O debate sobre cotas nas universidades lida com uma dimensão do ensino superior no Brasil, a do acesso, mas não só deixa outras questões importantes de fora, como que acaba ocupando todo espaço do debate público sobre a questão universitária, que fica em segundo plano.
Em minha apresentação no CEBRAP, chamei a atenção para o fato de que o sistema de ensino superior brasileiro é fortemente estratificado, tanto no sentido de que a maior parte dos alunos vêm de camadas sociais médias e altas, como no sentido de que a estratificação se dá no interior das instituições. Anteriormente, as instituições públicas tendiam a ser de melhor qualidade, gratuitas e de difícil acesso, enquanto que as privadas, além de pagas, eram de pior qualidade, e aceitavam qualquer tipo de aluno. Hoje, existem muitas instituições públicas tão ruins quanto muitas privadas, e diferenças importantes dentro de cada instituição; um número crescente de instituições privadas de elite, sobretudo nas áreas de administração e direito; e um segmento crescente de educação superior privada de acesso gratuito, com poucos requisitos de entrada, e financiado pelo governo federal através do ProUni. Para os estudantes que entram nos cursos e instituições de pior qualidade, públicos ou privados, pagando ou sem pagar, com ou sem cotas, as chances são altas de que aprendam pouco e mal, abandonem o curso antes de diplomar, e, mesmo se conseguirem o diploma, deixem de obter os benefícios que esperavam que ele trouxesse. Na medida em que o ensino superior se expanda, o mais provável é que sejam os segmentos de má qualidade que cresçam, porque estes são os mais baratos, e com isto aumentem estes problemas, a um custo crescente para a sociedade, em dinheiro e frustração.
O caminho não é deter a expansão, mas tornar o sistema mais diversificado e mais eficiente. A diversificação consiste em criar alternativas reais ao modelo dominante de ensino superior, calcado nas antigas profissões liberais, e abrir espaço para diferentes tipos de formação, para pessoas com diferentes interesses e condições de estudo. Hoje, em toda a Europa, discute-se o modelo de Bologna, que combina um nível inicial de três anos para todo o ensino superior, mais acadêmico ou mais aplicado, seguido de um período de formação profissional de dois anos (equivalente ao mestrado), e outro adicional de três ou quatro anos para a formação de alto nível; esta discussão, até agora, não chegou ao Brasil. Se as universidade públicas fossem mais eficientes, elas poderiam, com os mesmos recursos que tem hoje, melhorar sua qualidade e atender a mais alunos. Para se tornarem mais eficientes, elas precisam deixar de funcionar como repartições públicas, assumir a responsabilidade pela gestão plena de seus recursos materiais e humanos, e serem cobradas por seus resultados.
Como não há recursos para continuar financiando a expansão do ensino superior público e gratuito, diante das prioridades muito maiores da educação básica e média, é necessário recolocar a questão do ensino superior público gratuito, e o espaço adequado do ensino privado. A expansão depende hoje, fundamentalmente, do setor privado, que já atende à 70% da matrícula no ensino superior do país. O atual governo, apesar de tratar o setor privado quase como delinqüente, no projeto de reforma que elaborou, foi o primeiro da história recente do país a subsidiá-lo diretamente, através da isenção de impostos do ProUni. É importante criar um marco regulatório adequado tanto para o setor público quanto para o setor privado, para estimular a qualidade de ambos, assim como os espaços para novas modalidades de educação nos mais diversos níveis, e para diferentes públicos.
Parece que esquecemos, finalmente, que uma das funções fundamentais do ensino superior é a formação de alto nível e a pesquisa científica e tecnológica. Isto está dito em todos os documentos públicos, frequentemente em termos da famosa “indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”. O que não se diz é que, em todo mundo, a excelência só se consegue em algumas poucas instituições, geridas por critérios estritos de qualidade e desempenho, e com níveis de financiamento muito superiores às demais. Sem uma politica deliberada de excelência e concentração de recursos, associada a um processo bastante amplo de diferenciação e ampliação do acesso, não iremos a nenhuma parte.
Em um contexto mais amplo de reformas, cabem, certamente, políticas compensatórias para aumentar a diversidade dos jovens que chegam às universidades, desde que acompanhadas de programas educacionais adequados e apoio financeiro para que o acesso ao ensino superior não seja uma simples farsa; e sem que as pessoas precisem ser catalogadas e etiquetadas pelas autoridades conforme a raça de seus avós.
Gostaria de comentar uma passagem de seu último texto:
“Para os estudantes que entram nos cursos e instituições de pior qualidade, públicos ou privados, pagando ou sem pagar, com ou sem cotas, as chances são altas de que aprendam pouco e mal, abandonem o curso antes de diplomar, e, mesmo se conseguirem o diploma, deixem de obter os benefícios que esperavam que ele trouxesse.”
Tenho dúvida se você tem razão quando diz o que está em negrito, na citação acima. Minha dúvida decorre de experiência pessoal e não de dados estatísticos. Fico impressionado com o número de profissionais que conheço, razoavelmente bem estabelecidos na profissão, cuja origem são Universidades privadas de má qualidade. Tanto eu quanto outras pessoas conhecidas já nos submetemos a seções de fisioterapia cujos fisioterapeutas eram oriundos de faculdades privadas de reputação duvidosa. Minha esposa trabalhou 20 anos em uma empresa de grande porte, cuja maior parte dos economistas e admnistradores lá empregados haviam se formado em universidades privadas de má qualidade. Como também descobri recentemente que no corpo docente de uma das melhores e mais bem pagas escolas de ensino médio da cidade há professores que se formaram em uma Universidade privada, digamos assim, de segunda linha. E na área de Comunicação Social já cometi a gafe de perguntar a um profissional muito bem estabelecido se ele havia se formado na UFMG ou na PUC (a resposta foi: em nenhuma das duas). Não há mérito em multiplicar exemplos. MInha impressão é de que os alunos oriundos de Universidades privadas de má qualidade, para meu espanto, e por razões que desconheço, se saem bem melhor no mercado de trabalho do que tendemos a imaginar…