(versão preliminar de “A Era das Ciências Sociais”, Página Aberta, revista Veja, 52, 19, 8 de maio de 2019, pp.58-59)
De forma ainda vaga, mas enfática, o Presidente da República e o Ministro da Educação deram declarações dizendo que pretendiam reduzir os investimentos em sociologia e filosofia, em favor de outras profissões que gerem renda para as pessoas e benefícios para a sociedade. O número de estudantes de sociologia e filosofia no Brasil é ínfimo – menos de 10 mil, para um universo de 8 milhões de universitários. Tudo indica que estavam se referindo às ciências sociais como um todo, cuja matrícula, incluindo administração, direito, contabilidade e marketing, é enorme, chegando a 37% do total, ao lado de educação, com 19,2%, e as humanidades e artes (incluindo literatura e filosofia) com mais 2.2%. Fora das ciências sociais e humanas, as áreas mais procuradas hoje pelos universitários são as de saúde e bem-estar social (16% da matrícula), e o grupo de Engenharia, Produção e Construção, com 14.8%.
A concentração das matrículas em profissões características das atividades terciárias, de serviços, não se dá só no Brasil: são 63% das matrículas nos Estados Unidos, 74% na França, 51% na Espanha, por exemplo. Este predomínio acompanha os ventos da economia mundial. Em todo o mundo, as atividades industriais e agrícolas, altamente mecanizadas, empregam cada vez menos gente, enquanto aumentam os empregos nos serviços públicos e privados de educação, saúde, comércio, transportes e outros, onde são valorizadas cada vez mais as competências de tipo social e cultural. Mesmo para nas áreas mais técnicas, a cada dia se fala com maior intensidade da importância das “competências do século 21”. Para tomar o exemplo de Cingapura, lembrado como um dos lugares de melhor ensino do planeta, elas são definidas em termos em um leque que engloba cultura cívica, consciência do mundo global, conhecimentos transculturais, pensamento crítico e inovador, e habilidades de comunicação, colaboração e processamento de informações – todas das áreas das ciências sociais e das humanidades.
A outra razão de seu grande tamanho é que os cursos nestas áreas tendem a ser menos custosos e mais acessíveis para pessoas que terminam o ensino médio com formação mais limitada. No Brasil, em áreas como economia, administração e direito, existem algumas poucas faculdades extremamente seletivas e de alto padrão, mas a grande maioria dos cursos é ministrada à noite, à distância, sobretudo pelo setor privado, a preços bastante reduzidos, abrindo oportunidades para muitos que não teriam condições de seguir uma formação universitária mais exigente e de tempo integral. Existe a dúvida de se este ensino mais elementar é útil e vale a pena, visto que grande parte dos formados em direito, por exemplo, nunca consegue passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas o fato é que quem completa o trajeto na universidade, mesmo que não adquira uma formação especializada, acumula conhecimentos e competências gerais que o mercado de trabalho valoriza, pagando salários significativamente mais altos do que os dos pararam ao final da educação média.
Não é uma situação ideal, longe disso. As taxas de desistência nestes cursos são enormes, da ordem de 50% no setor privado, e não há razão para que durem quatro ou mais anos. Ainda que se apresentem como cursos de formação especializada, na verdade oferecem uma formação geral, como se pode ver pelo número relativamente pequeno de pessoas que trabalham na mesma área em que se graduaram. Isso, porém, não é necessariamente um problema. Na União Europeia, desde 1999, os países adotam o “modelo de Bologna” para o ensino superior que começa com uma formação geral de três anos, abrindo depois opções para mestrados e cursos mais avançados de um ou mais anos. Nos Estados Unidos, muitos dos que buscam a educação superior são atendidos por um amplo sistema de “community colleges” de dois anos que já dão uma qualificação razoável para quem não vai seguir os estudos nos colleges de 4 anos. Além disto, em todo o mundo, a partir do ensino médio já existem opções de estudos profissionalizantes que habilitam para o mercado de trabalho tanto nas áreas mais técnicas quanto na de serviços. O Brasil precisaria evoluir nestas linhas, ampliando a formação básica geral, fortalecendo as opções profissionais de nível médio e abrindo mais possibilidades de cursos de formação superior curtos. Eles já existem no papel como “cursos tecnológicos”, mas têm sido negligenciados sobretudo pelas universidades públicas.
