O jornal O Globo publica no domingo, 14 de outubro, a segunda parte de seu artigo a propósito da pesquisa de Coesão Social:
Apesar de ter apontado a democracia como a melhor forma de governo, uma ampla pesquisa sobre coesão social na América Latina, que integra o projeto “Bases para uma Agenda de Coesão Social em Democracia na América Latina”, financiado com recursos da União Européia, mostra que há diferenças entre concepções e valores. A pesquisa foi realizada pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, em conjunto com a Universidade Católica do Chile e a Corporación de Estudios para Latinoamérica, também chileno, com amostra de dez mil pessoas, em seis países da América Latina: Argentina, Guatemala, Brasil, Chile, México, Colômbia e Peru. Os valores democráticos são mais fortes na Argentina e Brasil, e menores na Colômbia, Chile e Guatemala. O que as pessoas entendem por democracia, no entanto, pode variar muito de pessoa a pessoa e de país a país.
Muitas pessoas valorizam a democracia, mas não entendem que ela supõe a garantia dos direitos individuais de todas as pessoas que fazem parte dela, ressalt ao sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), que atuou na pesquisa. No Brasil e no Chile, metade dos entrevistados não crê que os criminosos têm os mesmos direitos que as pessoas honestas. A principal queixa é em relação à polícia, considerada ruim ou péssima por 30 a 40% da população, exceto no Chile.
No Brasil, a maior queixa em relação à polícia ocorre no Rio de Janeiro, enquanto que em São Paulo a queixa maior é em relação às escolas públicas. A população dos países pesquisados vive insegura. Nas casas, durante o dia, 16% das pessoas se sentem inseguras; o centro das cidades é praticamente inacessível, com uma sensação de insegurança próxima de 80%. Os níveis de vitimização, ou seja, roubos e assaltos efetivamente sofridos, chegam a ser surpreendentemente altos em países como a Argentina e Chile, cujas capitais têm uma longa tradição de segurança. A pesquisa mostra que os bairros estão deteriorados, com a propriedade privada ameaçada e riscos de violência, roubos, assaltos e a presença de tráfico de drogas.
No Brasil, a cidade que aparece como mais insegura é Porto Alegre, acima dos níveis do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Um número significativo de respondentes, 15%, acredita que se justifica ter arma de fogo em casa para se defender. Comparado com outros países, o Brasil, e mais especialmente a cidade de São Paulo, é onde as pessoas são menos favoráveis às armas de fogo; Porto Alegre, por outro lado, se aproxima dos demais países da região, aonde a aprovação da posse de arma de fogo varia entre 30 e 40%.
O expresidente Fernando Henrique Cardoso identifica, em entrevista recente à rede de televisão inglesa BBC, que existe um mal-estar difuso na sociedade devido aos péssimos serviços prestados pelo governo, à violência e à tensão política — o que impediria um novo consenso nacional que proporcione maior coesão social.
Alguns trechos de um artigo de Joaquim Villalobos, consultor para conflitos internacionais e ex-comandante guerrilheiro em El Salvador, publicado no jornal “Clarín”, da Argentina, ajudam a entender esse “malestar” na região. Na América Latina, escreve ele, “enfrentamos o que alguns qualificam como guerra civil continental contra o crime organizado, as quadrilhas urbanas, a delinqüência comum e a violência social. A produção e o tráfico de drogas estão ligados à globalização cosmopolita, mas, em nossos países, geram fragmentação social. Esse fenômeno supera em extensão as rebeliões políticas que existiram durante a Guerra Fria, e, em proporções diferentes, afeta todos os países”.
Com o cenário descrito, numa crítica à atuação de certos setores da esquerda na América Latina, Villalobos diz que “incentivar sistematicamente a violência de rua e deslegitimar as instituições das democracias emergentes é multiplicar a impunidade e a insegurança. A generalização da desordem ajuda os grupos criminosos e coloca a demanda por segurança acima das demandas sociais. Isto abre caminho para os autoritarismos”.
Como a popularidade de Lula continua alta, e a pesquisa reafirma o desprestígio das instituições junto à população, o sociólogo Simon Schwartzman crê que temos aí um problema para a democracia “porque é essa combinação, exatamente, que dá margem ao surgimento de governos unipessoais e autoritários, que passam por cima das instituições em nome de seu prestígio junto às massas”. A fraqueza dos partidos políticos e do Congresso, como atualmente no Brasil, facilitaria o surgimento de líderes populistas, como já ocorre na América L atina. Schwartzman lembra que “um Congresso fraco e desprestigiado é uma presa fácil de políticos que possam propor seu fechamento, ou sua substituição por uma assembléia constituinte, por exemplo, que possa criar as bases para um regime centralizado e autoritário”. Como explicar o sentimento de esperanças no futuro e desânimo no presente, em especial no Brasil, onde a redução da desigualdade está acontecendo e o nível de vida das populações mais pobres está melhorando ? Schwartzman tem uma visão nada otimista dessa realidade constatada pela EcosociAL: “As esperanças se dão no nível da vida quotidiana das pessoas, enquanto o desânimo é sobretudo em relação ao contexto mais amplo, os governos e as instituições públicas. Vale a pena notar que essas esperanças, na verdade, são bastante irrealistas, porque, mesmo nos melhores cenários, dificilmente a população brasileira terá tanta mobilidade educacional e econômica quanto as pessoas esperam”.