O manifesto dos reitores: me dá um dinheiro aí!

Vale a pena ler o documento divulgado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Institutições Federais de Ensino Superior – ANDIFES – entitulado “A ANDIFES e as eleições 2006 – aos candidatos à Presidência da República.”. É fácil de entender: segundo os reitores, existe uma grande ameaça, a expansão desordenada do ensino superior privado. O ensino superior público federal, que é ótimo, só não é melhor porque o governo ainda não lhe dá todo o dinheiro que gostaria de receber, e a autonomia para gastá-lo. As coisas têm melhorado um pouco nos últimos anos, mas poderiam melhorar ainda mais, com mais dinheiro, não só para as universidades, mas também para a pesquisa. Ah, claro, as universidades federais também têm responsabilidade com a educação básica, e para isto o governo precisa universalizar o acesso e pagar mais aos professores. Falta de dinheiro? Tudo se resolve aumentando os gastos públicos da educação para 7% do PIB, sem contingenciamento (hoje deve estar alí pelos 5%). Para isto, só falta vontade política!

Quem lê, até esquece que, ao lado de boas instituições e programas federais, têm muitos outros péssimos, que são igualmente subvencionados e não precisam mostrar resultados; que boa parte do mérito do ensino superior público brasileiro, sobretudo na pós graduação e na pesquisa, está nas universidades paulistas, muito mais que nas federais; que o crescimento recente das instituições federais tem sido e continua sendo tão ou mais desordenado do que o do setor privado, sem nenhum critério aparente de prioridades e necessidades; que parte da responsabilidade pela má qualidade da educação básica no país é das universidades federais, que não formam professores com a qualidade e competência que eles deveriam ter; e que o ensino superior público continua proporcionando um subsídio injusto para os estudantes de classe média e alta que se beneficiam dele à custa dos impostos de todos. Será que lembrar estas coisas é só intriga de quem é a favor do ensino particular como mercadoria?

Precisa dizer de novo? Então, vamos lá. O problema não é de universidades públicas ou privadas, mas de ensino superior de boa ou má qualidade. O país precisa apoiar o ensino superior, usando bem seus recursos, estabelecendo prioridades com clareza, e fazendo com que as instituições beneficiadas assumam a responsabilidade pela qualidade de seus produtos. O subsídio aos estudantes de nível superior não pode ser indiscriminado, mas precisa estar associado a critérios claros de necessidade individual e prioridade social. O setor privado, que já atende a 75% dos alunos, não pode ser demonizado, e precisa de um sistema adequado de regulação, tanto quanto o setor público. É importante aumentar os gastos com a educação, inclusive para o ensino superior, mas, sem políticas adequadas de qualidade e prioridade, este aumento de gastos pode significar, simplesmente, mais poder para os senhores reitores.

Quem será o candidato preferido dos reitores? Um aumento da verba de custeio para quem acertar!

Tréplica de Claudio Considera: a miséria brasileira, a miséria do debate e as damn lies

Recebi de Cláudio Considera, que é professor de economia da Universidade Federal Fluminense, a seguinte nota:

Recentemente (22 e 23 de setembro) o pesquisador, da FGV/CPS, Marcelo Néri e sua equipe divulgaram na mídia novos resultados da queda da miséria. Em carta a Merval Pereira no dia 27 de setembro e em artigo n’ O Globo (6 outubro), disponível neste blogo fiz uma crítica a metodologia do trabalho de Neri que torturando as estatísticas “demonstra” que a redução de miseráveis no governo Lula foi percentualmente maior do que nos primeiros 3 anos do governo FHC. Néri replica meus argumentos em artigo no mesmo jornal (7 de outubro). Neste texto eu treplico apenas para o público especializado deste blog. Vou fazer isto para cada ponto feito por Néri.

