Meu artigo “Das Estatísticas de Cor ao Estatuto da Raça”, publicado na Folha de São Paulo de forma resumida e neste blog, foi também disponibilizado no site “Gramsci e o Brasil”, editado por Luiz Sérgio Henriques, de Juiz de Fora. A página, muito bem feita, está pensada como um foro de circulação de idéias sobre as questões brasileiras contemporânas, de forma aberta e plural, e fiquei feliz em que meu texto, tão pouco “politicamente correto” neste Brasil de hoje, tivesse esta acolhida.
Confesso, no entanto, que não acabo de entender por que esta identificação com Gramsci. Muitos anos atrás, eu tentei ler os textos dele, mas não fui muito longe – eram manuscritos escritos na prisão de Mussolini, nos anos 30, tudo muito referido ao contexto da época. Sei que Gramsci foi um dos poucos marxistas a dar importância à questão dos intelectuais, da cultura e da educação, mas, pelo pouco que entendo, ele não era um defensor do livre debate de idéias, e sim da necessidade de criar uma “intelectualidade orgânica” a serviço da luta de classes contra a hegemonia intelectual e cultural da burguesia. Sei também que ele se tornou uma marca ou símbolo de uma vertente do marxismo que procura ser mais aberta e flexivel, no tratamento das questões da cultura, do que o marxismo dogmático da tradição leninista-stalinista.
Mas Lênin e Stalin estão mortos, fisica e intelectualmente, há muito tempo, e me parece difícil conciliar a visão orgânica e politizada da cultura em Gramsci com uma posição intelectual efetivamente aberta e própria das sociedades democráticas contemporâneas. Se eu tivesse que escolher um intelectual marxista como referência, eu teria outras escolhas – Georgy Lukács, para começar, ou Henry Lefebvre. Mas não vejo razão para esta identificação com antigos autores da linhagem marxista, quando o mundo das idéias sobre a cultura e os intelectuais é muito mais amplo e mais interessante do que isto.
Enfim, é a escolha de cada um.
O principal de minha nota foi me perguntar se ainda fazia sentido criar um espaço de discussão de idéias sobre questões contemporêneas, marcado por valores liberais e democáticos, a partir da identificação com Gramsci. Eu entendo que Gramsci se transformou no ícone do eurocomunismo, com tudo o que significou de ruptura com o marxismo dogmático. Mas o eurocomunismo, apesar de todo o seu aggiornamiento, ainda era um gueto intelectual e político, que não teve como se manter por muito tempo, uma vez que a ortodoxia marxista foi abandonada.
O comentário secundário, fortemente criticado, foi que, se eu tivesse que escolher um autor marxista como referência, eu teria outras escolhas. São preferências antigas, de meus tempos de estudante na UFMG. Eu havia chegado a Luckacs através do sociólogo francês Lucien Goldmann (“Sciences Humaines et Philosofie”, 1952), que havia recuperado o clássico “História e Consciência de Classe” (renegado pelo autor em uma de suas reviravoltas políticas), que parecia oferecer uma base para uma ciência social histórica e dialética, em oposição ao materialismo rígido de Engels e Lênin; e “La Somme et le Reste”, de Henri Lefebvre, de 1959, marcou para mim o desmoronamento definitivo do pensamento dogmático, e a abertura das ciências sociais para os temas da vida quotidiana nas sociedades modernas. De Gamsci, por outro lado, nunca consegui tirar nada que me marcasse, talvez porque ele só se tornou importante, como referência, anos mais tarde.
Tudo isto é arqueologia, expressa uma história pessoal, e não pretendo passar juizo sobre a superioridade intelectual e muito menos pessoal destes diferentes autores, que hoje em dia pouca gente lê e sabe que existiram.
Simon, teus comentários sobre Gramsci, quiçá o maior ícone do marxismo dos anos sessenta e setenta, são de bom senso e desarmam. Ainda assim me permito lembrar que a importância de um pensador deve ser medida também por seu lugar dentro de uma dada tradição, neste caso o marxismo. Ademais Gramsci foi uma figura humana exemplar.
Mais um comentário: Georgy Lukás foi um exemplo de dogmatismo,
especialista em excomungar grandes escritores que não se encaixavam na sua definição de “realismo socialista”.
Melhor ficar com Gramsci.
Abraços
Bernardo
Caro Simon,
Vejo, com agradável surpresa, a breve troca de idéias no seu blog, ensejada pela intervenção do José Eli, que é um estimado colaborador de “Gramsci e o Brasil”.
