Comentando os resultados desastrosos do ensino médio brasileiro, confirmados pelos dados recém divulgados do IDEB, o Ministro da Educação, Aloísio Mercadante, falou do absurdo que é exigir que os todos os alunos tenham que estudar 13 matérias diferentes neste nível, e o jornal Folha de São Paulo anunciou que “o Ministério da Educação prepara um novo currículo do ensino médio em que as atuais 13 disciplinas sejam distribuídas em apenas quatro áreas (ciências humanas, ciências da natureza, linguagem e matemática). A mudança prevê que alunos de escolas públicas e privadas passem a ter, em vez de aulas específicas de biologia, física e química, atividades que integrem estes conteúdos (em ciências da natureza). A proposta deve ser fechada ainda neste ano e encaminhada para discussão no Conselho Nacional de Educação, conforme a Folha informou ontem. Se aprovada, vai se tornar diretriz para todo o país”. O modelo a seguir seria o do ENEM, que se divide em quatro áreas, “ciências humanas”, “linguagens e códigos”, matemática e “ciências da natureza”, cada qual com as respectivas tecnologias.
A preocupação do Ministro é correta e muito oportuna, ainda mais se pensamos que hoje os jovens que queiram ter uma formação técnica de nível médio precisam fazer todas estas disciplinas obrigatórias mais as de sua especialização técnica. No entanto, a solução proposta pode levar a uma situação pior do que a atual. A razão é que não existe, como as vezes se pensa, alguma coisa que se chame “ciências sociais” ou “ciências naturais” em geral, e sim ciências e áreas de formação específicas, cada qual com seus métodos, tradição de trabalho, autores centrais e cultura própria, da mesma maneira que não existe um “método científico” em geral, mas abordagens experimentais, analíticas e interpretativas próprias das diversas áreas de conhecimento. Esta é uma discussão filosófica complicada que não caberia aprofundar aqui, mas o que significa, na prática, é que a única maneira de realmente entrar no mundo da cultura e do conhecimento é escolher uma ou poucas áreas de estudo e se aprofundar nelas, e não tentar entender o conjunto em sua generalidade. O mesmo vale para quem opte por uma via mais prática e profissional, a partir da qual os conhecimentos de natureza mais geral podem ser ampliados e aprofundados.
Para o ensino médio, isto significa que os estudantes precisam poder optar por poucas disciplinas e se aprofundar nelas, e não tentar aprender generalidades ou um pouquinho de cada coisa. Se o interesse for física, economia, inglês ou eletrônica, então ele deve poder se dedicar a isto e deixar de lado todo o resto, e não se preocupar com “ciências na natureza”, “ciências sociais” ou “linguagem” de maneira geral, coisas que poderão vir depois a partir destas escolhas. Uma vez escolhidos os temas, é necessário aprofundar os estudos com autonomia, buscando recursos didáticos disponíveis, experimentando, escrevendo e tendo seu progresso estimulado e acompanhado por professores competentes.
A outra observação é que o currículo do ensino médio brasileiro, embora muito detalhista e extenso, não inclui áreas de grande importância no mundo contemporâneo como a estatística, a economia, direito, ciência política e computação, ao mesmo tempo em que exige disciplinas como filosofia e sociologia que, embora possam ser muito interessantes e produtivas, correm o risco sério de serem dadas de forma extremamente rasa e preconceituosa quando tornadas obrigatórias.
Mas será que, além disto, não existem algumas coisas mais gerais que todos deveriam saber? O consenso é que todos deveriam desenvolver bem o domínio da língua e da matemática, e que isto deve ser trabalhado até o fim da educação fundamental, para que os estudantes já cheguem ao ensino médio com esta formação pronta. Mesmo aqui, no entanto, temos muito que avançar no entendimento sobre o que, realmente, todos os estudantes precisariam aprender. Em um artigo recente no The New York Times, o conhecido cientista social Andrew Hacker critica a exigência, nos Estados Unidos, de que todos os estudantes aprendam álgebra, e mostra como esta exigência faz pouco sentido, porque é pouco demandada no mercado de trabalho e é responsável por grande parte dos problemas de fracasso escolar que ocorrem nos Estados Unidos.
