Com este título, A revista Veja do dia 7 de maio de 2008 publica uma entrevista comigo nas “Páginas Amarelas”, a propósito de uma pesquisa que realizamos sobre os vínculos entre a pesquisa acadêmica e suas aplicações práticas na América Latina. Para quem tiver interesse, a publicação pode ser acessada aqui. O texto da entrevista é o seguinte:
O sociólogo Simon Schwartzman, 68 anos, ex-presidente do IBGE, é dono de uma vasta produção acadêmica, na qual o tema da educação ocupa lugar de destaque. Seu mais recente trabalho é uma análise comparativa de dezesseis centros de pesquisa universitários do Brasil, da Argentina, do México e do Chile, com foco na aplicação efetiva da produção científica ali desenvolvida. Nele são esquadrinhadas experiências em geral positivas: centros de excelência integrados ao mercado e afinados com as necessidades de cada país. Uma realidade bem distante da que se constata na maior parte das universidades brasileiras. Nesta entrevista, concedida em sua sala no Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), Schwartzman defende a maior integração entre universidade e empresas e a valorização dos centros de excelência. Ele também faz um alerta. O Brasil está ficando cada dia mais distante dos países desenvolvidos no que se refere a investimento em pesquisa. “Estamos perdendo o bonde.”
Veja – As pesquisas feitas nas universidades brasileiras contribuem para o desenvolvimento do país?
Schwartzman – Não como deveriam. Em geral, elas ficam restritas ao âmbito acadêmico e não se transformam em produtos ou serviços úteis à sociedade. Não há transferência de conhecimento, nem mesmo quando se trata de uma pesquisa aplicada.
Veja – Por que isso acontece?
Schwartzman – Há vários fatores envolvidos. Um deles é que a universidade pública, onde se realiza boa parte da pesquisa acadêmica no país, não é estimulada a atender às demandas da sociedade e do setor empresarial, porque é integralmente financiada pelo dinheiro do governo. A experiência mostra que uma instituição só se volta para fora quando precisa buscar recursos. Uma universidade integralmente financiada pelo dinheiro público tem uma tendência à acomodação. Não precisa buscar parceiros e aliados externos. Ao mesmo tempo, a indústria brasileira, tradicionalmente, não tem demanda por tecnologia. Você não pode dizer que a responsabilidade é apenas das universidades se do outro lado não há procura.
Veja – O melhor caminho é necessariamente a associação entre universidade e empresa?
Schwartzman – Na maioria das vezes, sim. Mesmo pesquisas importantes para a sociedade não são devidamente aproveitadas fora da academia quando não existe parceria com empresas. O pesquisador pode criar uma cura para determinada doença, mas transformar isso em um produto farmacêutico requer um investimento enorme e muitos anos de trabalho na etapa de desenvolvimento. Só o custo para registrar uma patente pode chegar a centenas de milhares de dólares. Não basta inscrevê-la num único escritório, a patente tem de ser registrada na Ásia, nos Estados Unidos e na Europa, que são os principais mercados. Isso muitas vezes só é possível com a ajuda de um parceiro privado.
Veja – Qual a responsabilidade dos órgãos oficiais de financiamento à pesquisa nessa situação?
Schwartzman – O sistema de avaliação dos centros de pesquisa e pós-graduação utilizado pela Capes tem mais de trinta anos. E foi muito importante para o Brasil. Graças a ele, o país tem hoje uma pós-graduação que é de longe a melhor da América Latina. Mas já está ultrapassado. Ele dá muita ênfase aos trabalhos acadêmicos e desestimula qualquer iniciativa prática. Os critérios de qualidade levam em conta o número de artigos publicados, o número de doutores formados e a participação em congressos internacionais. A aplicação da pesquisa não é valorizada. Com isso, os pesquisadores só querem publicar artigos em revistas internacionais e, assim, contar pontos para seu departamento. Depois de o artigo ter sido publicado, eles não se interessam em procurar uma empresa para desenvolver o produto. Consideram mais vantajoso à carreira iniciar outra pesquisa, para publicar um novo artigo.
Veja – O que o Brasil perde com isso?
