A idéia de premiar financeiramente os educadores de bom desempenho, como a que está sendo implantada agora no Estado de São Paulo, provoca muitas vezes, uma reação instintiva: não estaria errado associar educação e cultura a dinheiro, e transformar os educadores em mercenários? É a mesma reação que existe, muitas vezes, contra o ensino privado, que seria incompatível com uma educação de qualidade, que não fosse um simples treinamento para o mercado.
Esta idéia de separar as atividades nobres do dinheiro é antiga, e tem uma história conhecida. Nas sociedades aristocráticas, os nobres não precisavam nem deviam se preocupar com dinheiro. Sua posição na sociedade vinha do berço, e suas principais responsabilidades eram manter a honra e o etilo de vida de sua casta, e ajudar e tratar com benevolência seus súditos. O dinheiro vinha naturalmente, sobretudo da renda da terra, que não podia ser vendida nem comprada. O pior, para a nobreza, era o “dinheiro novo” nas suas diversas formas, ganho no comercio ou nas transações financeiras: os burgueses, os “parvenus”, e, claro, os judeus. Os gentlemen ingleses, que inventaram o futebol, só deveriam praticar esportes como amadores, sem a obsessão de ganhar; deveriam freqüentar as melhores universidades, Oxford e Cambridge, para estudar história, literatura ou filosofia, nunca a engenharia, que ficava relegada aos institutos de tecnologia. Nada mais ungentlemanlike do que estudar demasiado ou querer ganhar sempre nos esportes. Trabalhar, quando o faziam, era pela Pátria ou pelo Império, nunca para o enriquecimento pessoal.
As profissões universitárias, sobretudo a medicina e o direito, herdaram muito desta idéia de nobreza. Neste modelo que quase não existe mais, o médico trabalha pela saúde dos pacientes, e o advogado, pela defesa de seus direitos. Pacientes e clientes não compram os serviços dos médicos e advogados. Eles se colocam em suas mãos, fazem o que lhes é dito, e, em reconhecimento, honram os profissionais com uma contribuição financeira – os honorários. Da mesma maneira, os cientistas deveriam trabalhar pelo bem da ciência e pelo avanço do conhecimento, sem se preocupar com o uso prático ou os custos de suas pesquisas; e os professores deveriam se dedicar à educação dos jovens, e sobretudo à sua formação cultural e moral, mais do que prepará-los para uma profissão lucrativa. Todas estas nobres atividades requerem dinheiro, necessários para manter a dignidade dos cargos, e este dinheiro deveria vir de honorários e doações das pessoas e salários e verbas do Estado, sempre desvinculados de qualquer associação com serviços ou a produção de resultados específicos.
É possível que este belo modelo tenha funcionado por algum tempo em algumas partes, mas não é preciso muito esforço para perceber o quanto de hipocrisia havia e ainda há por detrás deles. A revolução burguesa traz uma nova ética, associada não mais aos direitos da nobreza, mas ao valor do trabalho. São as abelhas, com seu trabalho miúdo, que constroem as colméias, não as rainhas ou seus zangões. As grandes virtudes de uma sociedade rica, livre e igualitária, só poderiam surgir da agregação dos pequenos egoísmos, vícios e ambições individuais, livres para trabalhar e ganhar dinheiro em um mercado aberto e competitivo. Estas idéias, formuladas por Adam Smith no século 18, ganhariam nova formulação no início do século 20 por Max Weber, com o conceito de ética do trabalho. O que move o capitalismo, dizia Weber, não é a simples liberação dos vícios hedonistas das pessoas, mas o puritanismo da ética do trabalho, trazida pela Reforma Protestante, e originária da tradição judaica e cristã. O puritano trabalha compulsivamente não para ganhar dinheiro, mas para provar a si mesmo que ele foi escolhido por Deus como homem justo e virtuoso, ou por algum outro imperativo moral. O enriquecimento seria um sub-produto da ética do trabalho, para ser reinvestido em projetos cada vez mais ambiciosos e rentáveis, sem afetar o estilo de vida despojado e ascético do empresário. O mesmo tipo de ética do trabalho explicaria a devoção dos professores, médicos e simples trabalhadores às suas profissões e ofícios.