1. Diferentemente do que parece, pela defesa de Néri, não fiz no meu artigo qualquer alusão a falta de honestidade da instituição FGV, do CPS ou mesmo do autor do artigo que reputo ser um dos mais brilhantes pesquisadores nessa área. Portanto, são completamente despropositados os quatro parágrafos dos 6 que compõe sua réplica. Tenho total respeito pela FGV, onde tenho vários colegas e amigos.

2. No meu texto chamo de ERRO o tratamento metodológico que Néri dá aos dados para chegar à conclusão de que a redução da miséria no governo Lula foi maior do que no governo FHC.

3. O texto que ele menciona estar no site da FGV/CPS que ele atribui a mim a autoria é na verdade uma co-autoria com ele (porque omitir isso?), ao tempo em que era pesquisador do IPEA. Não o renego e dele tenho o maior orgulho. Mas, o erro metodológico, que ele menciona também estar lá presente, encontra-se na seção 2.5 que ele escreveu; nas duas sessões (2.2 e 2.3) de minha autoria eu me refiro a pontos de percentagem. Mas, se assino o artigo tenho responsabilidade por isso e sou obrigado a reconhecer meu erro lá, embora nosso texto tivesse como principal objetivo dizer que a inflação era um imposto terrível sobre os mais pobres e não comparar governos. Mas, essa dam lie do Néri me deixou preocupado; esse não é o caráter do Marcelo que conhecia.

4. A seguir Marcelo Néri dá vez à soberba do argumento da autoridade. Diz ele que se fosse eu um especialista ou pelo menos um interessado em questões sociais saberia que as metas do milênio da ONU falam em reduzir a miséria à metade até 2015; ou seja, em linha com a metodologia que eu estaria criticando. Sugere, de forma desrespeitosa, que eu escreva ao Kofi Annan reclamando.

Não sou mesmo um especialista no tema, mas sou sim um interessado, pelo que demonstram meus escritos. Mas o que escrevi no jornal não exige qualquer especialização no assunto, mas apenas saber ler, escrever e conhecer as quatro operações básicas da aritmética, embora eu tenha usado apenas as de subtrair e dividir. Portanto, não se deixem enganar pelo o que Néri diz e desdiz ao mesmo tempo: a despeito de ter sido seu co-autor em 1996 e 1998 de dois artigos acadêmicos, cujo mérito, na sua maior parte, é de Néri mesmo, sou apenas um interessado no assunto.

Quanto a escrever ao Kofi Annan, eu só o faria se ele tivesse estabelecido que os países deveriam reduzir a miséria em 50% do seu percentual de miséria, como faz o Marcelo. Mas, nesse caso, seria melhor enviar a Madame Natasha, personagem do Elio Gaspari, professora de piano e português que simplifica qualquer bobagem empolada que se fale.

5. A seguir ele menciona que eu citei uma inexistente linha oficial de pobreza. Enganei-me. De fato, essa linha não existe embora se tenha tentado criá-la, o que Simon Schwartzman em seu artigo no blog, condena. Entendi que Sonia Rocha estivesse fazendo seus cálculos com uma linha dessa, mas ela tem suas próprias linhas de pobreza e miséria. Mas, isso é irrelevante para minha crítica. Eu só faço uso dos números de Sônia Rocha porque, diferentemente do que afirma Marcelo Néri não há em seu artigo ou no site da FGV/CPS qualquer número absoluto de miseráveis. Se houvesse, ficaria claro que qualquer que seja a linha de miséria o número absoluto de redução de miséria durante o período 1994-1997 (3 primeiros anos de FHC) seria de mais de 3 vezes à redução da miséria durante o período 2002-2005 (3 primeiros anos de Lula).

