O artigo 205 da Constituição federal, ao estabelecer o direito à educação, introduz duas perspectivas pelas quais a definição de políticas públicas educacionais devem ser analisadas: o direto das pessoas e o dever do Estado. Ao dizer que o objetivo da educação é o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, indica que a concretização do direito à educação se dá quando o cidadão desenvolveu os aprendizados que lhe permitem as inserções sociais listadas no texto constitucional. Por outro lado, o artigo define o Estado e a família como responsáveis pelo provimento da educação.
Para operacionalizar o dever do Estado na Educação, a lei estabelece que os diferentes entes federados devem organizar sistemas de ensino que têm responsabilidade direta de gerir os meios que vão garantir o direito e são compostos das escolas, secretarias de educação e Conselhos de Educação. Diante disso, é natural e esperado que a administração pública tenha processos de monitoramento e avaliação para verificar como os sistemas de ensino atendem às necessidades educacionais dos cidadãos de seu território de atuação. Este texto considera apenas o monitoramento do atendimento do direito de cada estudante, não tratando do monitoramento do dever do Estado. Esta escolha é contextual e não deve ser interpretada como minimização ou subalternização do estudo e monitoramento desta dimensão.
Na visão do jurista[1], tomada como princípio neste texto, “proteger direitos significa realizar direitos”. Portanto, é preciso definir quais são as evidências que devem ser aceitas para que se possa afirmar que um sistema ensino está garantindo adequadamente o direito à educação aos estudantes de seu território de atuação. Para definir estas evidências existem várias desafios a serem superados.
O artigo constitucional, ao definir os objetivos da educação, especifica os aprendizados que caracterizam o direito. No entanto, esta especificação é muito genérica, fato reconhecido pelo próprio constituinte que incluiu o artigo 210, o qual estabelece que “serão fixados conteúdos básicos para o ensino fundamental […]”. Esta determinação ensejou a criação de expectativas de aprendizagem que orientam a formulação dos projetos pedagógicos dos sistemas. De posse destas orientações, os testes para medir o nível de aprendizado dos estudantes, elemento fundamental para a verificação do direito, podem ser organizados.
Embora reconhecendo a importância dos aprendizados, é preciso salientar que a permanência do estudante na escola é a condição essencial para que o aprendizado ocorra. Fixados, então, os resultados que concretizam o direito – os aprendizados e a permanência – é preciso definir como estes dois construtos devem ser medidos. Os aprendizados são medidos pelos testes das avaliações externas. Ou seja, a evidência mais comum da garantia do direito é completamente dependente da métrica usada no SAEB. Há claras evidências de que essa métrica capta uma visão muito superficial dos aprendizados necessários para uma inserção completa do cidadão na vida da sociedade brasileira. No entanto, o SAEB é um sistema bem implementado com uma longa história de aplicação e, minimamente, produz resultados confiáveis, principalmente quando indica baixos níveis de aprendizados. Na reformulação do SAEB, necessária para a organização do novo ciclo de metas, será importante revisitar as matrizes nos quais os testes do SAEB são baseados. Isso exige estudos técnicos, mas também construção de consenso social e comparações com as soluções adotadas em diferentes sistemas nacionais e internacionais.
Já a permanência pode ser representada pelos quatro níveis em que a medida de trajetória dos estudantes é classificada: (i) regular, (ii) com poucas intercorrências, (iii) com muitas intercorrências e (iv) com interrupção, sendo “intercorrências” episódios como o de reprovação, evasão e abandono. Esta informação pode ser obtida no painel do Censo Escolar com acesso via sala segura do INEP.
Para serem usadas no monitoramento e avaliação do direito, estes dois resultados devem ser transformados em indicadores de qualidade e de equidade que podem, posteriormente, compor um indicador sintético. A metodologia proposta para isso é introduzida, inicialmente, para o resultado de aprendizado.
A visão da qualidade, entendida como nível adequado do indicador, implica em escolher uma síntese numérica das proficiências dos estudantes que instrumentalize o debate educacional sobre esta questão. A forma mais simples de fazer isso é usar uma média dos valores, com alguma padronização, como feito no IDEB. No entanto, esta opção legitima a “substituição” de um estudante por outro, ou seja, um estudante com notas mais altas acaba “compensando” outro com notas mais baixas. Isso não é adequado para o monitoramento do direito, situação em que cada pessoa é sujeito de direitos e, portanto, criar um estudante médio fictício e fazer sínteses a partir desta abstração, não é metodologia adequada.
O artigo 205, quando diz que a educação é para todos, estabelece a equidade como critério essencial. As evidências para consideração da equidade exigem reconhecer que os estudantes pertencem a grupos sociais diferentes. Para além disso, o olhar da equidade implica em considerar a diferença dos valores dos resultados nos grupos sociais, ordenados por algum fator social, conhecido por dificultar que os estudantes pertencentes a um determinado grupo tenham valores mais altos na medida de resultado. Uma situação ideal de garantia do direito apresentaria a mesma distribuição estatística do resultado em todos os grupos, com uma concentração em valores compatíveis com as inserções sociais objetivadas pela educação. Ou seja, equidade é um construto que prevê igualdade entre a distribuição do resultado entre os grupos sociais.