Schwartzman – Há dois tipos de perda. O setor privado perde uma excelente oportunidade de evoluir tecnologicamente. E o governo também perde, pois não usa o saber acadêmico para auxiliá-lo na formulação de políticas públicas. Há uma série de demandas por pesquisa em diversas áreas. Em saúde, por exemplo, para controlar a dengue. Na formulação de políticas de segurança, na administração de complexos urbanos. São linhas de estudo que o governo deveria estimular – e usar. O Brasil precisa do melhor conhecimento para lidar com suas questões econômicas e sociais, e não pode abrir mão dos centros de excelência das universidades. Veja só a área da educação, em que o país vive uma tragédia. Temos um sistema educacional que não ensina. As crianças entram na escola e saem semi-analfabetas com 13 ou 14 anos de idade. Faltam estudos para entender o que está acontecendo, quais as saídas, o que funciona e o que não funciona. A área do meio ambiente é pior ainda. Eu nunca vi um estudo sério e competente sobre a transposição do Rio São Francisco.
Veja – Como mudar esse quadro?
Schwartzman – Por um lado, o governo precisa ser melhor usuário de pesquisas. Embora ele tenha institutos próprios, como o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), há sempre um risco quando o pesquisador recebe seu salário diretamente do ministério. E se o ministro não gostar da pesquisa? Outro papel do governo é estimular as empresas privadas a investir em inovação. Ele tem de compartilhar o risco desse investimento. No que diz respeito à universidade, há duas maneiras de pensar uma mudança: de cima para baixo e de baixo para cima. No primeiro sentido seria criando normas para regular o funcionamento das instituições. Isso já foi tentado no Brasil com a criação da Lei de Inovação, que facilita a ligação da universidade com a indústria. Mas nunca funcionou muito bem. Acho que o melhor caminho é de baixo para cima. Ou seja, dando mais autonomia às universidades e estimulando para que elas não fiquem restritas ao meio acadêmico.
Veja – De que forma é possível fazer isso?
Schwartzman – As universidades públicas seguem a lógica do serviço público. Não têm flexibilidade para pagar melhor determinado pesquisador nem para tratar de forma diferenciada um departamento que tem potencial para produzir mais. Elas precisam poder ser mais flexíveis na sua administração. Esse é um ponto. De outro lado, as instituições têm de ser motivadas a buscar parceria com as empresas. Precisam ganhar alguma coisa com isso, mas também têm de perder se não o fizerem. Vou dar uma sugestão. Se cada departamento da universidade recebesse apenas 50% do seu orçamento e tivesse de levantar os outros 50%, já seria um grande estímulo. Poderia ser estipulado que o pesquisador receberá seu salário em dobro se o departamento conseguir mais dinheiro, mas receberá a metade se não conseguir nada. Isso os tiraria da inércia. Quando eu estudava na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, fecharam o departamento de biologia porque estava obsoleto. E é uma universidade pública. O departamento era antigo, tinha pesquisadores experientes e famosos, mas considerados ultrapassados. Depois de fechá-lo, a universidade foi ao mercado buscar uma nova geração de pesquisadores para substituir a antiga. E por que fizeram isso? Porque sabiam que se tivessem um departamento forte e atualizado conseguiriam dinheiro com mais facilidade junto ao governo e às empresas privadas.
Veja – Que critérios uma universidade brasileira segue para definir suas linhas de pesquisa?
Schwartzman – As decisões são individuais. A lógica é a que está na cabeça de cada pesquisador. Isso pode ser bom para a carreira dele, mas não é interessante para o país porque não há uma linha coerente. O pesquisador morre de medo de alguém dizer a ele o que deve pesquisar. E às vezes tem boas razões para isso. Concordo que o governo não pode definir o que deve ser pesquisado no país. Mas acho que cada instituição tem de eleger prioridades estratégicas, voltadas para as demandas da sociedade. Não tem sentido, por exemplo, o Brasil fortalecer sua pesquisa em física de partículas. Tivemos aqui pesquisadores importantes na década de 40, como Mario Schenberg e Cesar Lattes, que fizeram pesquisa de fronteira e publicaram artigos preciosos. Mas acabou aí. Depois disso ninguém fez mais nada. A física de partículas é hoje uma área bilionária. Depende de investimentos que nenhum país faz sozinho. O Brasil vai participar desse jogo para quê? E vai botar quanto dinheiro nisso?