6. A seguir ele fala da minha obsessão em comparar FHC e Lula. Essa obsessão de comparar períodos administrativos (como ele se refere aos períodos de governo FHC e Lula) foi dele; eu apenas busquei colocar a comparação nos eixos. Em primeiro lugar, eu não comparei nove anos (1993/2002) de FHC com 3 de Lula. Ele mesmo cita o número de 1993/94 (que ele com razão diz ser de Itamar) como sendo de FHC e, eu mantive esse dado, pois a PNAD não está disponível para 1994 Julguei, inclusive, que ele se baseava em seus próprios resultados, que estão em nosso trabalho de 1996, em que a PME, que embora metropolitana pode ser usada como uma boa proxy da evolução da evolução dos resultados da PNAD. Ou seja, pela PME seria razoável supor que a miséria em 1993 e 1994 tenha se mantido inalterada, pois, se por um lado a aceleração inflacionária da primeira metade de 1994 teria aumentando a miséria, a abrupta queda da inflação na segunda metade deve tê-la reduzido (resultado claro pela PME). Portanto, começar o período FHC com o percentual de 1993 equivale a começá-lo em 1994.
Em segundo lugar, ele inicia a comparação de Lula em 2003 como se a miséria que ele herdou de FHC fosse aquela que ele aumentou durante o ano de 2003. Aí corrijo e inicio a contagem de Lula contra o que ele herdou de FHC ao terminar o governo em 2002.

Em terceiro lugar, é estranho que Marcelo Néri, una o gráfico da miséria em pontos inexistentes. Isso transmite uma noção errada da evolução parecendo, por exemplo, que em 1994 a miséria tenha caído. Aí sou obrigado a confessar que para perceber tal erro utilizei-me do meu curso de estatística descritiva na graduação de economia.

7. A seguir menciona que em outros trabalhos ele teria mostrado bons resultados do governo tucano de Aécio. Deveria ter feito o mesmo no artigo que comentei, e não ter torturado as estatísticas para elas falarem o contrário.

8. Na sua última frase se redime. A tempo!

Em tempo, para os que ainda possam ter dúvida, embora seja público e notório: sou tucano, com muita honra, filiado ao PSDB desde 1998. E, não aspiro a qualquer cargo de qualquer governo. Já dei minha cota de sacrifício. Aspiro sim que tenhamos um governo decente e eficiente.

Lies, damn lies, and statistics

Como ex-presidente do IBGE, não posso subscrever a esta famosa frase que atribuem a Disraeli, e as vezes também a Winston Churchill: “existem três tipos de mentira: mentira, mentiras malditas, e estatísticas!” Também atribuem a Disraeli outra frase: “a única estatística na qual você pode acreditar é a aquela que você mesmo falsificou! ”

Não é verdade. Na área das estatísticas da pobreza, o IBGE vem coordenando desde 1997 um grupo de trabalho das Nações Unidas sobre o tema, e já existe um forte consenso internacional a respeito das diferentes maneiras de medir e avaliar as condições de pobreza de um país, uma região ou um grupo social. Basta percorrer um pouco esta literatura para vermos que não existe uma maneira única e simples de medir a pobreza, mas um leque de alternativas, cada qual com suas qualidades e suas limitações: pobreza absoluta, pobreza relativa, medidas relacionadas à renda, medidas relacinadas ao consumo de alimentos, às condições de saúde…

Isto não significa que não possam haver diferentes maneiras de usar e interpretar os indicadores disponíveis, como revela o debate entre Claudio Considera e Marcelo Neri relatado aqui, mesmo quando todos utilizam a mesma informação, no caso os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD). É por isto mesmo, também, que eu não penso que seja uma boa idéia definir uma linha de pobreza oficial para o país. Isto significaria adotar, arbitrariamente, uma das diferentes medidas disponíveis, e usá-la para avaliar políticas e criar direitos para determinadas pessoas e regiões, ao invés de tratar de forma diferenciada as diferentes situações de pobreza que existem no país, na área rural, nas cidades, entre os jovens, os velhos, a população indígena, etc.

