No dia 11 de agosto participei de um “debate sobre cotas” no CEBRAP, em São Paulo, juntamente com Antônio Sérgio Guimarães. O ponto principal de minha apresentação foi que a educação superior brasileira tem problemas importantes, mas que as cotas, raciais ou sociais, não são a resposta, porque elas partem de um entendimento errado a respeito de quais são estes problemas, tanto em relação ao acesso ao ensino superior, quanto ao sistema de ensino superior brasileiro em si. Estou resumindo abaixo a primeira parte, e a segunda fica para um próximo blog.
No início, procurei mostrar, com dados da PNAD de 2004 (a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE), que as diferenças de acesso à educação pelos diferentes grupos de cor, na definição do IBGE, vem se alterando rapidamente. Na população total, mais ou menos metade das pessoas se declaram “brancas” nas pesquisas, uns 45% se declaram “pardos”, e uns 5% se declaram “negros” (daqui em diante utilizarei estas denominações sem aspas). Na população de mais de 20 anos, existem 4,1 vezes mais brancos do que pardos e pretos com educação superior no Brasil (7,7 e 1,8 milhões, respectivamente), refletindo o passado de desigualdades. No ensino médio, a diferença cai para 1,4 vezes (15,7 para 10,9 milhões). A maioria destas pessoas já não está mais estudando. Entre os que estão estudando hoje, a diferença no ensino superior é muito menor, de 2.6 vezes (3 ,4 para 1,3 milhões), e no nível médio, é de 1.1 vezes (4,5 para 4,1 milhões), ou seja, praticamente igual à distribuição da população. No ensino fundamental, já não existem diferenças. A explicação é simples: na medida em que o sistema educacional se amplia, o acesso se torna maior, e a metade não branca da população brasileira, que é também a mais pobre, vai encontrando mais espaço.
A grande expansão do ensino médio dos últimos anos já começa a pressionar o ensino superior, e, para ver o que está acontecendo nesta passagem, fiz uma análise dos dados mais recentes do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, tornados acessíveis pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, o INEP.
Os dados do ENEM não são representativos da população, já que a participação é voluntária, mas já incluem um grupo bem significativo de pessoas. Em 2005 se inscreveram cerca de 3 milhões de jovens, dos quais cerca de 2 milhões fizeram as provas e responderam a um questionário socioeconômico, que continha uma pergunta sobre “cor”, igual à do IBGE. A distribuição é muito semelhante à da população, com 45% de brancos, 38.4% de pardos e 12% de pretos – este último o dobro, em termos proporcionais, do que na população como um todo. Analisando os resultados da prova objetiva, encontramos, como era de se esperar, uma grande variação do desempenho em função da educação e da renda das famílias de origem dos candidatos, e também diferenças por cor. A média dos brancos na prova objetiva é 42,9; dos pardos 36,9; e dos pretos, 35,6; uma diferença, portanto, de 7.3 pontos entre brancos e pretos. A média para todo o país é de 40 pontos. Em termos de renda, as médias são de 31,6 para as famílias com até 1 salário mínimo, e 59.6 para as famílias 10 a 30 salários mínimos – 28 pontos de diferença, portanto. A diferença entre os filhos de mães só com educação primária e com educação superior é de cerca de 20 pontos. Dentro de cada grupo de renda ou educação familiar, as diferenças de grupos de cor persistem, mas em menor grau: entre brancos e pretos (excluindo os pardos), as diferenças são de 2 pontos entre as famílias de um salário mínimo, e 10 pontos entre famílias de 10 a 30 salários mínimos; 3,1 pontos para filhos de mães que só completaram o antigo primário, e 12% para filhos de mães com educação superior.
Estes dados mostram, primeiro, que as diferenças de renda e educação familiar, e não a cor, são os principais correlatos dos resultados do ENEM, que, por sua vez, são uma indicação razoável da chance de a pessoa entrar em uma universidade mais competitiva. Segundo, que existem diferenças entre os grupos de cor que persistem nos diferentes grupos de renda e educação familiar. E, terceiro, que estas diferenças aumentam na medida em que aumenta a renda e a educação das famílias, como se os ganhos em educação e renda das famílias pretas (e, em menor grau, pardas) não fossem suficientes para que os filhos obtenham ganhos equivalentes em seu desempenho escolar.
Alguns economistas têm descrito estas diferenças não explicadas estatisticamente como “discriminação”. No entanto, não há evidência de que seja esta de fato a explicação das diferenças. Elas podem se dever, por exemplo, ao fato de que os ganhos sociais e econômicos das famílias pardas e negras sejam mais recentes, que os cursos superiores dos pais tenham sido completados em carreiras e instituições de menor qualidade, e que estas famílias ainda não tenham conseguido acumular o “capital cultural” que é o requisito para o bom desempenho escolar. Uma indicação do que pode estar ocorrendo pode-se ver na percentagem de pessoas que estudaram em escolas particulares, cuja qualidade em geral é maior, nos níveis mais altos de renda e educação. Entre as famílias entre 9 e 15 mil reais mensais de renda, 59% dos brancos estudaram em escolas particulares, assim como 61% dos pardos, mas somente 28.6% dos pretos. Entre as famílias cujas mães têm nível superior completo, 40% dos brancos, 30% dos pardos e 18.7% dos pretos estudaram em escola particular.
O ENEM tem várias perguntas sobre percepção e experiência de discriminação. Muito poucos se dizem preconceituosos, mas cerca de 30 a 40% vêm preconceitos nos colegas e nas próprias famílias. Mais da metade dos pretos, e 16% dos pardos, dizem que já sofreram discriminação. Mas ter ou não sofrido discriminação não afeta os resultados no ENEM.
É possível, no entanto, que as crianças pretas e pardas estejam sofrendo formas de discriminação que não aparecem nas estatísticas, e que podem estar afetando seu desempenho? É claro que é possível, e até mesmo provável. Mas o que as estatísticas mostram é que, com ou sem discriminação, o que mais determina as diferenças de resultado e de oportunidades educacionais são a renda das famílias, a educação dos pais, e outras variáveis como o tipo de escola que o jovem freqüentou. É importante conhecer melhor, enfrentar e corrigir os problemas de discriminação, assim como os fatores que levam muitas famílias, mesmo educadas e ricas, a não proporcionar a seus filhos as condições adequadas para que estudem e se desenvolvam. Mudar tudo isto é difícil, caro e complicado. Criar cotas raciais nas universidades por decreto é simples e barato. Mas não resolve, e acaba desviando a atenção de aonde estão os verdadeiros problemas.
Fico devendo a segunda parte da discussão, sobre o sistema universitário brasileiro e o que fazer com ele.
Assino embaixo.