Procurado pela reporter da Veja, conversei longamente sobre a questão do ensino das ciências sociais das escolas brasileiras. O que saiu, em uma reportagem sobre as queixas de uma mãe sobre os livros adotados pelo Sistema COC de Ensino, foi eu dizendo que “as crianças não aprendem mais o nome dos rios ou as datas relevantes da história da humanidade. Elas estão tendo contato com uma ciência social superficial, marcada pela crítica marxista vulgar”. Espantada, a professora de geografia Zilda Rodrigues me escreve:
Dito por um sociólogo, numa revista que atinge aos mais variados segmentos sociais e intelectuais, deixa-nos, professores de Geografia, numa situação, no mínimo, constrangedora. Afinal, o que se espera de nós? Uma Geografia puramente descritiva de paisagem ou uma Geografia analítica e crítica da paisagem? O conhecimento geográfico é apolítico?
Certamente, com todo o respeito e admiração que tenho por suas idéias – sou leitora de vários artigos seus, dos livros “Pobreza, exclusão social e modernidade: uma introdução ao mundo contemporâneo” – excelente, aliás e já indiquei a vários colegas; “As causas da pobreza”, que também sempre indico; tal afirmação só pode ter sido descontextualizada, uma vez que, não se pode esperar uma escola cidadã, repetindo amontoados de nomes, fatos e datas que serviriam apenas como “decorebas”. Isso remete-nos a uma época de “obscuridade” das ciências humanas.
Não há dúvidas de que há vasto material didático “marcado pela crítica marxista vulgar”, bem como é urgente maior rigor das editoras na divulgação desse material. Mas daí a defender uma história e geografia que exaltem nomes e datas, há uma distância muito grande. Assim compreendemos(mal?) eu e vários leitores, com quem cça,onversei, a maioria deles professores, claro!…Considerando que nossa opinião não tenha grande peso, como tem a sua, não caberia, portanto, à revista esclarecer melhor tal colocação?
Lembrando Paulo Freire, que ainda continua guiando meus passos “Ai daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora, se atrelem a um passado, de exploração e de rotina.”; refletindo sobre o desafio de que “…Para que a pobreza seja vencida, é necessário vontade política e compromisso com os valores da igualdade social e dos direitos humanos; uma política econômica adequada, que gere recursos; um setor público eficiente, competente responsável no uso dos recursos que recebe da sociedade; e políticas específicas na área da educação, da saúde, do trabalho, da proteção à infância, e do combate à discriminação social, e outras. Tudo isto é fácil de dizer, e dificílimo de fazer. A construção de uma sociedade competente, responsável, comprometida os valores de equidade de justiça social, e que não caia na tentação fácil do populismo e do messianismo político, é uma tarefa de longo prazo, e que pode não chegar a bom termo. Mas não há outro caminho a seguir, a não ser este.”
Creio tratar-se de um lamentável equívoco… Afinal, que papel cabe a nós, professores, na construção dessa sociedade?
O que tratei de explicar para a reporter foi que, no passado, o ensino da história nas escolas se limitava quase que à narração de uma cronologia de reis e batalhas, que os alunos tinham que decorar. Este tipo de história, que corresponde ao que os ingleses chamam de “Whig history”, e que poderíamos traduzir para “história de salto alto”, interpretava o passado como uma marcha acendente da civilização até o presente, moldada pelos grandes feitos dos políticos. Eu lembrei que, ao final dos anos 30, na França, surgiu uma nova maneira de ver a história, como processos de longo prazo, que deveriam ser entendidos com o auxílio das diversas ciências sociais. Esta nova história, conhecida como a da “ Escola dos Annales”, e representada por autores como Marc Bloch, Lucien Febre, e, depois, Fernand Braudel, teve muitos desdobramentos, e hoje a historiografia é muito diversficada, cobrindo desde a história política mais tradicional até a história econômica, história social, história das mentalidades e história da cultura, entre outros.
O problema é como transformar esta história mais aberta e cheia de especializações em um curriculo escolar. Um bom curso de história, me parece, deve dar o contexto e a interpretação dos grandes processos sociais, mas deve também dar aos estudantes um marco de referência clara, um “mapa” dos principais eventos que fazem parte de nossa memória histórica, do período clássico até a história mais recente – o que foram a civilização do Egito, o Império Romano, a Idade Média, a revolução industrial, o período das descobertas, os impérios coloniais, a guerra fria… Não há como fazer isto sem nomes de países, de personalidades e datas relevantes.