Para os que pretendem e têm condições de se profissionalizar de forma mais diferenciada nas carreiras sociais, a pós-graduação é hoje quase obrigatória. O Ministério da Educação, através da Capes, administra um sistema de pós-graduação com 375.000 estudantes em cursos de mestrado e doutorado, dos quais 110.000 nas áreas de ciências sociais e humanas, sobretudo educação, administração e direito (mas menos de 10 mil em filosofia e sociologia). Somam-se a estes mais de um milhão em cursos de MBA e outras áreas de especialização não regulamentadas.
Os investimentos em pesquisa social no Brasil são relativamente baixos, embora as principais questões de política pública no Brasil sejam a má qualidade da educação, a violência, a pobreza, a desigualdade social, a disfuncionalidade do sistema político-eleitoral e do judiciário e a baixa produtividade da economia, entre outros. São todos temas centrais de investigação nas áreas de sociologia, economia, antropologia e ciências jurídicas, que precisam, isso sim, ser reforçadas e cuidadas para que alcancem a mais alta qualidade. É possível argumentar até que pesquisas sobre temas sociais são mais importantes para o país do que as das áreas tecnológicas, dado que é mais fácil importar e adaptar tecnologias disponíveis na literatura e no mercado internacional do que no campo social.
A predisposição manifestada pelo governo contra a área de ciências sociais parece se explicar por uma combinação de desconhecimento sobre os números e a natureza da área social aliado a um preconceito de tipo ideológico – a sociologia e a filosofia seriam focos de ideologias marxistas, que precisariam ser extirpadas. Quem conhece de perto estas áreas de estudo, no entanto, sabe que o marxismo ocupa nelas um lugar bastante reduzido, embora persista, de forma simplificada, em alguns setores e nas manifestações de movimentos políticos ligados à área de educação – nada muito diferente do resto do mundo. A preocupação com os problemas da pobreza, desigualdade social, direitos humanos e discriminação social faz parte do patrimônio humanístico contemporâneo, são temas centrais a uma sociedade tão desigual como a nossa, e independe de filiações a esta ou aquela corrente filosófica, sociológica, jurídica ou econômica. E a melhor maneira de reduzi-la é trabalhar para que estes problemas deixem de existir.
SS “ …. o Brasil precisa evoluir nestas linhas….” traz uma ideia falsa das distância abissal de que estamos de situaçóes como a Americana e a Alemã. Jamais , por exemplo, alguém habilitado para uma análise da educação no caso da França, diria que os gauleses … precisavam evoluir em relação ao caso Alemão. Todos como Raymon Boudon diriam da …necessidades de mudanças profundas. Quanto a influência do marxismo SS esquece de se referir ao neo-marxismo representado por figuras como Pierre Bourdieu, Boaventura, Michel Foucalt etc nas humanidades. Um verdadeiro museu de horror. Se a filosofia e as ciências sociais atravessam uma crise , segundo Jon Elster, o finado Boudon, Pascal Engel e muitos outros que escreveram livros recentes sobre o desastre dessas áreas de conhecimentos e seus efeitos perversos fora daqui , imaginem no Brasil.Temos o delicioso livro de Gerald Bronner , O Danger Sociologique, que mostra o estrago na França. A revista: La Revue Française de Sociologie escapou por pouco. A melhora na qualidade das Humanidade e das Ciências Sociais vai depender de muito investimento no retorno à internacionaluzação das mesmas nos anos 60 e 70. A nacionalização que se segui só acompanhou o que havia de pior fora e dentro. No pugilato ideológico que estamos vivendo temos que tomar cuidado em não esconder nossos problemas.
Muito bons comentários. Discordo um pouco do primeiro ponto, existe um permanente movimento de copiar instituições educativas ao longo da história – os japoneses compraram os alemães, franceses e ingleses, os americanos compiaram (ou tentaram copiar) a Universidade de pesquisa de Humboldt, no mundo todo se copia as “graduate schools”americanas e, mais recentemente, todo o modelo de Bologna é calcado nos colleges ingleses e americanos.
Concordo mais com o segundo ponto. Se tivesse tido mais espaço, deveria ter falado mais sobre os problemas intelectuais das ciências sociais, que tenho discutido em outras partes. Ainda acho que os autores que você cita, embora populares, não representam o que há de mais significativo na sociologia atual, e este “neo-marxismo” me parece praticamente inexistente na economia e da ciência política. É uma boa discussão na qual se aprofundar, mas difícil de levar adiante no meio de um tiroteio.
