriminações de hoje e de ontem. O Estatuto abole o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e cria uma nova categoria de cidadãos, os afro-brasileiros, definidos de forma vaga e arbitrária como “as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, presumivelmente relegando os demais, de forma implícita, a uma categoria de branco-brasileiros.

Basta pensar um pouco para darmo-nos conta de que não temos porque que optar entre as antigas ideologias da harmonia racial e cultural e a implantação de um regime de apartheid no pais, em que supostas identidades e direitos raciais se oficializem e predominem sobre o desempenho das pessoas e seu direito e liberdade de escolher e desenvolver suas próprias identidades. Nem tudo que diziam os sociólogos do passado estava errado. É certo, como observou Oracy Nogueira, que o preconceito de cor, que existe no Brasil, com infinitas gradações e matizes, é profundamente diferente do preconceito de origem que existe nos Estados Unidos, que divide a sociedade em grupos estanques, e por isto não é possível interpretar a sociedade brasileira com os óculos norte-americanos (comparações com paises como Cuba e República Dominicana fazem muito mais sentido). É certo que a “cor” tem uma relação negativa com a distribuição de oportunidades, mas a má qualidade da educação, as limitações do mercado de trabalho e a precariedade dos serviços de saúde, que afetam a todos, têm efeitos muito maiores.

Existe preconceito racial no Brasil? Sim. Mas existe também uma importante história de convivência e aceitação de diferenças raciais, religiosas e culturais, um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não progredir no caminho que vem sendo tentado, identificando situações específicas de discriminação e agindo contra elas, sem dividir a sociedade em “raças” estanques ? Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e precisamos participar.

A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscui na identidade e na vida privadas das pessoas, em que o princípio constitucional da igualdade é mantido, e em que as políticas sociais lidam com as causas da pobreza e da desigualdade; de outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar “graus”, em função da cor da pele de cada um, a ser definida pelo movimento social, partido político ou pelo burocrata de plantão. Um país com políticas sociais baseadas em critérios de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos, com a substituição da antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas.

Archibald Haller: Estratificação Social, Educação e Raça no Brasil

O professor Archibald Haller, que formou gerações de sociólogos brasileiros na Universidade de Wisconsin, Madison, nos envia a seguinte contribuição:

Research using PNAD data of the last quarter of the 20th Century has yielded several results that may be of some importance in the current debates about education and about race.

These analyses were carried out by teams at the University of Wisconsin-Madison USA, and included (among others) researchers now at several other universities: USP, UFMG, the Australian National University, and the University of Iowa. Different specific studies used one or another of the labor force PNADs. But they share certain methodological characteristics. Each uses tightly controlled statistical procedures resulting in conclusions which, though surprizing, would be hard to challenge. All but one set of the findings summarized below has been published.

1. In 1992 the late Helcio Saraiva and I used 1973 and 1982 data. For working men the average income increment per each additional year of education was about 9% in 1973 and 7% in 1982. For working women the corresponding rates were about 8% and 7%. So the greater the number of additional years of education one gains, the greater the already substantial effect of one’s education on one’s income.

This analysis also checked the income increment for each individual year of additional education for those starting at zero years and getting one year, those starting with one year and getting a second year and so on up to those who at 14 years would add a 15th. This excercize showed that — as many have predicted — credentials count: the income increment is higher if one starts at zero and finishes year 1 than if one starts at 1 year and then finishes year 2. Finishing each of the standard termination years (yr.4, yr.8, etc) is more fruitful than stopping in between them. However: contrary to the skeptics, adding a year over what one already has raises income EVEN if that year is between normal termination years. This seems to mean that the LEARNING one gets from education pays off (again, contrary to the skeptics).

2. In 2005 Jorge Alexandre Neves (UFMG) published an article along the lines of the above, but using only the nation’s rural farm personnel. He used the PNADs of 1973,1982,1nd 1988. Contrary to previous research (badly done) and common belief, the income increment to each additional year of education was around 9% in 1973 and 1982, and 5% in 1988.

3. In 2001 Jonathan Kelley (ANU) and I published an analysis of the effect industrial development on income, comparing the less developed Northeast with the more developed South (our definition of these regions [see Haller 1982: Geographical Review]). All classes of workers gain, and in about equal proportions. 40% of the gains were due to education, 10% to occupational upgrading, and 50% to better paying jobs.

In a still unpublished paper (Kelley, myself, and W. Haller [Clemson University]), we retested the same hypothesis by comparing Brazil as a whole (except Amazonia) as industrialization proceeded between 1973 and 1988. Results: Practically identical to those of the 2001 paper. The pay of each occupational group, lowest to highest, grew at about in about the same proportion as every other group: 1% to 2% per year. About 40% of the income growth came from better pay per job, about 10% from occupational upgrading, and about 50% from educational growth.

4. In 2005 Danielle C. Fernandes (UFMG) published an analysis of race, socioeconomic development and education, using age cohorts from the 1988 PNAD. She concluded 1. ‘that the transformations brought about by industrialization have not decreased the effect of the socioeconomic determinants of educational stratification in Brazil’. 2. that race shows its strongest effects at both the lower and the higher levels of educational attainment, and its weakest in the middle. 3. At least as importan, the ‘transformations brought about by industrialization have lessened neither the effects of socioeconomic origins nor of race. Indeed there is compelling evidence that the negative effects of being Black or Mullato have increased’.

