Dois passos atrás

De ontem para hoje, tenho sido perguntando sobre o que penso da iniciativa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior – ANDIFES – de substituir o sistema de listas tríplices para a escolha de reitores das universidades federais pela indicação de um nome único a ser enviado ao governo para nomeação, e também sobre a indicação do presidente do Instituto Lula, Márcio Pochmann, para a presidência do IBGE. Me parece que são dois passos atrás.

As universidades públicas não são repúblicas autônomas, governadas internamente por suas corporações, mas instituições de interesse público, financiadas e de responsabilidade do governo federal. O governo que as financia tem responsabilidade pela definição e acompanhamento de seus resultados, e por isto precisa participar de sua direção. Ao mesmo tempo, as universidades precisam da colaboração ativa de seus professores, e em menor grau de alunos e funcionários, na identificação, produção e avaliação dos seus resultados.

O sistema tradicional de listas tríplices foi uma tentativa de combinar estas duas coisas – os candidatos são selecionados entre pessoas com legitimidade dentro das instituições, e o governo escolhe, entre eles, aquele que lhe parece mais adequado para implementar as políticas públicas para o setor. O reitor não deve ser somente um representante eleito da comunidade universitária, mas também um representante do governo e da sociedade dentro da universidade, responsável por fazer com que ela cumpra os objetivos para os quais é financiada pelos contribuintes.  Na maioria dos países em que as universidades funcionam bem, os reitores são escolhidos por comissões de busca com a participação de representantes do governo e da comunidade acadêmica, e muito frequentemente vêm de outras instituições, justamente para contrabalançar o peso do corporativismo interno.  O ideal seria evoluir para um mecanismo como este, e não oficializar o controle corporativista das instituições.

Em relação ao novo presidente do IBGE, o que mais me chama a atenção foi a forma em que foi feita a indicação, atropelando a Ministra Simone Tebet, cujos esforços de modernizar a economia e a máquina estatal, junto com o Ministro Fernando Haddad, têm sido objeto de grande oposição e resistência por parte dos setores mais retrógados do Partido dos Trabalhadores, dos quais o novo presidente faz parte. Seria leviano afirmar que esta nomeação fará com que os dados do IBGE venham a ser manipulados, inclusive pela tradicional solidez e profissionalismo do quadro técnico do Instituto. Mas seria muito melhor que a instituição fosse presidida por pessoa reconhecida por sua reputação técnica e profissional, e não por seu alinhamento partidário.

Ainda sobre o IBGE, duas questões têm sido mencionadas pela imprensa como problemas que a nova direção do Instituto deveria enfrentar, que precisariam ser mais bem esclarecidas.  A primeira é que o IBGE teria um grave problema de falta de pessoal, já que contaria hoje com cerca de 3 mil funcionários, comparado com cerca de 10 mil décadas atrás. Pode ser que de fato falte pessoal técnico qualificado em determinados setores, mas os milhares de funcionários do passado, em sua grande maioria de nível médio, eram de uma época em que se supunha que o instituto deveria ter uma agência em cada município do país, sem os recursos gerenciais, computacionais e de comunicação de que dispomos hoje. O Instituto, como a maioria das repartições públicas brasileiras, certamente se beneficiaria de uma reforma administrativa de qualidade, mas não para reconstruir o sistema obsoleto do passado.

A segunda é que haveria uma divergência entre os responsáveis pelo recenseamento, que estimaram que a população brasileira seria de 203 milhões, e a “área de pesquisa”, para qual o que valeria seriam as projeções anteriores de 212 ou 207 milhões.  É certo que os números finais do censo são o resultado de estimativas estatísticas que buscam corrigir a falta de cobertura que teria sido da ordem de 5% na média, chegando a 10% ou mais em determinadas áreas. Mas estas estimativas são feitas pelos técnicos do Instituto pelo uso de procedimentos estatísticos estabelecidos e referendadas por um conselho consultivo externo formado por especialistas altamente qualificados. É certo também que, sempre que o IBGE publica seus dados, muitos municípios protestam e dizem que as informações estão erradas, já que o dinheiro que recebem do Fundo de Participação dos Municípios depende do tamanho de sua população, e pressionam politicamente o Instituto para que mude seus dados.

Nos dois casos, questões aparentemente administrativas e técnicas podem estar refletindo conflitos de interesse que, se não forem administrados com competência, seriedade e sem politização, podem comprometer seriamente o funcionamento e a credibilidade do Instituto e, com isto, das informações estatísticas públicas do país.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “Dois passos atrás”

  1. Há muitos anos (2008) escrevemos o Prof Pio e eu um artigo similar. Totalmente de acordo com sua opinião a respeito. Me formei no Uruguay em 1971 e lá é bastante pior do que aqui esse sistema derivado da revolução de Córdoba de 1908. Até hoje a politização impede que a UDELAR atinga um mínimo de governança não corporativista. Mas, a pesar disso e embora exista uma enorme taxa de abandono de estudos o Uruguay tem formado arquitetos de relevancia mundial, médicos muito bons (8 veces mais médicos por habitante do que o Brasil) Aqui a politização e o identarismo está deixando um rastro de destas. Como é que pode existir na UnB um “Centro de Convivência negra” ou chegou a existir um Centro de estudos de Parapsicologia (felizmente morreu por morte natural)

  2. Simon,
    Concordo integralmente com o que escreveste.
    O “aparelhamento” da presidência do IBGE é vergonhoso.
    A eleição direta para reitor nas universidades públicas, fato pelo qual sinto vergonha de ter apoiado nos idos de 1980, mostrou-se um equívoco de consequências graves.
    O Estado brasileiro tem a obrigação de criar regras e mecanismos que corrijam tais situações , e, impeçam os prejuízos decorrentes.
    Paulo Rodrigues

  3. Oportuna sua manifestação sobre uma questão importante para todos nós que trabalhamos nessas instituições construídas para um Estado a serviço do cidadão. Não para um governo com comprovado histórico de corrupção e incompetência.

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