A definição destes grupos é a primeira etapa para o cálculo da equidade. Recente pesquisa[2][3], usou a porcentagem de estudantes que, depois de nove anos, têm trajetória regular, para ordenar os grupos, criados pela interseção de três variáveis: sexo, raça/cor e nível socioeconômico. Este artigo mostra uma grande diferença – 58 pontos em 100 – entre os grupos constituídos de estudantes do sexo masculino, pretos e matriculados em escola de baixa NSE, e o grupo com estudantes do sexo feminino, brancas e matriculadas em escolas de alto NSE.
Para o cálculo do indicador de equidade, há uma dificuldade adicional. Vários grupos socialmente importantes são muito pequenos em muitos territórios. Por exemplo, em muitas cidades o número de indígenas é pequeno, não permitindo comparações estáveis com outros grupos. A solução consiste em agregar os diferentes grupos usados para especificar qual equidade se quer medir e formar quintís, com o primeiro agregando os estudantes que estão nos grupos mais vulneráveis o quinto agregando os estudantes menos vulneráveis.
Um indicador de equidade consistiria, então, na diferença do indicador usado para sintetizar as proficiências ou a permanência em um conjunto de estudantes, entre os estudantes dos dois quintis extremos, naturalmente, com uma padronização posterior. A solução de agregação dos grupos em quintis garante um grupo na base da hierarquia e outro grupo no topo, aproximadamente de mesmo tamanho.
O infográfico abaixo ilustra a metodologia. Os resultados individuais na primeira linha apresentam os valores do indicador, tomando-se os estudantes como unidade de análise. Na segunda linha, os mesmos valores são agregados nos grupos, definidos para o estudo da equidade. Note que os grupos possuem tamanhos distintos quando esta agregação é feita. Finalmente, na terceira linha, para efeito do cálculo do indicador de equidade, os grupos são agregados a fim de comporem quintis, contendo cada um ~20% dos estudantes.
Figura 1 – Criação dos grupos para medir a equidade
A criação dos quintis garante que é possível calcular o tamanho das desigualdades presentes nos dados em qualquer situação, mesmo nos territórios em que alguns grupos tenham muito poucas observações. Isso é especialmente importante se os grupos da segunda linha fossem, por exemplo, as escolas de um território. O custo desta potência é que a medida de equidade é uma síntese das desigualdades para o conjunto dos grupos criados, não outros grupos que poderiam ser criados com as mesmas variáveis.
Embora o infográfico acima ilustre a metodologia para uso com dados de desempenho, com pequenas nuances a mesma metodologia pode ser usada também se o resultado for a permanência, que deve também ser analisada com o olhar da qualidade e da equidade. Criados os indicadores para os dois resultados, a produção de um indicador sintético pode ajudar no debate educacional. O segundo infográfico mostra como este indicador seria obtido.
Figura 2: Esquema de cálculo do indicador sintético
A reflexão deste texto é feita como subsídio para as discussões necessárias para adequar o IDEB ao novo momento social, em que as desigualdades educacionais estão colocadas no centro do debate. No entanto, a definição final exige a consideração de várias nuances o que só pode ser feito institucionalmente. No momento, a lei estabelece que é o INEP o órgão com esta responsabilidade.
Hoje, as avaliações e os indicadores existentes são forte indutor de desigualdades, já que há um padrão de desempenho para os estudantes da escola pública, que é baixo, e outro mais alto praticado pelas escolas privadas. É preciso que o Brasil avance no sentido de ter instrumentos mais indutores de qualidade e equidade.
Por fim, uma consideração adicional que deve ser feita no debate é a presença de fatores que geram exclusão e não são ainda medidos. Dois grupos precisam ser considerados. Os estudantes da comunidade LGBTQIA+ são, com frequência, submetidos a assédios escolares que tornam sua permanência na escola mais desafiadora e, consequentemente, o aprendizado mais difícil. Também os estudantes filhos de família onde há violência doméstica têm dificuldades especiais.
Referências:
[1] DA SILVA, Virgílio Afonso. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. Página 77
[2] SOARES, José Francisco; ALVES, Maria Teresa Gonzaga; FONSECA, José Aguinaldo. Trajetórias educacionais como evidência da qualidade da educação básica brasileira. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 38, 2021. https://www.scielo.br/j/rbepop/a/9ZRM8LBTqQMHMDQNJDwjQZQ/
[3] https://www.linkedin.com/pulse/equidade-ao-centro-do-debate-educacional-francisco-soares-fwagf?trackingId=WLVNMk%2FuRByqcnnWofrAng%3D%3D&lipi=urn%3Ali%3Apage%3Ad_flagship3_profile_view_base_recent_activity_content_view%3BRMnUMmsbQESwEvMera4Hkg%3D%3D