Discutir o legado de Gramsci, Lefebvre ou Lukács não é pouca coisa… A meu ver, Gramsci teve uma vantagem em relação aos outros dois grandes marxistas mais ou menos seus contemporâneos: mesmo morrendo precocemente, protagonizou
a política no “Ocidente” (geográfico e político), com sua maior complexidade e suas exigências políticas e culturais maiores do que na antiga URSS ou nos outros países da sua órbita.
Lefebvre também viveu no “Ocidente”, é claro, mas sua relação com a política é menos imediata, e ainda por cima conviveu com um PC “duro”, obreirista, enraizado certamente na classe operária industrial, protagonista
da Resistência e da República francesa, mas com uma vocação para o gueto político.
De Gramsci saiu o principal partido comunista, cuja prática ao longo de
décadas – apesar de todas as contradições, que não foram poucas – desde o princípio trouxe uma marca “diferente”: um partido de massas com forte inserção no mundo da cultura (da alta cultura, inclusive), capaz de participar ativamente da democratização e da modernização da Itália, mesmo sem poder participar de funções nacionais de governo por causa do sistema de vetos da guerra fria.
O caminho do PCI não foi um caminho sem rupturas internas, mesmo em relação a Gramsci. Togliatti teorizou, com seriedade, a “via italiana” ao socialismo; Berlinguer chegou àquilo que, para mim, é o ponto alto da trajetória comunista no século XX: a idéia de democracia (política) como valor universal. Este Gramsci, assim filtrado pela experiência do PCI (e que de
alguma forma prossegue na Itália de hoje, em condições radicalmente
diversas), é aquele que ainda hoje nos interessa ou, pelo menos, me
interessa. Este Gramsci é que, nos anos 1970 e 1980, estimulou até mesmo a presença de uma corrente “eurocomunista” em vários PCs do mundo, inclusive no PCB.
Por outro lado, há aspectos inteiramente datados nos “Cadernos”, e nem poderia ser diferente. Mesmo um clássico, capaz de despertar interesse em
outras circunstâncias, nunca pode estar muito acima da sua própria
circunstância ou inteiramente desligado dela. Gramsci era, também, um comunista da Terceira Internacional. Isto ajuda a explicar por que, p. ex., circulam versões estreitas e até perigosas do conceito de “intelectual orgânico”, como se se tratasse da figura (complicada) do “intelectual de partido”. E outros casos poderiam ser mencionados. O fato é que veria com péssimos olhos
qualquer tipo de nova ortodoxia “gramscista” (péssima palavra).
Interessante, sobretudo, a apropriação de algumas categorias gramscianas para o estudo da situação brasileira. Um conceito como o de revolução
passiva já circula com certa amplitude na nossa historiografia, às vezes com bons e até excelentes resultados.
E o site Gramsci e o Brasil, mesmo publicando um material variado e
naturalmente até contraditório, quer valorizar o legado gramsciano, particularmente nesta vertente que leva a Berlinguer e à democracia como valor universal. Por isso, a presença entre nós de intelectuais do campo liberal e democrático não é uma concessão ou uma tática. É uma necessidade vital que sentimos, até para nos renovarmos e, por que não, modificarmos. O que não exclui divergências de opinião e de pontos de vista, que, de resto, são o sal da vida.
Grato pela atenção,
Prezado Simon,
Pelo que conheço do seu pensamento, esta mensagem só pode ser fruto de
um algum sério equívoco. Suspeita que se confirma quando você sugere que Lefebvre ou Lukács teriam sido muito superiores a Gramsci.
É caso de perguntar: qual Luckács? qual Lefebvre? Como os dois tiveram a chance de viver depois – e o dobro do tempo que viveu o coitado do Antonio – mudaram tanto de pensamento, que fica difícil saber do que você está falando. Por exemplo: você está pensando no horroroso Lefebvre stalinista, no
confuso Lefebvre pós-expulsão do PCF, ou no libertário Lefebvre pós-1968? Pelo que conheço das obras dele e do Lukács, duvido, e faço pouco, da hipótese de
que teriam sido capazes de deixar aquelas anotações em linguagem cifrada, nas 2.848 páginas de 32 grossos cadernos arduamente obtidos nas masmorras fascistas
que liquidaram o pobre sardo aos 46 anos.
A meu ver, essa comparação chega a ser desrespeito (senão ofensa) à
intelectualidade italiana. Mas, enfim, gosto não se discute, diz o ditado. A esmagadora maioria de nosso compatriotas, por exemplo, gosta muito mais de futebol do que de ciência, não é? Fazer o quê?
FORTE ABRAÇO, zeeli