Durante três dias, trinta professores, pesquisadores e autoridades educacionais e de pesquisa de quinze países se reuniram no Centro de Conferências de Sleeping Lady, perto de Seattle (veja se consegue identificá-la na foto), para discutir sobre as transformações e inovações que vêm ocorrendo com os programas de doutorado nas diversas partes do mundo, a convite da Universidade de Washington. Do Brasil, participaram Renato Janine Ribeiro, Diretor de Avaliação da CAPES, Russolina Zingali, professora do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, e eu. Os trabalhos apresentados sobre os diferentes países podem ser vistos no site da Universidade de Washington
Um dos temas mais discutidos foi o impacto da introdução do chamado “Modo II” de produção de conhecimento nos programas de doutorado. “Modo II” foi o termo utilizado pelos autores do livro The New Production of Knowledge – the dynamics of science and research in contemporary societies (Sage, 1994) (dos quais faço parte, junto com outras cinco pessoas) para caracterizar as novas formas de estruturação das atividades de pesquisa científica e tecnológica, aonde se rompem as barreiras entre as disciplinas acadêmicas tradicionais, pesquisa básica e aplicada, o mundo da academia e o mundo empresarial e dos interesses públicos, o conhecimento de domínio público e o conhecimento apropriado; tudo isto em contraste com o antigo “modo I”, em que a pesquisa se organiza em disciplinas estanques, se desenvolve pela curiosidade intelectual dos pesquisadores, e o mundo acadêmico se protege das tentativas de governos e do setor privado de se imiscuir em sua vida.
Este “novo modo” de produzir conhecimentos não é tão novo assim, e nem eliminou o modo mais tradicional, sobretudo na etapa de formação dos cientistas e pesquisadores. Mas ele serve para caracterizar uma forte tendência que vem ocorrendo em todo o mundo, em que a pesquisa científica e tecnológica se torna, ao mesmo tempo, mais importante, mais cara e mais fortemente ligada a interesses e motivações de ordem prática, e onde o espaço para a pesquisa acadêmica mais tradicional vem se reduzindo. A passagem de um a outro modo de produção do conhecimento pode ser traumática e cria uma série de problemas, mas, ao mesmo tempo, torna a pesquisa mais dinâmica e relevante, e com mais condições de conseguir os recursos e o apoio de que necessita para continuar se fortalecendo.
O texto preparado por Renato Janine sobre o doutorado no Brasil mostra bem o sucesso havido no país, quando nos aproximamos dos 10 mil doutores graduados por ano, de qualidade garantida de forma bastante razoável pelo sistema de avaliação da CAPES, e que se reflete também no aumento sistemático das publicações científicas dos pesquisadores brasileiros na literatura internacional – não tenho os números em mãos, mas passamos de algo como 0.5% da produção mundial de papers em revistas científicas internacionais a cerca de 1.5%. Os principais problemas dos doutorados brasileiros, na visão de Janine, são como avaliar a qualidade dos cursos interdisciplinares, como se defender da invasão de programas de pós-graduação estrangeiros de má qualidade, e, a médio prazo, como financiar a expansão futura dos doutorados brasileiros às taxas atuais.
Minha impressão é que, se por um lado o crescimento da pós-graduação brasileira é uma história de sucesso entre os paises do terceiro mundo (ninguém na América Latina, nem mesmo o México, chega perto), por outro lado ainda estamos quase que totalmente imersos no “modo I”, e nossa pós-graduação já dá sinais preocupantes de envelhecimento precoce. Estruturada de forma rígida em disciplinas estanques, monitorada de cima para baixo pela CAPES, avaliada sobretudo pela produção tradicional de papers científicos e títulos outorgados, nossa pós-graduação não sabe como lidar e vive como ameaças a interdisciplinaridade, a internacionalização do conhecimento, as novas formas de parceria e a inter-relação entre o mundo acadêmico e o mundo dos negócios, das aplicações e das demandas da sociedade, coisas que na Europa e na Ásia são vistas como novas oportunidades para melhorar a qualidade, a relevância e as fontes de financiamento para a formação de alto nível e o crescimento da pesquisa científica e tecnológica.