Na geografia, o problema é parecido. Mais talvez do que a história, o que era antigamente geografia está hoje dividido entre muitas disciplinas diferentes – cartografia, geociências, botânica, economia regional, demografia, sociologia urbana e sociologia rural, entre outras. Os franceses, sobretudo, com sua excelente tradição de ensino, desenvolveram uma geografia para as escolas que procura ser uma síntese didática de tudo isto, com um forte elemento descritivo – é aí aonde os alunos aprendem como são os continentes, os países, as principais formações naturais, os sistemas políticos e econômicos, como o território é ocupado pelo homem – e, claro, quais são os principais rios, e a importância que têm.
A substituição dos antigos cursos de história e geografia pelas ciências ou “estudos sociais”, feita com a boa intenção de acabar com a memorização sem sentido de datas, nomes e acidentes geográficos, redunda muitas vezes na transmissão de interpretações extremamente simplistas e ideologicamente carregadas da história e da atualidade, vazias de conteúdo, que não contribuem em nada para a boa formação dos estudantes.
Eu concordo com a professora Zilda e com Paulo Freire que devemos olhar para o futuro, buscar melhorar nossas sociedades, valorizar e garantir os direitos humanos, etc. Quem poderia pensar diferente? Mas a questão não é esta, e sim decidir o que ensinar nas escolas. E aí minha inspiração não é Paulo Freire, que pregava a junção entre educação e “conscientização”, ou doutrinação, mas Max Weber e seus textos famosos sobre a ciência e a política como vocação. A responsabilidade do professor, que trabalha do lado da ciência, é de formar os estudantes para que eles possam entender o mundo em que vivem e suas diferentes interpretações, e tomar suas próprias decisões. É uma violência, eticamente inaceitável, aproveitar da posição de professor para inculcar nos alunos uma visão e interpretação particular a respeito do passado, do presente e do que deveria ser o futuro. O político é diferente, sua vocação é defender seus pontos de vista, e tratar de destruir os argumentos dos adversários. Todos nós somos, em alguma medida, políticos, porque temos nossos pontos de vista, mas nossa obrigação, enquanto professores, é não forçá-los sobre os alunos. A melhor contribuição que os professores podem dar para a construção de um futuro melhor, me parece, não é conquistando os alunos para suas ideologias, mas dando a eles os fatos, e também as diferentes interpretações e pontos de vista, que lhes permitam exercitar, plenamente, sua cidadania.
Quem estudou ou lecionou geografia em escolas de ensino fundamental nos anos 1980 e início dos anos 1990 sabe que os ditos geógrafos críticos só eram críticos com o capitalismo e eram coniventes com os crimes do socialismo real. Autores como Vezentini, Melhem Adas e outros apelavam para soluções socialistas sem questionarem o preço humanitário da opção que fizeram. Alguns posteriormente fizeram o mea-culpa. Quando até em livros de cartografia atuais (Cartogr. Escolar- Prof. Eugenio Fonseca) se critica esta postura, nota-se o quanto ela foi ridícula. O pior é que quem pensava diferente foi chamado de reacionário e vendido ao imperialismo ianque. Manter uma postura parecida, hoje, além de mais ridículo ainda é completamente anacrônico.
Agradeço pela atenção e esclarecimentos. Como já havia dito anteriormente, imaginei que, como geralmente acontece, as “edições comerciais” acabam tornando simplistas questões muito sérias. Bom se os leitores da Veja tivessem acesso também a esses esclarecimentos. De certa forma, não há conflitos de idéias ou ideais. Bom ver as pessoas se manifestando, discutindo, sobre a Geografia e nossas responsabilidades como professores. Espaço aberto, vamos lá…
Ao professor cabe facilitar o acesso de seus alunos ao conhecimento, não restam dúvidas, mas não podemos nos esquecer de nosso papel político em sala de aula. É nesse sentido a referência a Freire. E que fique muito claro: político e nunca politiqueiro. Político no sentido estrito de estimular a sua participação, enquanto indivíduo inserido num contexto amplo, de desenvolver sua capacidade de analisar, criticar, ponderar, livremente; sem conduzir raciocínios e condutas que correspondam às nossas convicções. Para tanto, apontar, cuidadosamente, visões diferentes para um mesmo fato, provocando discussões sobre seus aspectos positivos e negativos, pode ser altamente produtivo, mas desastroso seria apontar qualquer que fosse como a ideal. Eles são capazes, sim, de julgar, hoje ou amanhã, qual a mais coerente, de acordo com suas próprias convicções. Lembrando Weber: “Não posso fazer de outro modo; detenho-me aqui”.
