Como nos tempos do Estado Novo: obrigatoriedade da sociologia e filosofia no ensino medio

Tenho recebido uma chuva de mensagens pedindo apoio para a campanha para tornar obrigatório o ensino de sociologia e filosofia no ensino médio. O principal promotor desta campanha é o sindicato dos sociólogos de São Paulo. A Lei de Diretrizes e Bases diz que os estudantes oriundos do ensino médio devem demonstrar ” domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Ora, quem sabe sociologia e filosofia são os sociólogos e filósofos formados nestas disciplinas, e quando a lei passar a ser cumprida, eles serão contratados para dar estes cursos, criando um grande mercado de trabalho para estas profissões e, ao mesmo tempo, formando melhores cidadãos para o pais. Bom para os sociólogos e filósofos profissionais, e bom para todo mundo. Certo?

Não, errado! No passado, a tradição era que o governo definia, nacionalmente, os currículos de todos os cursos, que eram obrigatórios para todas as escolas. A conseqüência era que o ensino se dava de forma burocrática, ritualizada, e os estudantes tinham que aprender um amontoado de conhecimentos inúteis e mal dados, que eram esquecidos rapidamente. Em grande parte, isto ainda é assim. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, ainda que de forma imperfeita, buscou mudar isto. Ela estabelece, de forma bastante ampla, que os estudantes devem adquirir conhecimentos de ciências naturais, linguagem e ciências sociais e humanas, e que os governos, nos seus diferentes níveis. devem estabelecer as “competências e diretrizes” da educação em seus diversos níveis, “que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos” dos diferentes cursos. Ela menciona filosofia e sociologia (erradamente, me parece), da mesma forma que poderia mencionar disciplinas tradicionais do ensino médio, como geografia e historia, e disciplinas que obviamente deveriam existir, como o direito, a economia, a computação e a estatística. Em principio, cada escola deveria poder organizar seu programa de estudos como achasse melhor, e os estados e municípios poderiam estabelecer requisitos mais específicos para seu âmbito de atuação, que as escolas deveriam atender, sem perder sua autonomia.

Mas o publico, de uma maneira geral, não entendeu isto, e os governantes tampouco. As demandas pelo ensino obrigatório de diferentes disciplinas não para de crescer: educação ambiental, língua castelhana, agora sociologia e filosofia – porque não antropologia e demografia, e trazer de volta a historia e geografia, e mais a economia e o direito, sem falar das novas áreas cientificas e técnicas, como computação, biotecnologia e nanotecnologia? E a teologia, ou religião? Milhares de novos professores seriam contratados para estes cursos obrigatórios, e os alunos que se virem para entender e memorizar todos estes novos conteúdos!

Isto não tem como dar certo. Do ponto de vista dos alunos, este tipo de educação enciclopédica, formada pela soma de pequenos fragmentos de conhecimentos das diversas disciplinas, não faz o menor sentido. O estudantes precisam dominar a linguagem verbal e simbólica das matemáticas, e é importante que entendam o que são as ciências, o que é o mundo das relações sociais e econômicas, e o que são as instituições. Isto pode ser feito de muitas maneiras diferentes, e existem formas de verificar se de fato estes conhecimentos básicos estão sendo adquiridos e incorporados (vejam por exemplo as avaliações internacionais da OECD, o PISA). O mais importante não é o conhecimento extenso, de um monte de fragmentos, mas o conhecimento o mais aprofundado possível de algumas áreas, com as quais as escolas possam ter mais afinidade. No nível médio, algumas escolas podem preferir se aprofundar na formação literária, outras na formação em ciências biológicas, outras na formação filosófica ou sociológica, ou em determinadas línguas estrangeiras. Idealmente, os alunos, e suas famílias, deveriam poder escolher as escolas conforme suas especialidades. Mesmo não havendo esta possibilidade, se a escola trabalhar bem seus temas, o mais provável é que todos os alunos se beneficiem.