Quanto à polêmica em si, minha única observação é que não gosto do uso de percentagens sobre percentagens como medida de evolução ou mudança. Veja por exemplo o que acontecia com a frequência à escola para alunos do quinto mais pobre da população, entre 8 e 13 anos de idade, em relação aos que recebiam ou não a bolsa escola em 2003, conforme a PNAD 2003. Para os que não recebiam a bolsa, a percentagem de ausentes à escola era de 2,7%. Para os que recebiam a bolsa, a percentagem de ausentes era 0,7%. Dividindo um pelo outro, poderíamos concluir que o programa de bolsa escola tinha um fortíssimo impacto neste grupo, já que diminuia a ausência escolar em quase quatro vezes. Olhando pelas diferenças de percentagem, no entanto, a conclusão é oposta: para este grupo, a diferença é de 99.3 para 97.3, ou seja, um aumento de 2% somente, o que significa que o impacto do programa era praticamente nenhum (a análise completa está disponível aqui).

A Miséria do debate

No Globo de 7 de outubro, Marcelo Neri responde ao artigo de Claudio Considera divulgado aqui – está na página de Opinião, e disponível na Internet. Na parte substantiva, ele diz que o CPS que coordena divulga tanto dados positivos quanto negativos para diferentes governos, e que Considera “cita uma linha oficial de pobreza inexistente e compara o período de 3 anos do último (governo Lula) com um de 9 anos do período FHC, que, a rigor, foi gestão Itamar Franco”.

A Miséria Brasileira

Cláudio Considera publicou hoje, no O Globo, o seguinte artigo, questionando os dados do Centro de Política Social da FGV sobre a redução recente da miséria no Brasil:

Recentemente o pesquisador, da FGV/CPS, Marcelo Néri e sua equipe divulgaram na mídia novos resultados da queda da miséria. Em seu estudo ele faz comparações entre as variações percentuais dos percentuais de miseráveis observados nos primeiros 3 anos do governo FHC e no governo Lula. É necessário chamar a atenção que quando nos referimos a percentual de pessoas miseráveis estamos falando da parte de número de pessoas que estão abaixo da linha de miséria (não tem dinheiro para comer um certo mínimo necessário) comparativamente ao total da população. Se esse percentual diminui, diminui o número de miseráveis. E para saber quantos deixaram de ser miseráveis, basta diminuir o número de miseráveis de um ano para outro. Alternativamente podemos diminuir o percentual de um ano, do percentual de outro ano, e encontramos os pontos de percentagens dessa redução, que pode ser traduzido em número de pessoas que saíram da miséria. Falar em variação percentual destes percentuais não tem sentido.

Fiquei me perguntando por que esse ERRO. Fiz algumas contas e constatei que se o estudo falasse em redução de pontos de percentagem a redução da miséria continuaria sendo maior no Plano Real. Ou seja, em pontos de percentagem, o diferencial é maior para FHC (28,79% – 35,31%= -6,52 pontos de percentagem) do que para Lula (22,77% – 28,17%= -5,4 pontos de percentagem). Quando erradamente se compara os pontos de percentagem de FHC com o seu percentual inicial de pobres (-6,52/35,31), a redução percentual de FHC fica em -18,5 %, valor inferior à redução observada para Lula (-5,4/28,17= -19,2%). Mas, o que é relevante, e o que interessa de fato, é que o número de miseráveis não se reduziu em 18,5 e em 19,2%, mas sim em 6,52 e 5,4 pontos de percentagem nos 3 primeiros anos de FHC e Lula, respectivamente.

Estranhamente, os números absolutos de miseráveis não estão divulgados no estudo da FGV, o que elucidaria a questão sem contemplação. À sua falta, usando os dados elaborados por Sônia Rocha do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, que usa a linha de miseráveis oficial, a redução de indigentes (miseráveis), teria sido no período FHC de 7 milhões e 500 mil pessoas enquanto no período Lula de apenas 2 milhões e 650 mil pessoas. Isso é o que importa: número absoluto de redução de indigentes.