O trabalho com jovens e adolescentes requer imensa responsabilidade, sobretudo quando se tem com eles um bom relacionamento. Lamentável aproveitar-se de nossa postura para transformá-los em meros reprodutores do nosso pensar. É assim que muitos de nós, professores de Geografia, orientamos nosso trabalho: com autoridade e responsabilidade, livres de qualquer forma de autoritarismo.
Corcordo plenamente com a bela resposta do Prof. Schwartzman à repórter da Veja, que tenta fazer sobre ele um tipo bem conhecido de patrulhamento ideológico. É claro que o norte dos mestres deve ser Weber e não Paulo Freire, que é, a meu ver, uma versão brasileira do gramscismo. Parabéns pela lucidez e pela coragem intelectual, professor Schwartzman!
Esta nota do professor Juliano Rosa se refere ao comentário que coloquei no blog que ele mantém, cujo link pode ser visto ao final deste comentário (“tropinha, retroceder!”). Eu não sou professor nem especialista em geografia, embora estivesse bastante próximo dela nos anos que estive à frente do IBGE. Por isto, prefiro reafirmar os pontos principais:
– O que estou discutindo é o ensino de geografia e história nas escolas, não a geografia e história como áreas científicas, um outro assunto que poderiamos discutir mais adiante;
– Como diz muito bem João Batista, não existe ensino sem conteúdo, e uma parte importante deste conteúdo é a informação, e não somente as interpetações desta informação. Um bom ensino de história e geografia, assim como de sociologia, é aquele que transmite a informação de forma inteligente, que faz sentido para o estudante, e que não seja mera “decoreba”.
– O exemplo que dei da França e dos Estados Unidos, como os que poderia ter dado da Inglaterra e outros paíes, foi só para mostrar que existem formas inteligentes de ensinar a história e a geografia nas escolas, sem cair nos extremos da memorização dos fatos nem das interpretações vazias.
– Sobre o lugar do marxismo, vulgar ou não, nos curriculos de história e geografia, creio que há de tudo. Mas não há dúvida de que o marxismo, nas suas diferentes versões, traz uma maneira bastante fácil e sedutora de interpretar a realidade social, embora ninguém o adote mais, praticamente, nos meios acadêmicos propriamente ditos.
Tudo isto leva à conclusão, adotada nos diversos países, que o ensino destas disciplinas não pode ser deixado ao bel-prazer de cada professor, mas requer um curriculo bem definido, e livros didáticos de qualidade, a partir dos quais os professores possam trabalhar.
Prezado professor,
Antes de tudo, obrigado pelo comentário.
Devo dizer que temos opiniões totalmente opostas quanto a Geografia ser ciência ou não.
Evidentemente, temos diferenças também quanto a função dada a Escola na Geografia e, de certa forma, quanto a origem e manutenção de determinadas disciplinas no currículo escolar – por isso citei Andre Chervell.
No mais, a grande dúvida – e talvez não tão clara no meu post – que tive foi a seguinte: na revista, há um elogio ao ensino de história da forma como era realizado algum tempo atrás. No seu texto, aqui, há uma posição mais equilibrada (o que eu concordo – especificamente no caso da história), ao se referir no uso dos ‘nomes’ e ‘datas’ como algo complementar.