Veja – O governo distribui corretamente seus investimentos em pesquisa?
Schwartzman – Esse é outro problema. O governo pulveriza muito os recursos. E os projetos contemplados não conseguem crescer. O CNPq (responsável pelo financiamento de pesquisas universitárias) criou o Instituto do Milênio, cuja idéia inicial era fortalecer alguns centros. Mas isso foi sendo pulverizado. Em vez de concentrar o dinheiro em centros de excelência, a estratégia foi diluir. É um critério democrático, mas com isso você não cria densidade. Dessa forma é impossível dar um salto de qualidade. A atividade científica é cara e concentrada. Não é para qualquer grupo. Hoje, a legislação brasileira exige que todas as universidades façam pesquisa. Isso só estimula uma mimetização. O professor participa de um congresso qualquer ou publica um artigo numa revista que ninguém lê. É algo que tem aparência de pesquisa, mas não produz conhecimento. Fazer pesquisa significa participar de um grupo seleto e muito exigente de pessoas que estão produzindo conhecimento de fronteira. É uma atividade que pouca gente faz. Por isso o investimento deveria ser concentrado, como acontece em países desenvolvidos.
Veja – Sua pesquisa analisou universidades que conseguem associar ciência de excelência à relevância social ou econômica. Elas têm algum ponto em comum?
Schwartzman – O principal fator é o humano. Em todos os casos que estudamos, havia um pesquisador com mentalidade empresarial, que liderou o processo de integração com o mercado. Mesmo nas universidades públicas, o líder de um departamento, além de ser bom na sua área, deve ter um perfil empreendedor. Precisa estar o tempo todo antenado com o que acontece fora da universidade para saber quais temas de pesquisa estão surgindo, quais as linhas mais promissoras e onde estão as oportunidades. Ele tem de saber convencer os outros da importância do seu trabalho. Isso cria uma dinâmica. Foi o que aconteceu no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, que virou padrão internacional na área de engenharia. Por que o Exército ou a Marinha não conseguiram fazer nada parecido? Não foi por questão política. Foi porque colocaram gente de talento lá dentro. É preciso dar mais liberdade para que líderes de departamento com capacidade empreendedora possam agir.
Veja – Como isso acontece nos países desenvolvidos?
Schwartzman – Na Inglaterra, todas as universidades são públicas, mas são administradas como se fossem do setor privado. Elas têm agilidade para buscar recursos, identificar prioridades, contratar ou demitir gente e, principalmente, pagar de forma diferente profissionais diferentes. Um grande médico ou um grande químico não podem ganhar o mesmo que um professor de história, como acontece nos universidades públicas brasileiras. Nada contra os historiadores, mas esses profissionais são pagos de forma diferente no mercado. Se a universidade não fizer o mesmo, os mais qualificados irão atrás de oportunidades melhores na iniciativa privada. Nos Estados Unidos, as universidades trabalham com todo tipo de convênio e de parceria. Evidentemente produzem muito mais.
Veja – O mau uso de verbas públicas por fundações ligadas a universidades originou um escândalo que resultou no afastamento do reitor da Universidade de Brasília. No Brasil, essa liberdade não pode dar margem a abusos?
Schwartzman – Não há respostas óbvias para isso. Tudo precisa ser regulado. O caso das fundações é bastante interessante. Elas foram criadas para contornar a rigidez na administração das universidades públicas. Claro que há possibilidade de abusos, como aconteceu em Brasília. Mas fechá-las seria um desastre. Acho muito importante manter as fundações, sobretudo enquanto as universidades públicas estiverem submetidas à camisa-de-força do serviço público. Precisamos ver caso a caso se as irregularidades são de fato ações desonestas ou o exercício efetivo da flexibilidade para o qual elas foram criadas. Fundações estão submetidas à legislação própria de responsabilidade e transparência no uso de recursos, e, se há irregularidades, a solução não é fechá-las, mas aplicar as regras que existem.
Veja – A economia brasileira está vivendo um período notável. A pesquisa acadêmica não tem se beneficiado disso?