Caro Professor Simon,
Segue abaixo um trecho de uma entrevista que dei à repórter da Folha, Ângela Maiolini Rebello em janeiro, que não foi publicada, imagino, porque não me candidatei a reitor, essa era a primeira pergunta. Menciono alguns autores que li e que considero relevantes para o problema.
– O sr. é um crítico da falta de pluralidade ideológica na universidade. De que forma isso se manifesta? Pode dar exemplos?
Sim, mas vamos consertar a afirmação: não é de “pluralidade ideológica” de que se trata, o que se precisa é de pluralidade de ideias bem fundamentadas, principalmente na área de Humanas, em que o esforço principal deveria ser a pesquisa pelos fundamentos. De ideologia já estamos cansados, e isso não é só no Brasil. Há, no calhamaço recentíssimo (2018) do professor de Harvard Steven Pinker, Enlightment Now: the case for reason, science, humanism, and progress, uma excelente definição de ideologia: são “religiões seculares a proporcionar um senso comunitário de irmandade de pensamento, um catecismo de crenças sagradas, um bem fornida demonologia, e uma confiança beatífica na virtude de seus defensores”, e se é disso que se trata, então sim, a universidade tem a sua parcela destes tipos, mas preponderantemente de esquerda, e com o tribalismo identitário fomentado por eles a justificar sua própria postura mental, podemos dizer, ainda de acordo com o professor Pinker, que há um repertório corrente de se afirmar ou negar crenças de modo a expressar não o que eles sabem mas o que elas (pensam que) são, ou acreditam ser.
Posso ainda mencionar uma iniciativa de professores universitários norte-americanos chamada Heterodox Academy que busca promover na universidade o livre exame (!), a diversidade de pontos de vista (!!), e uma cultura de “desacordo construtivo”. Um de seus membros (bem como o prof. Pinker) e paladino, o professor Jonathan Haidt (autor de A Mente Moralista e The Coddling of the American Mind) tem afirmado que as universidades norte-americanas deveriam informar ao público se estão em busca da verdade ou em busca da “justiça social”. Em sua página virtual está o diagnóstico de que a falta de diversidade de visões em vários campos de estudo tem causado: (a) “ideias importantes permanecem inexploradas”, (b) “pressupostos seguem sem ser desafiados”, (c) “a tendência humana natural para razão motivada, viés de confirmação, e tribalismo permanecem sem qualquer checagem”, e daí podem advir: (d) “a falta de qualidade da pesquisa”, e) “a falta de imparcialidade das revisões por pares”, e f) “a corrupção das decisões de comitês e colegiados a respeito de admissões, promoções, formatação de currículos”. Soa familiar? Adicione-se a isso a polarização política crescente, e temos um meio universitário altamente “inflamável e tóxico” em que campeiam a autocensura e o risco de censura burocrática ou social incidir sobre o ensino e a pesquisa. A página informa ainda que as instituições que mais sofreram este processo de falta de diversidade de visão (a que realmente importa) tiveram declínio em suas matrículas e cortes no seu orçamento. E o pior vem agora, sucedeu-se uma erosão na confiança nas universidades, nos especialistas e na pesquisa científica o que, por sua vez, teria reduzido o impacto e a viabilidade de várias linhas de pesquisa. Em resumo, a primeira vítima de qualquer forma de hegemonismo na Universidade é a erosão dos mecanismos que garantem sua qualidade e seu diferencial para a sociedade. Erodidos esses mecanismos, só pode advir a perda de prestígio e confiança. Ao que parece, o processo está se repetindo aqui no Brasil.
– Que medidas poderiam ser tomadas para evitar que isso ocorra?
Sigo as recomendações do eminente professor de economia Thomas Sowell em seu livro Inside American Education: the decline, the deception, the dogmas (de 1993): monitoramento de resultados (com metas claras exequíveis) e prestação de contas à sociedade. O problema é que as corporações, no que depender delas, só respondem a si mesmas.