Meus colegas do sindicato de sociólogos que me perdoem, mas sociologia não é, nunca foi e provavelmente nunca será uma profissão, e sim uma disciplina acadêmica, com fronteiras pouco definidas e conteúdos muito variáveis. Como disciplina, ela se aproxima mais de áreas como a filosofia, antropologia e economia do que das profissões estabelecidas como o direito ou a medicina. Os conhecimentos relativos ao mundo das relações sociais, assim como das questões da ética e da moralidade, não são privilégios dos sociólogos e filósofos portadores dos respectivos diplomas, mas estão presentes, de diversas formas, em outras disciplinas, como a teologia, a antropologia, o direito, a historia e a critica literária. Fazer com que as escolas contratem, obrigatoriamente, pessoas com diplomas de sociólogo ou filosofo não é nenhuma garantia de que os estudantes irão adquirir conhecimentos relevantes nestas áreas, inclusive porque a Lei de Diretrizes e Bases não diz, nem teria como dizer, que conteúdos específicos em sociologia ou filosofia os estudantes deveriam aprender. Dada a qualidade geralmente precária dos cursos superiores de sociologia e filosofia no pais, criar esta obrigatoriedade seria, simplesmente, enrijecer ainda mais o currículo escolar, e tornar o ensino médio pior ainda do que já é .

Eu vejo um papel importante para sociólogos e filósofos em relação ao ensino médio, que é o de pensar e propor, a partir de seus conhecimentos, conteúdos que poderiam ser de interesse das escolas, preparando livros e materiais pedagógicos de qualidade, e tratando de convencer as escolas da importância de seus conhecimentos para a formação dos jovens. Mas isto deve ser feito de baixo para cima, a partir do trabalho com as escolas, e não de cima para baixo, pela promulgação de leis de ensino obrigatório, como nos velhos tempos do Estado Novo.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

10 thoughts on “Como nos tempos do Estado Novo: obrigatoriedade da sociologia e filosofia no ensino medio”

  1. SOU FORMADA EM C.SOCIAIS E TENHO POS EM SOC. E ED.AMBIENTAL, E CONCORDO QUE AS DISCIPLINAS SOCIOLOGOA E FOLISOFIA SEJAM NECESSARIA EM TODAS AS SERIES NÃO SO ENSINO MEDIO COMO TAMBEM NO ENSINO FUNDAMENTAL, PORQUE O PROBLEMA DO NOSSO PAIS ESTA RELACIONADO COM AS CIENCIAS HUMANAS ESPECIFICAMENTE COM A SOCIOLOGIA E FILOSOFIA ONDE A HUMANIDADE ESTA CADA FEZ MAIS VIOLENTA E ESSAS DISCIPLINAS TE MOSTRA QUE A BASE DO SER HUMANO É A FAMÍLIA, APARTIR DO MOMENTO QUE ESSA INSTITUIÇÃO SOCIAL CAI EM DECLINIO A TENDENCIA DOS SEUS COMPONENTES É TAMBÉM CAIREM E QDO. CHEGA ESSE PONTO E PRECISO DE MUITO FORÇA PARA QUE TODOS NÃO SE SERES A MARGEM DA SOCIEDADE.

  2. Com lei federal fixando disciplina obrigatória no ensino médio em todas as escolas de todo o país a Lei de Diretrizes e Bases fica literalmente revogada. Quebrou-se a sua espinha dorsal. Hoje, para fins práticos, o país não tem mais uma LDB. Só os farrapos da última.
    OS Estados, que sofreram uma invasão na sua área de atuação, não dizem nada, nem os conselhos estaduais de educação, nem professores nem ninguem.
    Novamente temos a maldição de ver a educação reinventada a cada 10 anos, perdendo-se o rumo e sacrificando o que se fez.
    Esse é o problema, não as vantagens ou desvantagens que podem ser vistas no ensino disso ou daquilo.
    Vamos mal.

  3. ………………….estou começando a me questionar seriamente sobre essa questao das cotas nas universidades, que tanta polemica criou
    atenciosamente, Rosane Chonchol