Continuando a observação do referido gráfico atentei para outro erro: o autor identifica o início da série de Lula em 2003 (28,17% de miseráveis). Mas quando Lula assumiu o governo em janeiro de 2003 o número de miseráveis era de fato 26,72% (que herdou de FHC). Logo não é justo computar como seu (de Lula) o mérito de reduzir a própria miséria que criou. Se a comparação for feita corretamente (22,77% em 2005 contra os 26,72% que herdou de FHC) o sucesso de Lula, medido em pontos de percentagem, cai para 3,95 pontos de percentagem e não os acima mencionados 5,4. Ou seja, o êxito de FHC foi reduzir a miséria em 3 anos em 6,52 pontos de percentagem contra os 3,95 pontos de percentagem de Lula. Ou seja, o número de miseráveis que deixaram de sê-lo no período FHC foi 65% superior ao número de Lula.

O trabalho completo da equipe da FGV contém ainda muitos outros resultados interessantes: mostra que o sucesso de FHC em reduzir a miséria é maior do que o de Lula em qualquer que seja a comparação (misérias rural, urbana e metropolitana). Mostra ainda um resultado pouco explorado que usa a metodologia de Amartya Sen, prêmio Nobel de economia, para medir o índice de bem estar. Novamente o sucesso de FHC é bem superior ao de Lula. No mesmo período anteriormente utilizado, durante os 3 primeiros anos do governo FHC o índice de bem estar aumentou em 35,96 enquanto o durante os 3 primeiros anos de Lula apenas 15,2. Ou seja o sucesso de FHC em termos de bem estar foi mais do que o dobro do sucesso de Lula.

É interessante que examinemos as causas do sucesso de um e de outro. O sucesso de FHC se deve ao fato que ele estabilizou a economia matando o dragão da inflação o maior responsável pela deterioração da renda dos mais pobres. Mas não ficou nisso; passado o primeiro momento de ajuste das contas públicas criou vários programas sociais que elevaram bastante as transferências de renda para os mais pobres: Lei Orgânica de Assistência Social,(LOAS), Fundef (Fundo de desenvolvimento do ensino fundamental), Pronaf (Programa nacional de agricultura familiar), Bolsa Escola Federal, Bolsa Alimentação, Saúde da Família, e aumento do número de assistidos no tratamento da AIDS, são os programas criados por FHC.

O que fez Lula: tentou criar o programa Fome Zero e o primeiro emprego. O fracasso de suas duas únicas iniciativas é público e notório. Frente a isso Lula deu prosseguimento aos programas sociais de FHC, unificando-os sob o título de bolsa família e ampliando o número de cadastrados (o que havia sido iniciado por FHC e estava sendo continuado e continuou com Lula). No âmbito econômico continuou com a política de FHC de manutenção da estabilidade da moeda e de responsabilidade fiscal.

Insistindo, tudo que Lula fez foi dar continuidade à política econômica e social de FHC. Ainda bem. Se fizesse o que anunciava e o que os petistas pregavam o Brasil estaria quebrado e a miséria aumentada. Diferentemente do que diz Lula nada do que está aí é foi por ele criado. É apenas apropriação indevida. Precisamos agora de nova onda de criatividade para crescer, distribuir renda e reduzir a miséria, e a equipe de Lula está longe de ter competência para isso.

São Paulo e o Estado Nacional (2)

Vejam o artigo de hoje de Octávio Frias Filho, diretor de redação da Folha de São Paulo, com o título de “Yankees e Rebeldes”, e comparem com minha nota anterior:

MUITO SE TEM escrito sobre a divisão do Brasil em duas metades que emergiu no domingo. Os jornais trazem mapas onde Rio, Minas, o Nordeste e o Norte aparecem em vermelho (Lula), enquanto São Paulo, o Sul e o Centro-oeste estão em azul (Alckmin).