E que metas seriam essas? Ter um quadro de referência para qualidade do ensino em todos os seus níveis de validade nacional. Uma vez estabelecido o padrão de qualidade a ser atingido, precisa-se de um sistema de avaliação dos cursos e das instituições que evidencie às partes interessadas, o que está a faltar para atingir as metas estabelecidas, onde se acerta, onde se erra, o que pode melhorar, se está a progredir ou não. Um relatório recentíssimo da OECD, Rethinking Quality Assurance for Higher Education in Brazil (2018), mostra que os objetivos estabelecidos para o ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) não são realistas, havendo problemas em sua arquitetura e implementação que impossibilitam a geração de informação confiável sobre a performance estudantil e a qualidade dos programas, sendo impossível saber se estudantes em programas que obtêm 50 ou 60% no ENADE estão indo bem ou mal. A mensuração retorna escores que, postos numa distribuição, só tem valor posicional, mas não valor de aferição. E as instituições de ensino superior não consideram utilizar os resultados do ENADE para aperfeiçoamento de seus programas. O CPC (conceito preliminar de curso) não se mostra uma medida confiável de qualidade dado que a ponderação dos indicadores que ele combina tem base arbitrária, não científica. No caso do Índice Geral de Cursos um escala que varia de 1 a 5 (não se conhece instituição que tenha tirado conceito 1) em 2016, 93% das universidade e 96% dos centros universitários receberam escores 3 ou 4, o que significa que seu poder de discriminação e informação é praticamente nulo. E enfim, quem estabelece, subvenciona e dirige o sistema universitário federal não pode estar subordinado ao mesmo Ministério de quem avalia a performance e regula os programas oferecidos pelo sistema, é um conflito de responsabilidades dentro do próprio MEC. Uma das tristes conclusões do relatório, é que, malgrado o seu custo, O ENADE não representa, na sua forma atual, um uso efetivo dos recursos públicos.
Enfim, o insulamento, que já é característico da universidade, tende a ficar pior se o sistema de avaliação agrupa (não intencionalmente) a maioria esmagadora das instituições em conceitos três ou quatro. Não há portanto um retorno efetivo de uma instância externa para lembrar à corporação universitária que ela tem de servir e prestar contas ao público que a subvenciona. Tenho mencionado isso em reuniões colegiadas com frequência desde que entrei na Universidade Federal e sempre me indisponho nas ocasiões em que percebo o corporativismo se esconder atrás de belas palavras e belas intenções.
Teremos que estudar o relatório da OECD e ver o que se pode fazer para melhorar a avaliação de modo que efetivamente ela possa incentivar a melhoria dos cursos e das instituições de ensino em geral, não só da universidade.
– A seu ver, estão corretas as afirmações de integrantes do governo de que as universidades estão dominadas pela esquerda? Há menos professores de direita ou eles aparecem menos?
Já dizia Jacques LeGoff em Os Intelectuais na Idade Média: “A Universidade é inclassificável”, pois nunca goza da total confiança das instâncias externas com as quais tem de lidar. Mas, antes de entrar no assunto, vale mencionar que a primeira coisa a ser posta em prática é o atual governo não incorrer no mesmo erro do governo que lhe antecedeu, ou seja, não controlar sua militância. Caso considerem que a grande mídia está com má vontade em relação ao governo, mais um motivo para se esmerar na comunicação, com uma boa assessoria de imprensa e/ou relações públicas. A hierarquia e a disciplina devem ser aplicadas também neste terreno, que é fundamental para qualquer governo. A Times Higher Education, por exemplo, uma publicação dedicada ao ensino superior, tem ecoado a reverberação negativa no mundo acadêmico brasileiro (mas ninguém do atual governo foi entrevistado, até quanto sei) e fotos do atual presidente aparecendo junto a manchetes bastante negativas, como já ocorreu na The Economist. A academia tem a sua rede própria conectada internacionalmente, portanto, o ruído de comunicação com esta comunidade só tornará mais difícil conseguir sua colaboração para uma universidade e uma educação em todos os níveis que atenda ao Brasil, a um projeto de nação, e não a corporações partidarizadas. Isto posto, bem, essa afirmação de “integrantes do governo” seria válida para a maioria das organizações que transacionam com ideias, sejam elas culturais, educacionais ou científicas, além da própria