  4. A todo momento alguem resolve “inventar” uma disciplina obrigatória no curso secundário. Sociologia e Filosofia são apenas as maios recentes.
    O pior disso é que, na falta de propósito, de pessoal formado e licenciado para ensinar,tudo termina em simular o cumprimento da lei. Ou seja, como descumprir a lei sem dar na vista e poder expedir diplomas sem ensinar.
    É e tem sido assim que a simulação entra na vida escolar. E sobretudo nessa etapa a simulação é fatal para todo o trabalho, pois ela se espalha e compromete o conjunto. Uns sabem que não ensinam, alunos sabem que não é ensinado, e a simulação prospera. O exemplo mais eloquente disso foi a reforma do Passarinho e a obrigatoriedade do ensino profissionalizante.
    Assim o Ensino Médio não consegue escapar de ser um corredor para o Ensino Superior, e o vestibular se consagra como a única opção de um jovem brasileiro que não queira parar de estudar aos 17 ou 18 anos.
    Parabens pelo artigo. Não conseguimos mesmo ter livre acesso ao saber – a igreja foi substituida pelo estado, e só ele diz o que se deve saber, o que se deve ensinar, quem pode ensinar e quais tem acesso ao ensino. E o estado brasileiro está ainda convencido de que Manaus está tão longe de Brasília como o Porto está de Lisboa. Chico Buarque tem razão: somos ainda um imenso Portugal. E olha que nem Portugal é mais tão Portugal assim….

  5. Sou estudante da 7a fase do curso de ciências sociais. E é função não apenas da sociologia e da filosofia, como também das outras disciplina do ensino médio despertar o estudante para o senso critico e assim faze-lo conhecer a sociedade na qual vive.
    Em relação a qualidade dos cursos de ciências sociais existentes no Brasil, não podemos avaliar a necessidade da disciplina de sociologia, por causa das deficiências dos professores de sociologia, pois esta seria uma regra que também deveria ser as outras disciplinas.

  6. Acho que nao temos muitas discordâncias. A sociologia e a filosofia podem trazer contribuições importantes para a educação, se forem bem dadas, inclusive da forma “transversal”, ou seja, como temas que aparecem nas demais disciplinas. Minha discordancia é contra a obrigatoriedade destas disciplinas nos curriculos, e o passo seguinte que dai decorreria, que seria que elas só poderiam ser ensinadas por sociólogos e filósofos de carteirinha.

  7. Fui professor do ensino médio durante 10 anos na disciplina sociologia na cidade de Uberlândia. Apesar de a disciplina levar este nome, seu conteúdo percorre as três ciências sociais. O caminho da mudança dos currículos do ensino médio foi inaugurado pela própria Universidade Federal de Uberlândia que, a partir de seu vestibular de janeiro de 1997, trouxe a sociologia e a filosofia como disciplinas de igual relevância em relação às tradicionais matemática, biologia, química etc.
    Alguns resultados relevantes já foram colhidos. Antes de mais nada o reconhecimento de pais e estudantes sobre a transformação da abordagem sobre o mundo dos últimos. Por outro lado, docentes das disciplinas das ciências humanas reconhecem a melhora na abordagem nas suas áreas. Isso se deve fundamentalmente à constatação de que geografia, história etc. não cobrem satisfatoriamente debates fundamentais sobre preconceito, movimentos sociais, reestruturação produtiva, democracia, diversidade cultural no Brasil, entre outros. Nesse sentido, a sociologia não trouxe mero conhecimento enciclopédico. Aliás, este pode ser trazido com ou sem estas disciplinas, afinal trata-se muito mais da abordagem do que da natureza delas.
    Não há, portanto, o simples acréscimo de uma professores, ou mera ampliação do mercado de trabalho para os diplomados nestas áreas. Obviamente não seria uma política de emprego séria a mudança curricular do ensino médio.
    Gostaria também de discordar da concepção de Estado autoritário e da LDB apresentada. Na referida lei, sociologia e filosofia são tratadas como disciplinas transversais passíveis de serem abordadas pelas demais. Desse modo desobrigamos escolas, pedagogos e docentes de abraçarem as temáticas relevantes para a formação do alunado. A descentralização, a autonomia regional ou mesmo da própria escola em decidir seu conteúdo não é uma conquista apriori. Nada, absolutamente nada, nos garante o compromisso local com tais temáticas. A descentralização não é um bem em si, como já provara a professora Arretche. Eu creio que o Estado deve definir o mínimo dentro de um projeto de sociedade desejável. Esse mínimo curricular não pode ser encarado como retrocesso autoritário. A fluidez, a confiança nas virtudes do local, da sociedade civil, me parecem enganosas. Sei que um projeto de sociedade não foi apresentado por este governo e não vejo outras forças portando-os.

  8. Faço minhas as suas palavras. Concordo com tudo que esta escrito neste texto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    Roxxane Chonchol

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