Quanto que as sociedades de mercado de hoje ainda se movem pela ética puritana e ascética de Weber, ou, simplesmente, pela agregação dos empreendedores egoístas de Smith? Basta lembrar de Antônio Ermírio de Morais para darmo-nos conta de que empresários weberianos ainda existem, e o tema da ética do trabalho continua de grande relevância. Mas o mais importante que nos fica de Smith e Weber é a idéia de que existe nobreza no trabalho; que ganhar dinheiro não é uma coisa vil, mas um reconhecimento do trabalho realizado; e que os juizes da qualidade e do valor de nosso trabalho não podem ser nós mesmos, mas a sociedade mais ampla que nos paga e recompensa pelos serviços prestados. É por isto que é uma boa idéia recompensar os bons professores e as boas escolas pelo seu desempenho.
quero que saiba que seu blog continua ótimo – Rosane Chonchol
Caro Simon,
creio que são bastante pertinentes os comentários do Felipe, resenhando objeções importantes a políticas de recompensas monetárias. Creio que esse é desafio que temos de enfrentar – os que simpatizam com iniciativas do gênero.
Vou exemplificar. Acompanho, em estudo de caso, uma escola municipal perto do Complexo do Alemão. Por anos a fio, ela tem feito um trabalho notável de socialização e integração de estudantes que, na rota comum, estariam “na marca do pênalti”. Sua ênfase em aspectos morais e na não exclusão de nenhum aluno (a evasão/expulsão é baixíssima) apresenta, porém sua outra face: a escola tem indíces bastante baixos na Prova Brasil, tanto na 5a quanto na 8a série, pois aceita alunos com má trajetória escolar pregressa (na 5a) e não os elimina. Além disso, parece haver algum efeito pigamalião, pois a expectativa acadêmica do professorado é baixa, quanto aos alunos, talvez refletindo a ênfase em aspectos socializadores. Em suma, a média dessa escola na Prova Brasil é inferior à de outra com NSE equivalente, na mesma região, que não consegue nem mesmo ocupar todas as salas, por conta de sua má reputação e do ambiente interno bastante desagregado.
Claro que a estratégia de comparar a escola consigo mesma, aferindo sua trajetória, evita em parte o problema, mas creio que permanece a interrogação sobre os fins da escola.
Por fim, será que, como no IDEB, não há o risco de que se livrar dos maus alunos vire uma estratégia plausível para melhorar o rendimento médio? Como tratar escolas de sistemas escolares que já apresentam enorme segregação interna, com pontos de partida tão díspares?
Existe controvérsia sobre o uso de incentivos monetários nas atividades educacionais mesmo entre economistas aqui nos EUA, certamente os principais herdeiros de Adam Smith. Eu conheço dois argumentos:
O primeiro, e mais obvio, é que incentivos só podem ser condicionados a atividades facilmente mensuráveis, como por exemplo, a performance de alunos em testes. Na medida em que se deseja que professores ensinem aos alunos conhecimentos ou valores que não podem ser medidos facilmente um sistema de incentivo vai distorcer as prioridades do professor, levando ele a abandonar os objetivos que não são mensuráveis em prol dos que são mensuráveis. O quanto isso é um problema, obviamente, depende de se os professores se dedicariam a qualquer um dos objetivos para inicio de conversa e se os não mensuráveis são de fato importantes. De toda forma, até onde entendo, o debate sobre o No Child Left Behind tende a focar nesse aspecto.
A segunda objeção é na verdade de natureza mais sociológica, mas tem sido descoberta pelos economistas (o Levitt tem um capitulo sobre isso no livro dele), e foi levantada a respeito a idéia de se fazer uma premiação por performance para os alunos aqui em Nova Iorque. A idéia é que, ao se colocar um incentivo monetário para uma determinada atividade, ela passa a ter seu valor medido por esse incentivo e perde para quem a executa o seu valor extrínseco. Colocando nos termos weberianos, você substitui a ética do trabalho e da realização profissional pela ética do mercado. Isso pode ser perigoso na medida em que um medico que se pauta por quanto dinheiro ele pode ganhar vai tender a agir de forma menos ética com o paciente etc.
Naturalmente, vale a ressalva feita acima. Se não existe nenhuma ética que não seja de mercado para inicio de conversa, não há muito o que se perder.
A pergunta, naturalmente, é se é possível realizar uma política para construir essa ética e esses valores ou se a única política possível é o uso de incentivos. O sociólogo aqui é você, mas me parece que os incentivos monetários se tornam mais necessários na medida em que as profissões perdem prestigio e dessa forma deixam de atrair as pessoas que associam um valor maior a atividade profissional em si.