Diz ele: “Of course, people should learn basic numerical skills: decimals, ratios and estimating, sharpened by a good grounding in arithmetic. But a definitive analysis by the Georgetown Center on Education and the Workforce forecasts that in the decade ahead a mere 5 percent of entry-level workers will need to be proficient in algebra or above. And if there is a shortage of STEM graduates, an equally crucial issue is how many available positions there are for men and women with these skills. A January 2012 analysis from the Georgetown center found 7.5 percent unemployment for engineering graduates and 8.2 percent among computer scientists.”
E conclui dizendo que “Instead of investing so much of our academic energy in a subject that blocks further attainment for much of our population, I propose that we start thinking about alternatives. Thus mathematics teachers at every level could create exciting courses in what I call “citizen statistics.” This would not be a backdoor version of algebra, as in the Advanced Placement syllabus. Nor would it focus on equations used by scholars when they write for one another. Instead, it would familiarize students with the kinds of numbers that describe and delineate our personal and public lives. It could, for example, teach students how the Consumer Price Index is computed, what is included and how each item in the index is weighted — and include discussion about which items should be included and what weights they should be given. This need not involve dumbing down. Researching the reliability of numbers can be as demanding as geometry. More and more colleges are requiring courses in “quantitative reasoning.” In fact, we should be starting that in kindergarten.”
Esperemos que, ao levar à frente a indispensável reforma do ensino médio, o Ministério da Educação não recaia nos equívocos do ENEM, trocando os conhecimentos retalhados de hoje por generalidades sem conteúdo, e opte por dar aos estudantes possibilidades reais de escolha, aprofundamento e melhor formação.
Creio correto afirmar que não existam “interdisciplinas”, mas sim problemas que podem ser tratados de forma interdisciplinar. No caso da EB, considero importante que, na medida em que os estudantes dominem os campos específicos do conhecimento, seja provocados a aplicar o que aprenderam para resolver problemas interessantes. Nesse sentido creio ser válido utilizar questões relevantes do dia-a-dia como tema de estudo, e aí cabe um “approach” integrado.
Aliás, creio que seria mais apropriado substituir o conceito de “disciplina” pelo de “cultura epistêmica”, o lvro de K. Knorr-Cetina sobre o assunto é uma boa referência: Epistemic Cultures: How the Sciences Make Knowledge.
Correto. A interdisciplinaridade não existe por si mesma. Ela existe em programas de pesquisa que tenham por objeto questões suficientemente complexas para exigir o concurso de diferentes áreas para sua investigação. Fora disso, não temos interdisciplinaridade, mas “pout-pourri” que não rara vezes termina em uma compreensão rasa de diferentes disciplina. Esse é um dos problemas centrais de uma grande parte dos programas de pós-graduação da tal da “área interdisciplinar (sic)” criada pela CAPES. O problema é que interdisciplinaridade está em voga. E há uma tendência bastante frequente entre nossos policy-makers, de tentar resolver problemas complexos a partir de soluções fáceis, da moda. Eu acho que até é possível pensar em projetos interdisciplinares desenvolvidos junto com alunos de 2º grau. O problema é achar que isso possa substituir, no atacado, o aprendizado específico de disciplinas.
Tratando deste mesmo problema, faz algum tempo, entrei nos sites da Phillips Exeter Academy e do Lycée Luis le Grand. Lembremos que uma é a melhor high school dos Estados Unidos e a outra está entre as duas melhores da França.
Olhando a grade de matérias, é possível verificar que não há rigorosamente nada interdisciplinar. Todas as disciplinas são montadas em torno das tradições acadêmicas de suas áreas respectivas – tal como você diz. Ou seja, se cachorro grande não entra nesse pântano interdisciplinar e integrativo, não seria querer demais que os tupiniquins o façam?
Excelentes considerações sobre o ensino médio, o segmento esquecido das políticas nacionais. Na verdade, a reforma do ensino médio (nmais uma) anunciada pelo Ministro já está em andamento com a publicação da RESOLUÇÃO Nº 2, DE 30 DE JANEIRO 2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNs). Resta saber se as disciplinas que comporão as quatro áreas previstas realmente caminharão na direção proposta aqui e não apenas troque “os conhecimentos retalhados de hoje por generalidades sem conteúdo”.