Essa divisão entre “yankees” e confederados em nossa “Guerra Civil” eleitoral já foi enfocada sob seus dois prismas mais evidentes, o antagonismo de classe e a desigualdade geográfica. Grosso modo, o primeiro opõe as classes populares às classes médias. O segundo ângulo opõe o “Norte” ao “Sul”.

Descontado o esquematismo desse tipo de recortes, há um terceiro prisma a acrescentar. É aquele que separa as regiões onde a presença do Estado na economia e na vida das pessoas ainda é muito grande (vermelho), daquelas áreas nas quais o peso do poder público é menor (azul).

O capitalismo se enraizou há muito tempo em São Paulo e no Sul, onde o dinamismo econômico prescinde, ao menos em boa parte, do Estado. Não por acaso é a região mais sensível ao único tema novo, em termos eleitorais, que surgiu nesta eleição: o da redução da carga tributária hoje próxima de 40% do PIB.

Embora se atribua a inclinação anti-Lula no Centro-oeste à crise da agricultura, essa região se mostra como típica geografia de fronteira, um eldorado de oportunidades, empreendimento pessoal e terras abundantes. Lugar onde vigora o “cada um por si, Deus por todos”.
Em grande parte do Nordeste, e mesmo em Minas e no Rio, o cenário é outro. São regiões onde a onipresença do Estado remonta ao período colonial; são lugares onde o poder do Estado para contratar, subsidiar, autorizar verbas segue enorme, até por compensar a relativa debilidade da economia privada.

Talvez por isso, também, seja notória certa ausência de debate programático. No fundo, o programa de Alckmin se resume a menos Estado ou, no eufemismo publicitário, a Estado menor, menos caro e mais eficiente. E a plataforma de Lula se resume a garantir alguma compensação social, via Estado, em troca da liberdade para o mercado.

Alckmin, por sua vez, tem pouco vínculo orgânico com o que tem sido o PSDB até agora. O núcleo tradicional do partido gravita há 30 anos em torno de intelectuais paulistas, muitos deles uspianos, muitos exilados na ditadura, quase todos antigos marxistas que desacreditaram do marxismo durante o exílio.

Em termos geracionais e ideológicos, Alckmin significa outra coisa. Subiu na política pelas mãos de Mário Covas, a quem os “intelectuais” respeitavam, mas à distância. Em vez de ex-marxista, Alckmin é católico conservador; em vez de cidadão cosmopolita, ostenta com orgulho a marca do interiorano; em vez de sociólogo ou economista, é um gerente pós-ideológico.

Sao Paulo e o Estado Nacional, revisitado

Quando publiquei este livro em 1973 (revisto e republicado mais tarde como Bases do Autoritarismo Brasileiro), o que mais tinha chamado minha atenção era como a política brasileira passava, historicamente, pelo eixo Rio–Minas–Nordeste–Rio Grande do Sul, deixando de fora justamente o centro mais dinâmico da economia do pais, São Paulo (e também Paraná e Santa Catarina), que no máximo produzia lideranças populistas que não transcendiam o estado, como Ademar de Barros, ou o efêmero Jânio Quadros, que afinal era mato-grossense. Eu dizia, seguindo Faoro, que o Estado Nacional era patrimonialista, no sentido de que ela não era o “representante” de determinados interesses, e sim o objeto de interesses de uma classe ou estamento político que vivia de e para o poder; que a política exercida por este Estado era ou autoritária, com os militares, ou populista, com Getúlio, ou uma combinação das duas coisas; e que o sistema partidário nacional era baseado na cooptação das lideranças (inclusive sindicais) pela oligarquia política. E eu imaginava que, com o tempo e a modernização do pais, outro tipo de política, originária em São Paulo, passaria a predominar no país – uma política mais autenticamente representativa, com partidos apoiados nas classes modernas, burguesas e proletárias, da parte mais capitalista do Brasil.