Já no caso da Geografia acontece algo interessante. Embora muitos professores sequer sabem o que é marxismo, há muitas posições muito próximas a essa particular visão de mundo. No entanto, cabe ressaltar, a renovação no ensino – tanto na academia quanto na escola – não é, essencialmente, fruto de reflexões marxistas. A situação da Geografia não é, portanto, muito semelhante aquela supostamente apresentada pela história. É até engraçado, Prof. Simon, que muita gente da direita desce o sarrafo em uma “Geografia Marxista” criticando as propostas didáticas até certo ponto inovadoras do Prof. José William Vesentini e do jornalista Demetrio Magnoli, que, sabemos, jamais concordaram com tal rótulo. De fato, é uma situação meio forçada encaixar os dois autores acima citados dentro de uma proposta marxista – mais ainda ‘marxista vulgar’, como muitos fazem.
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Li a referência recomendada. Devo confessar que fiz com certa ressalva, porque os Estados Unidos não é um bom exemplo de tradição no ensino de Geografia (nos anos 1980, por exemplo, a disciplina praticamente desapareceu do currículo das escolas estadunidenses). Os cinco temas essenciais para o ensino de geografia, condensados pela Joint Committee on Geographic Education, foram depois expandidos em seis categorias amplas (refiro-me ao Geography Education Standards Project, publicado em 1994), exprimindo melhor o que se desejava para a geografia naquele país.
O retorno da Geografia nas escolas estadunidenses se deveu, sobretudo, ao excelente trabalho da Aliança Geográfica, da Sociedade Geográfica Nacional e do Conselho Nacional para o Ensino de Geografia. James Marran, ex-presidente dessa última entidade, fazendo um balanço da diferenças entre a Velha Geografia Escolar com a nova proposta implementada nos EUA(James Marran, Journal of Geography 93, jan.-fev. 1994, pp. 8-9.0), conclui que uma das diferenças entre ambas é que a primeira privilegiava a memorização de informação de nomes geográficos, enquanto que a segunda incentiva a resolução de problemas- um raciocínio espacial, pra usar as palavras de Yves Lacoste, um dos principais nomes da renovação do ensino de Geografia na França.
Pra finalizar, gostaria de citar algumas palavras do prof. José William Vesentini, um dos responsáveis pelo ensino de geografia renovado no Brasil, e que, talvez, seja um pensamento compartilhado também por nós dois:
“No lugar de auxiliar o educando a se encontrar como cidadão, como homem participante numa práxis em que o social é reinstituído cotidianamente, em que contudo há uma certa indeterminação, muitas vezes o professor trilha um dirigismo que fixa para o futuro modelos e caminhos já delineados. Com isso, não se contribui para o desenvolvimento da cidadania; no máximo, se produzem militantes dogmáticos e intransigentes, inimigos da democracia em nome de um ideal mítico e totalitário de coletividade auto-regrada e transparente de ponta a ponta.”
Grande abraço, com admiração,
Juliano Rosa,
Professor de Geografia
Prezado Simon,
não poderia concordar mais com o que disse. Cresci educado nesta nova história (entre aspas) e somente quase que sozinho, em algum passeio ocasional pela biblioteca, descobri que marxismo não era a única interpretação da história. Não digo que todos os professores fazem isto de caso pensado, mas também não todos ingênuos.
Obrigado por esta bela resposta.
Simon
Li a reportagem da VEJA e, diferentemente da Professora Geografia Zilda Rodrigues, entendi com clareza suas colocações. Não existe ensino sem conteúdo, não existe aprendizagem se os alunos não possuem um conjunto comum de conhecimentos. Se cada professor e cada escola defininem o que ensinar, os alunos que chegam estão privados de participar daquela sala de aula, pois não têm sobre o que conversar. Infelizmente, no Brasil, jogamos fora o bebê com a água do banho, no caso do Ensino Fundamental. No ensino médio, como quem manda é o vestibular, as coisas são mais ordenadas do ponto de vista de ter programas de ensino, o problema lá é o que se pede no vestibular: disciplinas demais e excesso de trivialidades que impedem o aluno de dedicar os anos de sua juventude a aprender bem algumas disciplinas, em profundidade. O Brasil carece de programas de ensino, e é impressionante a irresponsabilidade e inação do MEC e das Secretarias de Educação nesta questão. Não é por acaso que temos os resultados que temos nos exames como o SAEB e PISA. Se a experiência do resto do mundo valer, basta abrir a internet para ver como os países onde a educação funciona lidam com essas questões.
João Batista Araujo e Oliveira
Presidente do Instituto Alfa e Beto