grande mídia, é claro, mas com a ressalva de se ser bastante amplo na definição de “esquerda” e bastante restrito na definição do que é “direita”. Visto desta forma, porta-vozes republicanos norte-americanos têm a mesma queixa, que as universidades (e as escolas públicas) são dominadas por professores “liberais”, que Hollywood tem uma agenda “liberal” no sentido deles (de esquerda) e que o ambiente predominante nos campi universitários é hostil a qualquer manifestação de ideias conservadoras, o que diga-se de passagem, não é uma queixa desprovida de fundamento. O estabilishment acadêmico tende à esquerda, ou melhor, tende à complacência com esta visão, até porque os grupos mais organizados, ruidosos, intolerantes e truculentos nos campi têm sido majoritariamente defensores de bandeiras de esquerda. A já citada Heterodox Academy acabou de mostrar um estudo (https://heterodoxacademy.org/viewpoint-diversity-community-partisanship/) em que mostra que a proporção de votos para o Partido Democrata nas eleições de 2016 tanto em institutos de artes liberais (colleges) como universidades de pesquisa de ponta é significativamente superior à proporção encontrada na população mais ampla. Além de artigos, há nos EUA muitos livros publicados mostrando o que tem acontecido nas universidades norte-americanas sob este aspecto, bem como a iniciativa já citada, Heterodox Academy, o próprio professor de economia Thomas Sowell (autor, entre outras obras, do calhamaço obrigatório Intelectuals and Society) diz que, em termos de independência para o pesquisador é melhor trabalhar num instituto “think tank” (como o que ele trabalhou, a Hoover Institution da Universidade de Stanford), Kenneth Minogue (O Conceito de Universidade), Roger Kimball, autor de “Tenured Radicals: how politics corrupted our higher education” cujo título é bastante sugestivo, Jonathan Haidt, Greg Lukianoff, Bruce Bawer e vários outros. No Brasil, nesta linha de investigação de abusos nas universidades eu lembro do, há muito fora de catálogo, “A Sinecura Acadêmica” de Edmundo Campos Coelho e agora do devastador “A Corrupção da Inteligência” do Flávio Gordon (que me foi indicado por um colega, um bom sinal).
Os “integrantes do governo” a que se refere na pergunta podem estar a confundir (apenas por hipótese) a organização universitária com outros tipos de organização em que as finalidades e propósitos são mais claros, e não concorrentes. Por exemplo, colocado diante da questão de se a universidade deve se ater à vocação de buscar a verdade, numa entrevista à Heterodox Academy, o professor da Universidade Virgínia, Chad Wellmon, autor de Organizing Enlightment, responde que as universidades nunca tiveram apenas um propósito, elas sempre buscaram múltiplos propósitos, até em competição entre si, como manter a doutrina da Igreja, ou educar o clero, ou formar cidadãos democráticos, ou produzir valor econômico, criar e transmitir conhecimento ou simplesmente manter a cultura e as classes. E mais, por suas normas e modo de funcionamento, as universidades como instituições sociais se distinguiram historicamente de organizações como fábricas, cortes ou bibliotecas e laboratórios, por ter reunido historicamente duas atividades: a de criar conhecimento e educar pessoas. Agora, como essas atividades se dão sempre variou de acordo com a história e a cultura. Note que, há quarenta anos atrás, Raymond Boudon, em “Efeitos Perversos e Ordem Social” fazia o seguinte diagnóstico da universidade francesa pós 68: a progressiva difusão de uma “literatura bizantina” (termo emprestado de Julien Benda) na pesquisa científica e filosófica que alimenta um gosto por “propostas frágeis e destruidoras, pela obscuridade, pela busca de um estilo esotérico e pessoal, por sínteses apressadas e prematuras, pela rejeição da realidade qualificada de corte ou ruptura epistemológica e pelo profetismo”. Em 2008 o citado Kimball denuncia a “sovietização da vida intelectual”, “onde o valor de um trabalho é determinado não pelas suas qualidades intrínsecas mas pelo grau com que defende um dada linha política”, e, em 2015, Roger Scruton, num livro cuja versão anterior causou-lhe vários prejuízos, “Tolos, Fraudes e Militantes” onde menciona a inauguração por autores de esquerda da figura do “acadêmico alquímico” que levariam as novas gerações de estudantes das ciências humanas a considerar como meio de promoção no mundo acadêmico “colocar o poder acima da verdade em sua escala de valores” e a disfarçar “conformidade política” de “pesquisa inovadora”.