Quase acertei: a partir de Fernando Henrique, e continuando com Lula e agora, Alckmin, São Paulo saiu do isolamento, as lideranças paulistas se transformaram em lideranças nacionais, e são elas que disputam entre si o comando do Estado Nacional. Mas errei, no entanto, ao pensar que esta polarização se daria em termos de uma divisão de classes. Embora as divisões de classe continuem existindo, a política nas sociedades modernas se faz por grandes coalizões de interesses, valores e orientações, e nenhum candidato que se apresente como representante de uma classe social específica consegue apoio suficiente para ganhar uma eleição majoritária. Fernando Henrique conseguiu montar uma coalizão deste tipo, ao liderar um processo de racionalização da economia e modernização do Estado, uma agenda que Alckmin trata de dar continuidade. E Lula, que começa a carreira como um autêntico líder sindical da indústria, se transforma aos poucos no líder do sindicalismo do setor público, e finalmente, em um líder com forte apelo popular, ou populista, e com isto consegue transcender as limitações do antigo PT, e chegar à Presidência.

Neste primeiro turno, as pesquisas eleitorais mostram que Alckmin tem mais apoio nas camadas sociais mais ricas, e Lula, nas camadas mais pobres. Mas se engana quem interpreta isto em simples termos de direita–esquerda, ou burguesia–proletariado. Nem a maioria dos eleitores de Alckmin são burgueses (e sim da classe média), nem a maioria dos eleitores de Lula são proletários (e sim pobres). Mais do que a divisão de classes, é a divisão entre estados e regiões que marca a polarização política que estamos vivendo hoje. Alckmin ganha as eleições de São Paulo para baixo, e Lula, nos estados tradicionais de Minas Gerais, Rio de Janeiro e todo o Nordeste. O que dá força a Lula nestes estados, me parece, não é que ele tenha sido um líder operário e represente os pobres, mas sim sua capacidade de dar continuidade às políticas patrimonialistas tradicionais, distribuindo cargos e subsídios para ricos e pobres em regiões que dependem, para sobreviver, do fluxo de benesses do governo central.

Em outras palavras, o que marca a política brasileira hoje não é, como eu imaginei que viria a ser, a disputa entre lideranças e partidos políticos modernos, nem uma disputa de classes, nem uma disputa entre ricos e pobres, e sim o antigo confronto entre duas maneiras clássicas de fazer política, a política representativa e a política de cooptação.

Analfabetismo: nota sobre um fracasso anunciado

O jornal O Estado de São Paulo dedica hoje uma página à constatação, pela PNAD de 2005 (a pesquisa domiciliar socio-economica do IBGE) de que o analfabetismo diminuiu muito pouco nos últimos anos, apesar dos grandes investimentos do governo Lula no progama de alfabetização. Segundo Ricardo Paes e Barros, a redução que houve se deve exclusivamente a fatores demográficos (os analfabetos são em geral mais velhos, e seu número diminui quando eles morrem). Se o programa do governo teve algum efeito, ele não aparece nas estatísticas.

A única supresa é o espanto que este resultado óbvio parece ter provocado. Todos que têm um mínimo conhecimento do assunto já sabiam de antemão que campanhas de alfabetização como estas não funcionam. Em 2003, ainda no Ministério de Cristóvão Buarque, eu divulguei na Internet uma entrevista em que dizia que a prioridade que ele estava dando ao tema era equivocada, que pode ser vista aqui. O Centro de Estudos Brasileiros de Oxford, que organizou um seminário sobre a educação brasileira que resultou no livro sobre os Desafios da Educação Brasileira, fez o possível para que Cristóvão ou algum de seus assesores participasse dos seminários e colaborasse com o livro, sem nenhum sucesso. Depois, com Tasso Genro, o governo manteve a mesma prioridade, e não se pode dizer que foi por ignorância. É difícil acreditar que a sofisticada avaliação do programa de alfabetização que o jornal menciona possa mostrar resultados diferentes.

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