O tema da educação por competências, central na proposta do Ministério da Educação para a Base Nacional Curricular Comum do Ensino Médio, merece uma discussão aprofundada. Em meu comentário, eu afirmei que o documento procura fugir, de propósito, da organização do conhecimento em disciplinas e linhas de pesquisa e estudo, que é a forma em que o conhecimento se dá e é transmitido na prática, e procura substitui-los por uma linguagem formal e abstrata de ‘competências’ e ‘habilidades’ que pode ser útil em processos muito específicos de treinamento para atividades práticas, mas é muito questionável quando se pretende aplicá-la a processos formativos mais amplos. Claudia Costin, em uma mensagem, discordou, dizendo que “todos os currículos mais atualizados de países desenvolvidos trabalham com competências”. Charbel El-Hani lembrou que o termo “competências” pode significar coisas muito distintas: para o suíço Phillipe Perrenaud, cujo trabalho é bem conhecido no Brasil, o foco são as competências para a vida, enquanto que, para a OECD, o foco seriam as competências para o mercado de trabalho.
É verdade que abordagens de educação por competências tem sido adotadas em muitas partes do mundo, mas não em todas, como Claudia Costin faz crer. Uma análise da adoção internacional desta abordagem mostra que que ela tem sido promovida por organizações internacionais como a OECD e usada em muitos países da Europa, África e América Latina, mas não nos Estados Unidos nem nos países asiáticos; que em muitos casos, como na Inglaterra e na África do Sul, reformas curriculares baseadas em competências foram revertidas; e que o que se entende por “educação baseada em competências” varia muito de país a país e entre diferentes níveis educacionais (Anderson-Levitt 2017).
Mas do que se trata, afinal? Como o termo tem sido usado de maneiras muito diferentes, não existe uma resposta única. O conceito tem origem na área de educação vocacional nos Estados Unidos nos anos 70, e a ideia principal é identificar com clareza as aptidões que os trabalhadores deveriam adquirir para o desempenho de atividades específicas no mercado de trabalho, concentrando a capacitação no desenvolvimento das competências e habilidades, e não na formação mais teórica ou formal. Em uma análise que se tornou clássica, a socióloga inglesa Alyson Wolf mostra como esta ideia foi adotada entusiasticamente na Inglaterra nos anos 80 para a elaboração do que ficou conhecido como o “National Vocational Qualifications Framework”, como isto não funcionou, e ela mesma foi uma das principais responsáveis por fazer com que esta orientação fosse mais tarde abandonada (Wolf 1995, 2011).
Mas a educação por competências passou a ser adotada também em muitas partes para a educação geral e a educação superior, com diversas perspectivas e abordagens. É um movimento que tem sido fortemente criticado por ignorar os conteúdos formativos e culturais que, em todos os níveis, devem fazer parte de qualquer processo educativo, e substitui-los por uma visão estritamente comportamentalista (Preston 2017). No outro extremo, a proposta da Base Nacional do Ministério da Educação pode ser caracterizada como tendo uma visão relativista e “pós-moderna” que também ignora os processos educativos e culturais mais básicos, como evidenciado pelos comentários de Claudio de Moura Castro.
Vários documentos recentes da OECD elaboram o que denominam de “competências para o século XXI”, propostas como o caminho para a educação para as próximas décadas (OECD 2018). Em um esquema bastante instrutivo, o texto da OECD divide as competências em três categorias, o conhecimento (disciplinar, interdisciplinar, epistêmico e procedural), as habilidades (skills) (cognitivas e meta-cognitivas, sociais e emocionais, e físicas e práticas) e as atitudes e valores (pessoais, locais, societais e globais). Diz o documento da OECD:
“O conceito de competência implica mais do que apenas a aquisição de conhecimentos e habilidades; envolve a mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para atender demandas complexas. Alunos preparados para o futuro precisarão de conhecimento amplo e especializado. O conhecimento disciplinar continuará a ser importante, como a matéria-prima a partir da qual o novo conhecimento é desenvolvido, juntamente com a capacidade de pensar além das fronteiras das disciplinas e “conectar os pontos”. Conhecimento epistêmico, ou conhecimento sobre as disciplinas, como saber pensar como um matemático, historiador ou cientista, também será significativo, permitindo que os estudantes ampliem seus conhecimentos disciplinares. O conhecimento processual é adquirido pela compreensão de como algo é feito – a série de passos ou ações necessárias para atingir um objetivo. Alguns conhecimentos procedurais são específicos de determinados domínios, outros transferíveis entre domínios. Ele geralmente se desenvolve através da solução prática de problemas, como por meio do design thinking e do pensamento sistêmico.” (p. 5, tradução e grifos meus).
Em outras palavras, a interdisciplinaridade, o pensamento crítico, as atitudes, valores e tudo mais não se desenvolvem no lugar da formação básica nas disciplinas, mas em adição a elas.
Em uma análise detalhada dos diferentes sentidos e usos do conceito de educação por competências, o professor Elio Carlos Ricardo, da Universidade de São Paulo, escrevia em 2010 que “não caberia colocar a noção de competências em meio a falsas dicotomias, como competências versus conteúdos, cultura geral versus utilitarismo ou teoria versus prática. Ao contrário, todas essas dimensões dos saberes integram as competências que são pertinentes tanto quanto responderem a situações desconhecidas”. Sobre as diretrizes curriculares do ensino médio então aprovadas pelo governo, ele assinalava que “ao mesmo tempo em que as DCNEM sugerem uma estrutura curricular na perspectiva das competências, não houve uma discussão teórica que apresentasse a noção de competência como alternativa didática viável para enfrentar os problemas de ensino e aprendizagem” (Ricardo 2010).
É esta a discussão e esclarecimento de ideias que ainda precisam ser feitos.
Referências
Anderson-Levitt, Kathryn. 2017. “Global Flows of Competence-based Approaches in Primary and Secondary Education.” Cahiers de la recherche sur l’éducation et les savoirs(16):47-72.
OECD. 2018. The Future of Education and Skills – The Future we want.
Preston, John. 2017. Competence Based Education and Training (CBET) and the End of Human Learning – The Existential Threat of Competency: Palgrave Macmillan.
Ricardo, Elio Carlos. 2010. “Discussão acerca do Ensino por competências: problemas e alternativas.” Cadernos de Pesquisa 40 (140).
Wolf, Alison. 1995. Competence-based assessment, Assessing assessment. Buckingham England;, Philadelphia: Open University Press.
Wolf, Alison. 2011. Review of Vocational Education – The Wolf Report. London: Stationary Office.
Excelente post Simon, incluindo as referências, pois, de fato, pessoas de áreas diferentes da educação vêem o tema das competência de PDVs distintos. Creio que o doc da OCDE (2018) coloca a coisa de forma bem clara, um bom ponto de partida para o debate. Uma vez baixada a poeira, tendo a ver o conceito de competências como relevante e que ajuda a organizar a conversa, mas parece, como vc bem coloca, que a dificuldade é conectar os conceitos organizadores/abstratos com as práticas educacionais. Talvez o ideal fosse ter um documento como o da Base Nacional restrito aos princípios curriculares, e nisso o tema das competências ajuda muito, e outro doc voltado para as práticas em sala e na escola, o que é mais complicado e precisaria tratar o assunto de forma mais empírica e menos conceitual/abstrata. Como vc termina o post, essa é a tarefa mais importante e mais complicada, pois precisaria de um corpo de especialistas com experiência de didática no EM e com excelente formação conceitual, o que não existe muito no mercado nacional.
Excelente!