******************
Haller and Saraiva (1992). The income effects of education in a developing country: Brazil–1973 and 1982. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILTIY 11: 295-336.

Neves (2005). Labor force classes and the earnings determination of the farm poulation in Brazil: 1073, 1982, and 1988. THE SHAPE OF SOCIAL INEQUALITY: STRATIFICATION AND ETHNICITY IN COMPARATIVE PERSPECTIVE. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 22: 424-475. (Oxford: Elsevier.)

Kelley and Haller (2001). Working class wages during early industrialization: Brazilian evidence. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 18: 119-161.

Fernandes (2005) Race, socioeconomic development and the educational stratification process in Brazil. THE SHAPE OF SOCIAL STRATIFICATION AND ETHNICITY IN COMPARATIVE PERSPECTIVE. RESEARCH IN SOCIAL STRATIFICATION AND MOBILITY 22: 365-422. (Oxford: Elsevier.)

Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades

Peter Fry e Yvonne Maggie publicaram o seguinte texto no O Globo de 11 de abril:

Política social de Alto Risco

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votado por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora “raça” e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei e os cidadãos serão divididos em duas “raças” com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto uma sociedade dividida entre “brancos” e “negros”. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no primeiro mundo. As cotas são destinadas justamente para a classe média baixa que só agora com a expansão do ensino de segundo grau pode sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. E essa classe média ascendente é justamente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas “raças”?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia a dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata, é um remédio barato (posto que é uma política de custo zero que não irá onerar os cofres públicos) e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas, de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas “raças”. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades “raciais” e, em última análise, do genocídio dos “pardos”, “caboclos”, “morenos”etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um vislumbra uma nação pautada das diferenças “étnicas/raciais”—isto é uma nação de comunidades. Outro projeto aposta na construção de uma cidadania com direitos em comum independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada individuo a seguir o estilo de vida que mais lhe convém—isto é uma nação de indivíduos. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a “raça”. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura: um Brasil de cotas raciais?

Este artigo saiu publicado no Correio Brasiliense de quinta feira, 13 de abril de 2006:

O Congresso Nacional está prestes a aprovar a introdução de cotas raciais nas universidades sem um debate mais amplo com a sociedade. Tramita ainda o Estatuto da Igualdade Racial, que, apesar da designação ampla, contempla um segmento específico (os afrobrasileiros), propondo, entre outras medidas, que o cidadão declare compulsoriamente a sua “raça” em todos os documentos gerados nos sistemas de ensino, saúde, trabalho e previdência. Cria-se um Brasil de brancos e não brancos, ou de negros e não negros. Essas iniciativas procuram transformar a diversidade étnico-social da população brasileira em grupos raciais estanques.

O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que a situação pouco se altere. Há a necessidade de políticas sociais que compensem os prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam corrigir um mal maior. Além disso, teriam caráter temporário. No momento atual, no qual mais do que nunca é necessário que se ampliem os debates com a sociedade civil, inclusive com vistas a que o Congresso aperfeiçoe os projetos sob análise, quem discorda desse modelo de políticas sociais, em particular das cotas, vem sendo tachado até mesmo de racista.

A estratégia das cotas é solução equivocada para um problema mal definido. Análises estatísticas mostram correlações importantes entre cor e uma série de desvantagens econômicas e sociais, que persistem mesmo quando outras variáveis são controladas. Assim, “brancos”, “pardos” e “pretos”, ainda que de mesmo nível educacional, têm rendimentos diferentes. Contudo, essas associações precisam ser vistas com cautela, pois não contam toda a história. Mesmo com o mesmo número de anos de estudo, por exemplo, indivíduos negros e pardos podem ter se formado em cursos de menor prestígio e valorização no mercado de trabalho. De fato, parte das diferenças pode também derivar da exposição à discriminação, ainda que faltem estudos detalhados sobre como os mecanismos discriminatórios operam e produzem as desigualdades observadas. Contudo, o que está ampla e detalhadamente comprovado é que a educação das pessoas é o que mais explica as diferenças de renda e oportunidades de vida.

A maneira mais efetiva de reduzir as desigualdades sociais é pela generalização da educação básica de qualidade e pela abertura de bons postos de trabalho. Cotas raciais, mesmo se eficazmente implementadas, promoverão somente a ascensão social de um reduzido número de pessoas, não alterando os fatores mais profundos que determinam as iniqüidades sociais. São reconhecidamente sérios os problemas envolvidos na implementação de cotas. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades com direitos específicos. Já se vê no país a ocorrência de experiências polêmicas de implementação de cotas que desrespeitam o direito das pessoas à autoclassificação. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos “raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir efeito contrário, ou seja, o acirramento do conflito e da intolerância, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos.

Que Brasil queremos? Um país no qual as escolas eduquem as crianças pobres, independentemente da cor ou raça, dando-lhes oportunidade de ascensão social e econômica; no qual as universidades se preocupem em usar bem os recursos e formar bem os alunos. No caso do ensino superior, o melhor caminho é aumentar o número de vagas nas instituições públicas, ampliar os cursos noturnos, difundir os cursos de pré-vestibular para alunos carentes, implantar câmpus em áreas mais pobres, entre outras medidas. Devemos almejar um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela cor ou raça: que se valorize a diversidade como um processo vivaz que deve permanecer livre de normas impostas pelo Estado a indivíduos que não necessariamente querem se definir segundo critérios raciais.

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