Ora dirão que estou aduzindo obras que confirmam a posição do governo, mas, ao mesmo tempo, estou informando que este fenômeno não é novo, e nem é exclusivo das nossas universidades e tem peculiaridades atinentes a cada país. Sendo um espaço socialmente insulado, razoavelmente estanque em relação ao mundo que a rodeia, desde seus primórdios, quando a Igreja Católica era a sua instância externa mais importante, é concebível que a universidade se constitua, pela sua própria natureza, como um espaço aberto à experimentação e a exploração de ideias que não encontrariam terreno fértil em outro lugar. E dado que há variação em tudo, há variação também na qualidade e no alcance do que é produzido na universidade, ou, para cada ideia bem-sucedida, haverá várias malsucedidas, para cada hipótese verdadeira não rejeitada, algumas o serão, e muitas falsas serão mantidas a salvo de qualquer confronto com a realidade, para cada obra clássica, haverá muitas pouco relevantes, e sempre haverá diferenças de qualidade entre os professores, como os colaboradores de qualquer organização. Assim, clareza conceitual será contrabalançada por jargão propositalmente impenetrável, e busca da verdade será contrabalançada por sonegação sistemática de fatos inconvenientes. A excelência será uma busca para muitos e a consecução de poucos. São os propósitos conflitantes de que fala o professor Wellmon.
Agora, há propósitos e propósitos. Há aqueles que dizem respeito ao que a sociedade, que a subvenciona, espera das universidades, e há os propósitos de corporações. É preciso que haja um conjunto de critérios claros e institucionalizáveis, que permita distinguir a partir de que ponto a liberdade, a qualidade e a relevância acadêmica não estão sendo solapadas por imposturas intelectuais travestidas de vanguarda, rebeldia de fachada, e recrutamento de quadros partidários. A parte que trabalha para estes propósitos alegará com a maior veemência que qualquer tentativa neste sentido será uma redução da “autonomia acadêmica”, e justamente aí que mora uma inconveniente confusão entre liberdade de cátedra e liberdade para abusar da liberdade de cátedra. O atual governo deve tomar cuidado para não empurrar os que fazem bom uso desta liberdade para fazerem coro com os que dela abusam e que, com certeza (e mais uma vez), carregarão uma bandeira, que não é sua, de modo oportunista.
E, como toda organização, está a universidade sujeita às forças cósmicas da entropia que a tudo tende a desorganizar contra nossos esforços de manter as coisas funcionando. A governança universitária, e minha trajetória administrativa confirma isso, é uma tarefa de enorme complexidade.
Nos países onde não vigem garantias e liberdades democráticas, não há liberdade de exame e nem de discussão, então a universidade só tem um caminho, ser cooptada pela agenda dos mandatários do momento. Áreas estratégicas podem se beneficiar muito de participar de projetos governamentais grandiosos de caráter eminentemente político, membros ligados ao partido único (ou à cleptocracia) são promovidos, e quem não seguir a agenda está fora. Ciências Humanas, num contexto desses, só tem um caminho: ser “chapa-branca”. Neste sentido, se há algo que o atual governo pode fazer em favor da democracia e da universidade (e pela área de humanas), de início, é sinalizar que não haverá agenda “chapa-branca” nem no ensino e nem na pesquisa e que não será necessário, e nem desejável, fazer coincidir projetos pedagógicos com agendas de (quaisquer) partidos. O que é bem diferente de discriminar as pessoas por algum critério ideológico como está sendo reverberado na Times Higher Education já citada.
A ideia de hegemonia é contraditória com qualquer conceito respeitável e defensável de universidade, portanto, deve ser parte do critério de qualidade de um programa, particularmente na área de Humanas, a diversidade de ideias e de visões, porque diversidade de aparência com uniformidade de pensamento, de nada adianta, e isto até alguns Democratas norte-americanos já perceberam, após a derrota nas últimas eleições presidenciais.
Enfim, há professores que não são de esquerda, liberais, conservadores sim (o termo “direita” virou um vocábulo pejorativo do jargão da esquerda), mas são minoria, pena que uma minoria não designada para proteção, e que preferem cuidar de suas carreiras e evitar, sempre que possível, conflitos desnecessários.
Agora, volto aqui ao ponto anterior, que o problema seja menos ideológico do que de qualidade. Um bom sistema de avaliação seria suficiente para perceber quando, por exemplo, um curso de economia está saturado (ou “infiltrado”) de um visão particular em detrimento de outras. E se existem cursos com visões parciais e unilaterais dominantes em nosso sistema de ensino superior, é porque o sistema de avaliação não está a detectar este aspecto como um ponto contra a qualidade.
Muito bem explicado! Que retrocesso estamos vivendo! Será mesmo que vão fazer esses cortes?