Schwartzman – Não o bastante. O Brasil está perdendo o bonde. O volume de investimento em pesquisa tem crescido a uma velocidade bem maior nos países desenvolvidos do que aqui. A distância está aumentando muito. O país não tem capacidade para atrair um investimento de qualidade porque não tem massa crítica. O atual governo fala muito sobre a questão da inclusão. Seu tema principal é o acesso à universidade. Acho isso um equívoco. Você não tem tanta gente para colocar na universidade porque o ensino médio está muito ruim. Essa política dá acesso a gente que não vai conseguir muita coisa. Não acho que o problema da desigualdade social passe pela inclusão na universidade. Seria melhor oferecer uma educação básica de qualidade. A função da universidade é produzir competência, gente bem formada e pesquisa de qualidade. A universidade tem de ter liberdade e estímulo para eleger prioridades. Hoje ela não tem nem uma coisa nem outra. O que devemos discutir é se essa universidade tem bons engenheiros, bons cientistas e se tem capacidade para oferecer serviços. O resto é secundário.
Prezado Professor Schwartzman
Gostaria de somar minha humilde voz discente à do professor Shellar. O comentário sobre a física de partículas foi infeliz. Um ponto geral deveria permanecer assim: geral. Especificar uma área de estudos qualquer, taxando seus praticantes de fracassados inúteis, seria de mau gosto mesmo se fosse verdade — o que está longe de ser.
Existem diversos problemas nesta afirmação. Primeiro, é um absurdo resumir a pesquisa em física de partículas à realização de seus experimentos, alguns deles notoriamente custosos. Existe muito trabalho teórico que precisa ser feito para complementá-los, o que inclui tanto análise de resultados quanto a própria concepção de novos experimentos. Algo similar ocorre, por exemplo, na astronomia, que por vez ou outra também recebe semelhantes críticas injustas. Me espanta o senhor não ter inclusive criticado também esta área, ou mesmo
criticado diretamente o estudo de matemática pura.
Como engenheiro eletricista especializado em computação, garanto ao senhor que os trabalhos realizados na área de física de partículas, e outras, estimulam sim o desenvolvimento da própria computação, como foi com a citada criação da WWW. Também podemos mencionar atualmente o projeto de computação distribuída sendo desenvolvido para atender ao LHC. Este e outros projetos por vezes bem menores podem e são freqüentemente aproveitados em outras áreas. E como disse o professor Shellar, esta sinergia não ocorre apenas com a computação.
Este desconhecimento da profundidade e extensão dos estudos tanto em física de partículas quanto em outras áreas deve ser fortemente combatido. Vimos recentemente uma lamentável campanha de difamação do programa espacial brasileiro, por exemplo. Me pergunto até que ponto todas estas críticas pseudo-científicas são apenas levemente influenciadas, se correlacionando com interesses políticos antagônicos, ou se são decorrências diretas, causadas não só com altíssimo índice de correlação linear mas dependência funcional completa e determinística.
Questiono veementemente todo esse desejo em transformar as universidades em produtores de patentes e em consultores de indústrias. Isto não quer dizer que prego algo diametralmente oposto, apoio sim que hajam interações, acoplamentos, correlações e causações mútuas. Mas é errado ter na produção industrial, ou mesmo nesta chamada “produção intelectual” — lamentável invenção do mundo moderno, transformando o conhecimento em commodity — um fim prioritário da atividade científica. Descobertas científicas não são sacos de farinha.
O mundo das patentes é recheado de pesquisas fúteis. Numerosas são as patentes que não trazem nada de novo. Isto inclui famosamente a indústria farmacêutica. Esta, aliás, merece nossa atenção aqui primeiro porque é muito comum ver um cientista, quando questionado sobre sua atividade, acabar precisando recorrer à criação de remédios para se justificar a contento. Saúde e longevidade são uma espécie de remédio infalível para justificar qualquer coisa. Se contribui para medicina, então algo é visto como bom, se não contribui, dispensável. Isto é lamentável…
A multi-bilionária indústria farmacêutica raramente produz novos conhecimentos científicos relevantes. A interação da indústria com o meio acadêmico também freqüentemente provoca desastres, como pesquisas fraudulentas e desperdício de recursos, sempre devido ao sentimento do “tudo pela patente”. Mais do que isto, patentes são um instrumento extremamente mal-utilizados. Elas devem servir é para proteger o inventor, e permitir que este negocie com as indústrias, mas são utilizadas como instrumento para a apropriação de conhecimentos que poderiam perfeitamente, e deveriam ser tornados públicos. São vários os casos de tecnologias inovadoras que caem vítimas de patentes que as engessam, numa ominosa forma de especulação intelectual.