Talvez não seja por acaso que, dez anos depois de publicado, o livro que introduziu o termo e abriu do debate sobre o “Modo II”, que dominou a reunião de Sleeping Lady, nunca tenha sido traduzido ao português e continue sendo praticamente desconhecido no Brasil (existe tradução castelhana, publicada em Barcelona em 1997). Levar a sério as implicações do “modo II’ significa olhar em volta para ver o que outros países estão fazendo; não se alegrar tanto com o crescimento da participação do Brasil na produção científica mundial, de “quase nada” para “praticamente nada”; não se entusiasmar tanto com nossos milhares de doutores produzidos todos os anos, a um custo crescente e fazendo não se sabe exatamente o quê, e em benefício de quem; e começar a pensar sobre a necessidade de uma revisão profunda do sistema de avaliação da CAPES, criado 30 anos atrás e até hoje menina dos olhos de nossos melhores pesquisadores, mas que pode estar se transformando em uma barreira à inovação, à relevância e à entrada de novos recursos públicos e privados para o financiamento de nossa pesquisa – uma grande dama semi-adormecida. Não é uma tarefa fácil, sobretudo pelos riscos à qualidade conseguida com tanto custo até aqui, mas que precisa começar a ser pensada.
Eu também apoio a CAPES, Deus me livre ser interpretado como sendo contra. O que estou dizendo é que o modelo da CAPES precisa evoluir.
Não há dúvida que o “mercado” tem seus perigos, mas o fechamento dentro das burocracias estatais também tem. Mas é preciso entender bem sobre o que estamos falando. As universidades americanas, embora se movam com liberdade dentro de um amplo mercado, são em geral não lucrativas, e não se orientam, fundamentalmente, pela busca do lucro.
Acho muito perigosa essa associacao com o mercado proposta por Simon. Na minha experiência (estou realizando um mestrado em educacao superior na Europa), tenho sentido uma grande preocupacao nos livros e artigos que tenho lido sobre a “mercantilizacão” da educacão, que hoje tem a tendência de somente julgar os bons resultados americanos. Tenho curiosidade sobre quem são os produtores de ciência americanos – são os que tiveram uma formacão mais generalista e migraram para lá para terem melhores condicões de desenvolvimento científico, ou são pessoas que se formaram dentro do sistema americano em que a boa formacão é aquela que garante mais retorno financeiro? As relacões estreitas demais com o mercado podem reduzir a liberdade acadêmica de forma perigosa. Continuo apoiando o controle da Capes. Talvez seja uma posicão conservadora, mas não acredito na maturidade do Brasil para abrir as portas à mercantilizacâo tão facilmente.
Obrigada…
Roberta Silva Antunes
Universidade de Oslo
Agradeço os comentários de Simon, e sempre é um prazer ouvir sua inteligência. Mas não considero que a Capes – atualmente – viva a interdisciplinaridade como uma ameaça. Ela é uma realidade. Tenho insistido em que a avaliação deve seguir a realidade – isto é, aquilo que na prática efetiva dos programas de pós-graduação se revela bem sucedido – e nunca o contrário. Este desafio não é nada fácil, mas fora dela não há solução. Por isso, há vida além dos papers. Estamos incluindo a avaliação de livros, que antes pouco existia. Saímos da primazia quase absoluta do tempo de titulação como grande critério para concessão de bolsas. Estamos enfatizando a extensão de alto nível e induzindo o mestrado profissional, não só aquele que aumenta a competitividade no mercado de trabalho mas também o que contribui para o resgate de nossa dívida social, de que são bons exemplos alguns programas de Saúde Coletiva, como o da UFBA. Mas disso extraio duas conclusões diferentes das suas, Simon. Primeira, a interdisciplinaridade não é ameaça, mas desafio. Ameaças são mal-vindas. Desafios são bem-vindos. Segunda, não há como tirar o Estado do jogo. Nenhum preconceito contra a boa iniciativa privada, mas é o Estado brasileiro, com sua avaliação, que tem segurado a invasão de tudo o que é mau produto: mestrados e doutorados oferecidos ilegalmente no Brasil no período anterior a 2001 (deixando 9.500 pessoas com títulos dos quais a maioria esmagadora não expressa qualidade de formação) e, agora, oferecidos on line. Se não tivermos uma avaliação, que valida ou não os diplomas, essas ofertas não sofrerão nenhum controle. E já é difícil controlar, até porque a Capes não tem poder de polícia.
Mas meu terceiro ponto, e final, é: na verdade, não é o Estado brasileiro que avalia a pós-graduação. É um sistema complexo e bem sucedido que consiste na quase autogestão da pós-graduação por si mesma. Nada do que a Capes realiza teria sido possível sem o decidido apoio das lideranças acadêmicas. Então, a opção não é Estado ou mercado. Nossa saída é outra: uma aliança da academia com o poder público. Tem dado certo. Está diante de desafios que Simon capta muito bem. Mas nem esses desafios são tão ameaçadores, embora difíceis, nem as alternativas são tão desprovidas de problemas.
Desta exposição pode parecer que discordo profundamente de Simon. Não é absolutamente o caso. Penso que tudo o que ele diz sobre o Modo II merece ser levado muito a sério, e portanto nosso debate nacional sobre o assunto tem de continuar – ou começar…
Um abraço,
Renato Janine Ribeiro