O verdadeiro espírito científico inclui o desejo em divulgar descobertas da forma mais ampla e rápida o possível. Era o espírito de Santos Dumont, que compartilhava suas descobertas, oposto ao dos controversos estadunidenses Wright que faziam pesquisas secretamente com intuito de “vender” (como se fosse algum tipo de mercadoria produzida como ouro, aço ou soja) conhecimentos aos militares para que estes os convertessem em instrumentos do imperialismo e opressão. Esta é a epítome da contraposição entre o que geralmente ocorre na ciência nossa, e na dos EUA, que ainda hoje se preocupa excessivamente em ajudar às forças armadas daquele país, e a “se dar bem” em geral. Isto se vê até mesmo na usualmente “liberal” Berkeley, que recentemente tem me surpreendido muito ao começar a colecionar decepções minhas — não que isto tenha relevância ao universo. A correlação deste com minhas opiniões não é “estatisticamente significativa”.
Termino citando um famoso parágrafo de Henri Poincaré de que gosto muito, do livro O Valor da Ciência:
La recherche de la vérité doit être le but de notre activité; c’est la seule fin qui soit digne d’elle. Sans doute nous devons d’abord nous efforcer de soulager les souffrances humaines, mais pourquoi? Ne pas souffrir, c’est un idéal négatif et qui serait plus sûrement atteint par l’anéantissement du monde. Si nous voulons de plus en plus affranchir l’homme des soucis matériels, c’est pour qu’il puisse employer sa liberté reconquise à l’étude et à la contemplation de la vérité.
A busca da verdade deve ser o objetivo de nossa atividade; é o único fim digno dela. Não há dúvida de que devemos nos esforçar por aliviar os sofrimentos humanos, mas por quê? Não sofrer é um ideal negativo que seria atingido mais seguramente com o aniquilamento do mundo. Se cada vez mais queremos libertar o homem das preocupações materiais, é para que ele possa empregar no estudo e na contemplação da verdade sua liberdade reconquistada.
Me perdoe se soei agressivo em algum ponto. Careci de tempo para apurar a qualidade desta carta. Pretendo apenas estimular um debate construtivo a respeito destas questões que muito me concernem… O que mais me preocupa é que nesta crise que se está detectando no ensino de disciplinas técnicas no Brasil, tenhamos que passar por esta dificuldade em justificá-las, quando ainda por cima já é tão difícil justificar por exemplo um bom número de disciplinas das ciências humanas, como a história, filosofia e literatura que tanto estimo.
++nicolau
Seu ponto é válido quanto à necessidade de estabelecer-se prioridades. Mas isto é altamente não trivial, pois “prioridades óbvias” as vezes podem ser irrelevantes em médio prazo. No início da década de 80, quando a economia da China era comparável (ou menor que a do Brasil), logo após a revolução cultural, o primeiro projeto científico escolhido foi a construção de um colisor de elétrons e pósitrons, o BEPC (Beijing Electron Positron Collider). Tal iniciativa colocou a China no mapa científico mundial. A construção desta máquina ajudou a China a desenvolver sua capacidade técnica. Hoje exportam componentes de aceleradores para o Japão Coréia e Estados Unidos (veja a revista Science, Vol 315, p.1354, 2007). Nesta mesma época o Brasil iniciou a construção da fonte de radiação síncroton, que resultou no LNLS em Campinas. O LNLS, é um acelerador de partículas, mais modesto que o projeto chinês. No entanto, a existência do LNLS, um motido de orgulho para todos nós, é uma das melhores evidências (para investidores estrangeiros) da excelência técnica e maturidade científica do Brasil. Se eu fosse criticar o LNLS, seria por ser, ainda, um projeto modesto para a capacidade do Brasil. É um projeto emblemático. Mas lembro-me na época muitos argumentos de que o Brasil não deveria construir aceleradores!
Professor Shellard:
Meu ponto mais geral, que acredito que continua válido, é que temos que estabelecer prioridades em termos de investimentos de recursos públicos em pesquisa, e, tanto quanto eu consigo entender, o Brasil nao tem realmente condiçoes de participar de forma mais significativa em uma área como esta, o que nao impede, evidentemente, que exista alguma participaçao colaborativa. Quanto ao exemplo do www, nao creio que seja o resultado de pesquisas em física de partículas, embora seja verdade que ele este protocolo de comunicação começou a ser utilizado no CERN. Finalmente, a correlaçao que o sr aponta entre pesquisa nesta área e desenvolvimento economico é verdadeira, mas sabemos que correlaçoes nao nos dizem nada sobre causalidade (que, neste caso, me parece inversa ao que o sr. aponta).
Li com interesse sua entrevista publicada nas páginas amarelas da Veja de 7 de maio, abordando vários assuntos que têm sido bastante discutidos no meio acadêmico e, em particular, pela comunidade de Física. Veja as publicações recentes “Física para o Brasil: Pensando o futuro”, publicado pela Sociedade Brasileira de Física e, mais recentemente, o estudo encomendado pela CAPES, “Ciência para um Brasil competitivo – o papel da Física”. Nestes trabalhos, vários dos pontos levantados em sua entrevista são analisados. Há pontos com os quais concordamos, outros de que discordamos. Mas estamos em acordo no que tange ao fato de que há muito a fazer no Brasil para melhorar os mecanismos de transformação do conhecimento científico e tecnológico em benefícios para a sociedade. Não há fórmula mágica, nem soluções óbvias para isto. É o confronto de idéias que acaba gerando as soluções.
Mas um tema abordado na sua entrevista causou-me grande decepção. Refere-se a sua observação:
“Não tem sentido, por exemplo, o Brasil fortalecer sua pesquisa em física de partículas… Mario Schenberg e Cesar Lattes…Mas acabou aí. Depois disto ninguém fez mais nada. A física de partículas é hoje uma área bilionária. Depende de investimentos que nenhum país faz sozinho. O Brasil vai participar desse jogo para quê?”
Creio não ter sido sua intenção dizer o que foi dito, que o repórter da revista tenha traduzido erroneamente suas observações. Porque, dito do modo publicado, a observação expressa uma doença que por vezes acomete intelectuais: a arrogância da ignorância. A física das partículas não terminou com Schemberg e Lattes. Ela vai bem no Brasil, com uma produção intelectual respeitável e significativa. Nos grandes experimentos (bilionários), grupos brasileiros são parceiros respeitados e é fácil verificar isto de modo independente. Jornais têm publicado matérias atestando estas contribuições. O Brasil não vai participar deste jogo, o Brasil participa deste jogo e a razão é simples: porque traz benefícios para o cidadão que mora em Madureira, ou nos confins do Acre. Como? O exemplo mais simples é o www, inventado no CERN, e trazido ao Brasil pelos físicos de partículas. Sem eles, também teríamos a www, um par de meses mais tarde, é verdade. Mas qualquer tecnologia será trazida para o Brasil mais cedo ou mais tarde. Então a questão é: para que Ciência? Na verdade, participar desta áreabilionária é um mecanismo muito eficiente de gerar avanços tecnológicos. É uma área que tem uma ação muito relevante no desenvolvimento de instrumentação, cujas aplicações posteriores nada têm a ver com física de partículas. Se o senhor já foi submetido a uma tomografia, esteve dentro de um detector de partículas. Se o Brasil está desenvolvendo uma indústria que é competitiva internacionalmente, sequer pode se dar ao luxo de não participar deste tipo de ciência.
Quanto dinheiro o Brasil vai botar nisso? Evidentemente, não há resposta fácil para a questão. É a mesma questão sobre quanto colocaremos em nanotecnologia, na busca da cura do câncer, ou na solução do problema da dengue. Depende de um processo complexo no qual é avaliada a probabilidade de sucesso científico das iniciativas, das suas conseqüências práticas e, também, do seu impacto econômico não só direto, mas também indireto. Há um exercício que talvez valesse a pena fazer. Estabelecer a correlação entre investimento em física de partículas e o sucesso econômico dos países. Países que tenham economias comparáveis à do Brasil. Suspeito, baseado em evidências superficiais, que a correlação é direta e linear.
Atenciosamente,
Ronald Cintra Shellard
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas