Chile: descolando da América Latina

Com o PIB mas alto da região, segundo relatório recente do FMI, o Chile deixa cada vez mais de ser um país “latino-americano”, e se transforma em um país moderno e desenvolvido. Isto se vê com facilidade andando por Santiago, com a arquitetura moderna dos bairros altos, a recuperação do centro histórico, a modernização dos transportes urbanos e as obras rodoviárias por toda parte; e as ruas cheias de gente fazendo compras e enchendo bares e restaurantes, tanto na região elegante da Providencia como na parte antiga da Plaza de Armas e do Mercado Central. Os índices de pobreza no Chile vêm caindo a cada ano, e a distribuição dos gastos sociais é uma das melhores da região. A zona da antiga e decadente Avenida da República é hoje uma área fervilhante de universidades e institutos técnicos privados, freqüentados todos os dias por mais de 50 mil estudantes, sem falar nas universidades tradicionais como a do Chile e a Católica. Até as águas do Rio Mapocho parecem correr mais limpas. Com a proximidade da festa nacional de 18 de setembro, as ruas se enfeitam de bandeiras, e por toda parte se fala da comemoração da “Chilenidad”.

Também há problemas, e muitos. No dia 11 de setembro, aniversário do golpe de Pinochet, grupos de extrema esquerda encapuzados atacaram lojas e repartições públicas com bombas molotov, uma delas provocando um incêndio no palácio presidencial de La Moneda; uma greve dos serviços médicos havia paralisado o atendimento à população; e professores e estudantes das escolas municipais ameaçam com greves e mais manifestações, enquanto o governo tenta resolver os problemas através de comissões de trabalho e negociações que parecem não terminar. Na última década, o governo chileno aumentou muito os investimentos em educação, o ensino médio está praticamente universalizado, a jornada completa se expande rapidamente por toda a rede escolar; mas os resultados do Chile no teste de Pisa são tão ruins quanto os do Brasil ou do México.

Em que medida o que acontece hoje no Chile, de bom e de ruim, tem a ver com as reformas liberais introduzidas durante regime Pinochet? Estas reformas foram mantidas, com modificações, pelos governos de centro-esquerda da Concertación, e o consenso do país, inclusive nos governos socialistas de Lagos e Michelle Bachelet, é que não faz sentido voltar aos velhos tempos, de uma sociedade burocratizada e paralisada. O Chile tem hoje a economia mais competitiva da América Latina, aonde se pode, com mais facilidade, abrir e fechar um negócio, e aonde a abertura ao comércio internacional é maior. Este tipo de economia tem também seus perdedores, e isto explica, talvez, a virulência dos ataques da extrema esquerda, apesar do grande apoio da presidente Michelle Bachelet entre a população.

E existe também o cobre, cujo preço no mercado internacional aumentou enormemente nos últimos anos, gerando grande quantidade de recursos, ao lado das indústrias de exportação como o vinho, as frutas e o salmão. Mas o Chile, diferentemente de outros paises que se enriqueceram com o petróleo, investe a longo prazo e cuida para que a riqueza do cobre não inflacione a economia nem sobre-valorize a moeda, evitando, desta forma, a “doença holandesa” que é a praga dos paises que se enriquecem desta maneira.

Mas o mais importante de tudo, talvez, seja a maturidade política que sempre existiu no país de alguma maneira, sobreviveu aos anos de chumbo da ditadura, e hoje é, possivelmente, a principal diferença entre o Chile e a maioria dos outros paises do continente. Os partidos políticos têm princípios e programas, os políticos são pessoas honradas, há pouca corrupção e pouco espaço para o populismo barato que conhecemos tão bem. Temas controversos – como a política de distribuição da “pílula do dia seguinte” para adolescentes, a reforma da educação, ou as relações sempre difíceis com a Argentina – são discutidos de forma civilizada pela imprensa, o judiciário é independente e acatado e, com a exceção da extrema esquerda alienada, todos respeitam e valorizam as instituições e os processos democráticos de decisão.

Que dá inveja, dá…

Universidade Para Todos!

Na Venezuela:

Mensagem do cidadão Presidente da República a todos os aspirantes a ingressar na Universidade National Experimental Politécnica da Força Armada Nacional: Dei instruções ao cidadão reitor da Universidade no sentido de que, em consonância com a política de participação, inclusão e justiça social que o governo nacional promove, e dado que a EDUCAÇÃO constitui o meio mais eficaz de combater a POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL E APAGAR AS DIFERENÇAS SOCIAIS, todos os jovens que se apresentaram à primeira prova de avaliação desta universidade sejam admitidos em sua totalidade, para começar a estudar em 2006. Benvindos!

A Universidade da Força Armada vem se expandindo rapidamente, ao lado da recém criada Universidad Bolivariana de Venezuela, também experimental. Os cursos da Universidade da Força Armada não têm nada de militar: são licenciaturas e cursos de pós-graduação em engenharia e áreas como economia social, educação integral, administração e contabilidade pública; e cursos técnicos superiores curtos em áreas como turismo e enfermaria.
O site da Universidade Bolivariana não diz quais as carreiras os estudantes poderão seguir (ou pelo menos eu não encontrei a informação); mas indica que todos deverão passar por um curso inicial de 20 semanas de Linguagem e Comunicação, Matemática, Venezuela no Contexto Mundial, Intervenções Especiais, Informática e Orientação Vocacional. Além de não ter exames de seleção, os alunos que passam pela Universidad Bolivariana, pelo que entendo, terão trabalho garantido pelo governo.

As novas universidades funcionam nas instalações magníficas da Companhia de Petróleo Venezuelana, que, depois de demitir metade de seus 40 mil funcionários que ousaram entrar em greve contra o Governo Bolivariano (sem que isto tenha afetado os enormes rendimentos do petróleo), tem espaço de sobra em seus edifícios.

Ser uma universidade experimental significa que tudo é decidido pelo Cidadão Presidente e seus assessores, sem passar pelas administrações e órgãos colegiados como na secular Universidade Central da Venezuela, por exemplo, que no passado foi um centro importante de mobilização e mesmo de luta armada contra as oligarquias e ditaduras que governavam a Venezuela, e hoje se vê ultrapassada e deixada de lado pela Revolução Bolivariana.

Seminário sobre Educação, pobreza e desigualdade no Brasil: prioridades

No dia 17 de outubro, com apoio da Fundação Konrad Adenauer, o IETS estará organizando no Rio de Janeiro um seminário sobre as prioridades nas políticas públicas que possam ajudar a romper o cículo vicioso entre educação, pobreza e desigualdade no Brasil. Na parte da manhã, o tema será o relacionamento entre políticas de renda e educação, com a participação de Sergei Soares, do IPEA; Sonia Rocha, do IETS; e Eduardo Rios-Neto, do CEDEPLAR em Belo Horizonte. Na parte da tarde, trataremos da educação propriamente dita: Aloísio Araujo, da Fundação Getúlio Vargas e do IMPA, falará sobre o impacto de longo prazo da educação da primeira infância; Francisco Soares, da UFMG, sobre o impacto da organização escolar no desempenho dos alunos; e João Batista Araujo e Oliveira e Luis Carlos Faria, sobre o tema do analfabetismo funcional e o que fazer com ele. No encerramento, Milu Vilella coordenará uma mesa redonda sobre o movimento de Todos pela Educação.

Fico realmente contente por ter conseguido reunir um grupo tão excepcional de pessoas neste evento, e espero que ele possa conbribuir para fazer com a que discussão sobre os temas educacionais no Brasil passe para um patamar superior. Mais detalhes podem ser vistos na página do IETS na Internet. Para participar, é necessário se inscrever antes, porque o espaço, no Hotel Glória, é limitado. Para se inscrever, envie uma mensagem para a coordenação do evento.

Encerrando o debate sobre cotas

Eu tinha decidido não continuar participando na discussão sobre cotas raciais no ensino superior, mas a publicação do livro de Ali Kamel provocou uma série de comentários e reações, a favor e contra, que podem ser vistos logo abaixo do texto anterior. Eu vou continuar a deixar neste blog os comentários que forem enviados, desde que coerentes, assinados e não totalmente repetitivos, mas não vou mais circulá-los na lista de correio.

Uma das razões disto é que me parece que os diferentes argumentos já foram formulados, e estão se tornando circulares. A outra razão é que a discussão sobre cotas nas universidades está ocupando todo o espaço e a atenção, e impedindo que se discutam as questões mais centrais do ensino superior e da educação como um todo, dentro da qual o tema das ações afimativas pode ter lugar, mas não o principal.

Quanto ao tema em si, me parece que ninguém duvida que existe preconceito e discriminação racial no Brasil, e que a condição de vida e as oportunidades dos descendentes de escravos e das populações indígenas é bem pior, na média, do que a dos descendentes dos imigrantes europeus e dos países asiáticos. Ao mesmo tempo, as fronteiras entre pessoas de diferentes origens não são nítidas, existe muita convivência e uma longa história de miscigenação, e neste sentido a sociedade brasileira, da mesma forma que outras sociedades latinas com uma história de escravidão como Cuba, Venezuela e República Dominicana, é muito diferente da sociedade americana, sem falar da África do Sul, aonde a separação entre raças e culturas é claramente marcada. O que se discute é se a desigualdade é causada predominantemente pelo preconceito e a discriminação ou por outros fatores, como a má qualidade da educação e de oportunidades de trabalho, que afeta tanto a brancos quanto não brancos, embora em proporção desigual. O que se discute, também, é se a solução para os problemas de desiguldade é dividir o país em duas raças estanques, oficializando as diferenças raciais, ou identificar e eliminar as situações de desigualdade e discriminação, fazendo com que o país evolua no sentido de uma sociedade em que todos sejam igualmente reconhecidos e valorizados pelo que são como pessoa, e não pela cor da pele que têm.

Finalmente, é natural que diferentes grupos, na sociedade, possam ter interesse em ressaltar e redefinir suas identidades, sejam elas associadas a origem, cor, gênero, preferência sexual ou religião, e interpretem de forma diferente a história e as experiências passadas. O que se discute, em relação a isto, é se é necessário adotar uma interpretação específica da história como a oficial e impô-la aos demais, ou deixar que as diferentes interpretações coexistam, em uma sociedade efetivamente pluralista.

Ali Kamel: Não Somos Racistas

O livro de Ali Kamel, sob o título acima, reune muitas das coisas que ele vem escrevendo no “O Globo” sobre o tema, e estou transcrevendo abaixo um trecho, acompanhado de um comentário de Jerônimo Teixeira sobre “as falácias da política de cotas raciais”. Estes textos já circularam em minha lista, por sugestão de Maria Cristina Barreto.

Segundo Ivonildo Leite, “quanto mais não seja, os dois textos a seguir são interessantes para, no mínimo, tornar a discussão sobre cotas mais plural. Um tanto mais audaciosa talvez seja a pretensão de pautar o debate pela racionalidade, indo além do discurso “politicamente correto”, que, por não fazer nenhuma distinção entre ideologia e ciência, cria embaraços para as próprias causas que defende.”

Já Luisa Schwartzman discorda: “eu nao acho que os dois textos tornem a discussao mais plural. Pelo contrario, eles a tornam tao plural quanto sempre foi desde que comecou. Ou seja, as pessoas ou sao contra ou a favor das cotas. Só existem esses dois pontos de vista? Ninguém consegue pensar em mais nada? Nao tem meio-termo?

NÃO SOMOS RACISTAS

Ali Kamel

Foi um movimento lento. Surgiu na academia, entre alguns sociólogos na década de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo até se tornar política oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalístico diário, quando me dei conta do fenômeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova de que os grandes estragos começam assim: no início, não se dá atenção, acreditando-se que as convicções em contrário são tão grandes e arraigadas que o mal não progredirá. Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem também ter se assustado: quer dizer então que somos um povo racista? Minha reação instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, publiquei no Globo um artigo cujo título dizia tudo: “Não somos racistas.”

Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no conjunto, tenho a consciência de que fui me dando conta do estrago à medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um jornalista, de alguém especializado em ver o imediato das coisas. Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade. Gente como os historiadores José Roberto Pinto de Góes, Manolo Florentino, José Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antropólogos Yvonne Maggie, Peter Fry e os sociólogos Marcos Chor Maio, Ricardo Ventura e Demétrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o perigo nos jornais, em artigos especializados, em seminários e em livros.

Na perspectiva de jornalista, de alguém mais próximo do cidadão comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um exemplo, o conceito de negro. Para mim, para o senso comum, para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sinônimo de preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra uma leitura equivocada das estatísticas oficiais acreditando nisso. Certo dia, caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que não eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. De repente, nós que éramos orgulhosos da nossa miscigenação, do nosso gradiente tão variado de cores, fomos reduzidos a uma nação de brancos e negros. Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.

O debate em torno de raças no Brasil sempre foi intenso. Deixando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o século XX foi todo ele permeado por essa discussão. Nas primeiras décadas do século passado, o pensamento majoritário nas ciências sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa constatação: para que o país progredisse, diziam os sociólogos, era preciso que se embranquecesse, diminuindo a porção negra de nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor a um pensamento tão abjeto como este.
Freyre não foi o autor do conceito de “democracia racial”, não foi ele quem cunhou o termo, hoje tão combatido. Aliás, era avesso a tal conceito, porque o que ele via como realidade era a mestiçagem e não o convívio sem conflito entre raças estanques. Usou em discursos a expressão uma ou duas vezes, a partir da década de 1960, mas sempre como sinônimo de um modelo em que a miscigenação prevalece. Jamais edulcorou a escravidão. Casa grande e senzala, a obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desumano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, violadas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por despertar os ciúmes das senhoras de engenho. Freyre não omite nada; expõe. É claro que também reconhece no branco português uma elasticidade, sem o que não poderia ter havido mistura. É claro que descreve certo congraçamento entre o elemento branco e o negro.

Essas características de Casa grande e Senzala, no entanto, foram tão realçadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam, erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravidão para fazer do Brasil mais do que uma democracia racial, um paraíso.

O papel de Freyre, porém, foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude.

Hoje, quando vejo o Movimento Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o como a um inimigo, fico tonto. Os ataques só podem ser decorrentes de uma leitura apressada, se é que decorrem mesmo de uma leitura.

Como bem tem mostrado a antropóloga Yvonne Maggie, a visão de Freyre coincidiu com o ideal de nação expresso pelo movimento modernista, que via na nossa mestiçagem a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural só poderia ser mesmo uma prática de uma nação que é em si uma mistura de gentes diversas. Esse ideal de nação saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginário. Gostávamos de nos ver assim, miscigenados. Gostávamos de não nos reconhecer como racistas. Como diz Peter Fry, a “democracia racial”, longe de ser uma realidade, era um alvo a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto.
Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia o racismo. É evidente que ele existia e existe, porque onde há homens reunidos há também todos os sentimentos, os piores inclusive. Mas a nação não somente não se queria assim como sempre condenou o racismo. Aqui, após a Abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para combater as manifestações concretas do racismo – inevitáveis quando se fala de seres humanos – criaram-se leis rigorosas para punir os infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.

Mas a partir da década de 1950, certa sociologia foi abandonando esse tipo de raciocínio para começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro é todo aquele que não é branco. Nos trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais adiante, Carlos Hasenbalg, se a idéia era “fazer ciência”, o resultado sempre foi uma ciência engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas. A idéia que jazia por trás era que a imagem que tínhamos de nós mesmos acabava por ser maléfica, perversa com os negros. Era como se o ideal de nação a que me referi tivesse como objetivo o seu contrário: idealizar uma nação sem racismo para melhor exercer o racismo. O papel da ciência, “para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocínio levava, porém, ao paroxismo de permitir a suposição de que um racismo explícito é melhor do que um racismo envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor.

AS FALÁCIAS DA POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NA ANÁLISE DEMOLIDORA DE ALI KAMEL

Jerônimo Teixeira

No início dos anos 1930, às vésperas da ascensão do nazismo, as posições pacifistas do físico alemão Albert Einstein geravam rancor entre seus compatriotas. Com o título de 100 Autores contra Einstein, um livro coletivo foi publicado para atacar suas idéias. Einstein respondeu com sua inteligência característica: “Por que 100 autores? Se eu estivesse errado, um só bastaria”.

A anedota merece ser lembrada a propósito da recente guerra de abaixo-assinados gerada pela Lei de Cotas e pelo Estatuto da Igualdade Racial – projetos de lei que visam a estabelecer políticas de “ação afirmativa” para favorecer os negros, com cotas raciais nas universidades e no funcionalismo público. Há pouco mais de um mês, um manifesto contrário ao estatuto, assinado por 114 intelectuais, foi entregue ao Congresso. Os movimentos sociais que apóiam as cotas responderam de bate-pronto com outro abaixo-assinado, este com 330 signatários.

Agora, quando a poeira da discussão já começava a assentar (e a votação do estatuto na Câmara dos Deputados ficou para o ano que vem), o diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, lança um livro fundamental para entender a questão. Não Somos Racistas (Nova Fronteira; 144 páginas; 22 reais) demonstra que as chamadas “ações afirmativas” são uma resposta irracional para um problema fictício – o racismo institucional, que não vigora no Brasil.

O engano fundamental das políticas raciais estaria, de acordo com Kamel, em considerar que a sociedade brasileira é constitutivamente racista. Existe racismo no Brasil, mas ele não é um dado predominante da cultura nacional e não conta com aval de nenhuma instituição pública. Ao exigir, por exemplo, que certidões de nascimento, prontuários médicos e outros documentos oficiais informem a raça de seu portador, o Estatuto da Igualdade Racial está na verdade desprezando uma longa tradição de mistura e convivência em prol de categorias raciais estanques e estúpidas. É, na prática, um exercício de discriminação racial, sancionado pelo Estado.

A miscigenação, dado central da sociedade brasileira, é o fato recalcado pelos defensores das cotas. A lógica beligerante implícita do estatuto e da lei de cotas é de que existem dois grandes grupos no Brasil: os brancos, opressores, e os negros, oprimidos. Isso se revela até no uso das estatísticas do IBGE – e um dos pontos fortes de Não Somos Racistas é a clareza com que o autor (que, além de jornalista, tem formação em ciências sociais) destrinça números para desmontar a falácia das cotas. Nas contas dos que defendem medidas do gênero, os negros são 48% da população, mas representam 66% dos brasileiros pobres. Kamel parte da mesma fonte – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do IBGE – para observar que, na verdade, os negros são uma minoria (veja o quadro). Os filhos da miscigenação, definidos como “pardos”, são mais numerosos e têm um lugar ambíguo no discurso racial. Sendo, em geral, descendentes de africanos e de europeus, por que deveriam ser considerados apenas “negros”? Pardos e negros, somados, representam, sim, a maioria dos pobres brasileiros – em números absolutos, 38 milhões. Mas o contingente de brancos pobres também é enorme. Como justificar uma política de avanço “racial” que deixaria para trás a massa de 19 milhões de brancos pobres?

Os mulatos mais claros serão favorecidos ou esquecidos por essas políticas de discriminação? O Estatuto da Igualdade Racial, como se vê, é uma receita para que os cidadãos brasileiros recebam tratamento desigual por parte do Estado.

A pobreza, argumenta Kamel, é a chaga social renitente do Brasil. Ela não discrimina: atinge brancos, negros, mulatos. “Negros e pardos são maioria entre os pobres porque o nosso modelo econômico foi sempre concentrador de renda: quem foi pobre (e os escravos, por definição, não tinham posses) esteve fadado a continuar pobre”, observa Kamel. Negros, brancos e pardos, diz o autor, só sairão da pobreza por força de políticas que incluam a todos – especialmente com investimentos consistentes em educação.

Kamel também é muito eficiente ao traçar o histórico das equivocadas políticas raciais debatidas hoje. A idéia de que o Brasil é racista foi, de acordo com o autor, inventada a partir dos anos 1950 por cientistas sociais como Florestan Fernandes – e Fernando Henrique Cardoso. Foi em consonância com as idéias expostas na obra do sociólogo – como Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – que o presidente Fernando Henrique implementou as primeiras políticas de “ação afirmativa” no funcionalismo público. A distorção que Kamel chama de “nação bicolor” teve início ali, e ganhou uma continuidade “canhestra” no governo Lula. Caberá aos deputados eleitos neste ano dar um ponto final nessa escalada, recusando o Estatuto da Igualdade Racial. Seria salutar que todos eles lessem Não Somos Racistas.

Debate sobre cotas no CEBRAP – 2

O debate sobre cotas nas universidades lida com uma dimensão do ensino superior no Brasil, a do acesso, mas não só deixa outras questões importantes de fora, como que acaba ocupando todo espaço do debate público sobre a questão universitária, que fica em segundo plano.

Em minha apresentação no CEBRAP, chamei a atenção para o fato de que o sistema de ensino superior brasileiro é fortemente estratificado, tanto no sentido de que a maior parte dos alunos vêm de camadas sociais médias e altas, como no sentido de que a estratificação se dá no interior das instituições. Anteriormente, as instituições públicas tendiam a ser de melhor qualidade, gratuitas e de difícil acesso, enquanto que as privadas, além de pagas, eram de pior qualidade, e aceitavam qualquer tipo de aluno. Hoje, existem muitas instituições públicas tão ruins quanto muitas privadas, e diferenças importantes dentro de cada instituição; um número crescente de instituições privadas de elite, sobretudo nas áreas de administração e direito; e um segmento crescente de educação superior privada de acesso gratuito, com poucos requisitos de entrada, e financiado pelo governo federal através do ProUni. Para os estudantes que entram nos cursos e instituições de pior qualidade, públicos ou privados, pagando ou sem pagar, com ou sem cotas, as chances são altas de que aprendam pouco e mal, abandonem o curso antes de diplomar, e, mesmo se conseguirem o diploma, deixem de obter os benefícios que esperavam que ele trouxesse. Na medida em que o ensino superior se expanda, o mais provável é que sejam os segmentos de má qualidade que cresçam, porque estes são os mais baratos, e com isto aumentem estes problemas, a um custo crescente para a sociedade, em dinheiro e frustração.

O caminho não é deter a expansão, mas tornar o sistema mais diversificado e mais eficiente. A diversificação consiste em criar alternativas reais ao modelo dominante de ensino superior, calcado nas antigas profissões liberais, e abrir espaço para diferentes tipos de formação, para pessoas com diferentes interesses e condições de estudo. Hoje, em toda a Europa, discute-se o modelo de Bologna, que combina um nível inicial de três anos para todo o ensino superior, mais acadêmico ou mais aplicado, seguido de um período de formação profissional de dois anos (equivalente ao mestrado), e outro adicional de três ou quatro anos para a formação de alto nível; esta discussão, até agora, não chegou ao Brasil. Se as universidade públicas fossem mais eficientes, elas poderiam, com os mesmos recursos que tem hoje, melhorar sua qualidade e atender a mais alunos. Para se tornarem mais eficientes, elas precisam deixar de funcionar como repartições públicas, assumir a responsabilidade pela gestão plena de seus recursos materiais e humanos, e serem cobradas por seus resultados.

Como não há recursos para continuar financiando a expansão do ensino superior público e gratuito, diante das prioridades muito maiores da educação básica e média, é necessário recolocar a questão do ensino superior público gratuito, e o espaço adequado do ensino privado. A expansão depende hoje, fundamentalmente, do setor privado, que já atende à 70% da matrícula no ensino superior do país. O atual governo, apesar de tratar o setor privado quase como delinqüente, no projeto de reforma que elaborou, foi o primeiro da história recente do país a subsidiá-lo diretamente, através da isenção de impostos do ProUni. É importante criar um marco regulatório adequado tanto para o setor público quanto para o setor privado, para estimular a qualidade de ambos, assim como os espaços para novas modalidades de educação nos mais diversos níveis, e para diferentes públicos.

Parece que esquecemos, finalmente, que uma das funções fundamentais do ensino superior é a formação de alto nível e a pesquisa científica e tecnológica. Isto está dito em todos os documentos públicos, frequentemente em termos da famosa “indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão”. O que não se diz é que, em todo mundo, a excelência só se consegue em algumas poucas instituições, geridas por critérios estritos de qualidade e desempenho, e com níveis de financiamento muito superiores às demais. Sem uma politica deliberada de excelência e concentração de recursos, associada a um processo bastante amplo de diferenciação e ampliação do acesso, não iremos a nenhuma parte.

Em um contexto mais amplo de reformas, cabem, certamente, políticas compensatórias para aumentar a diversidade dos jovens que chegam às universidades, desde que acompanhadas de programas educacionais adequados e apoio financeiro para que o acesso ao ensino superior não seja uma simples farsa; e sem que as pessoas precisem ser catalogadas e etiquetadas pelas autoridades conforme a raça de seus avós.

Discriminação e desempenho acadêmico


Será que as pessoas que são discriminadas têm pior desempenho nos estudos que as que não o são? Os dados do questionário socio-econômico dos participantes do ENEM sugerem que não. Uma percentagem significativa dos participantes que se consideram negros – 52.4% – dizem que já sofreram discriminação racial, assim como 15.2% dos pardos e 16.7% dos amarelos, ou orientais. No entanto, o desempenho no ENEM, tanto de pardos quanto de pretos, não está relacionado à discriminação, mas ao nível sócio-economico das familias.

É claro que ser e dizer que é discriminado são coisas diferentes: algumas pessoas podem ser discriminadas sem se dar conta, e outras podem ser especialmente sensíveis a qualquer forma de preconceito. Mas a reação a isto tanto poderia ser de se prejudicar pela discriminação recebida como de reagir contra ela, e não se deixar abater. Os dados do ENEM sugerem que as pessoas que se sentem discriminadas não se deixam abater, e se desempenham da mesma forma ou até melhor do que os outros, dentro das limitações de sua condição social e de seu meio.

Debate sobre cotas no CEBRAP

No dia 11 de agosto participei de um “debate sobre cotas” no CEBRAP, em São Paulo, juntamente com Antônio Sérgio Guimarães. O ponto principal de minha apresentação foi que a educação superior brasileira tem problemas importantes, mas que as cotas, raciais ou sociais, não são a resposta, porque elas partem de um entendimento errado a respeito de quais são estes problemas, tanto em relação ao acesso ao ensino superior, quanto ao sistema de ensino superior brasileiro em si. Estou resumindo abaixo a primeira parte, e a segunda fica para um próximo blog.

No início, procurei mostrar, com dados da PNAD de 2004 (a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE), que as diferenças de acesso à educação pelos diferentes grupos de cor, na definição do IBGE, vem se alterando rapidamente. Na população total, mais ou menos metade das pessoas se declaram “brancas” nas pesquisas, uns 45% se declaram “pardos”, e uns 5% se declaram “negros” (daqui em diante utilizarei estas denominações sem aspas). Na população de mais de 20 anos, existem 4,1 vezes mais brancos do que pardos e pretos com educação superior no Brasil (7,7 e 1,8 milhões, respectivamente), refletindo o passado de desigualdades. No ensino médio, a diferença cai para 1,4 vezes (15,7 para 10,9 milhões). A maioria destas pessoas já não está mais estudando. Entre os que estão estudando hoje, a diferença no ensino superior é muito menor, de 2.6 vezes (3 ,4 para 1,3 milhões), e no nível médio, é de 1.1 vezes (4,5 para 4,1 milhões), ou seja, praticamente igual à distribuição da população. No ensino fundamental, já não existem diferenças. A explicação é simples: na medida em que o sistema educacional se amplia, o acesso se torna maior, e a metade não branca da população brasileira, que é também a mais pobre, vai encontrando mais espaço.

A grande expansão do ensino médio dos últimos anos já começa a pressionar o ensino superior, e, para ver o que está acontecendo nesta passagem, fiz uma análise dos dados mais recentes do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, tornados acessíveis pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, o INEP.

Os dados do ENEM não são representativos da população, já que a participação é voluntária, mas já incluem um grupo bem significativo de pessoas. Em 2005 se inscreveram cerca de 3 milhões de jovens, dos quais cerca de 2 milhões fizeram as provas e responderam a um questionário socioeconômico, que continha uma pergunta sobre “cor”, igual à do IBGE. A distribuição é muito semelhante à da população, com 45% de brancos, 38.4% de pardos e 12% de pretos – este último o dobro, em termos proporcionais, do que na população como um todo. Analisando os resultados da prova objetiva, encontramos, como era de se esperar, uma grande variação do desempenho em função da educação e da renda das famílias de origem dos candidatos, e também diferenças por cor. A média dos brancos na prova objetiva é 42,9; dos pardos 36,9; e dos pretos, 35,6; uma diferença, portanto, de 7.3 pontos entre brancos e pretos. A média para todo o país é de 40 pontos. Em termos de renda, as médias são de 31,6 para as famílias com até 1 salário mínimo, e 59.6 para as famílias 10 a 30 salários mínimos – 28 pontos de diferença, portanto. A diferença entre os filhos de mães só com educação primária e com educação superior é de cerca de 20 pontos. Dentro de cada grupo de renda ou educação familiar, as diferenças de grupos de cor persistem, mas em menor grau: entre brancos e pretos (excluindo os pardos), as diferenças são de 2 pontos entre as famílias de um salário mínimo, e 10 pontos entre famílias de 10 a 30 salários mínimos; 3,1 pontos para filhos de mães que só completaram o antigo primário, e 12% para filhos de mães com educação superior.

Estes dados mostram, primeiro, que as diferenças de renda e educação familiar, e não a cor, são os principais correlatos dos resultados do ENEM, que, por sua vez, são uma indicação razoável da chance de a pessoa entrar em uma universidade mais competitiva. Segundo, que existem diferenças entre os grupos de cor que persistem nos diferentes grupos de renda e educação familiar. E, terceiro, que estas diferenças aumentam na medida em que aumenta a renda e a educação das famílias, como se os ganhos em educação e renda das famílias pretas (e, em menor grau, pardas) não fossem suficientes para que os filhos obtenham ganhos equivalentes em seu desempenho escolar.

Alguns economistas têm descrito estas diferenças não explicadas estatisticamente como “discriminação”. No entanto, não há evidência de que seja esta de fato a explicação das diferenças. Elas podem se dever, por exemplo, ao fato de que os ganhos sociais e econômicos das famílias pardas e negras sejam mais recentes, que os cursos superiores dos pais tenham sido completados em carreiras e instituições de menor qualidade, e que estas famílias ainda não tenham conseguido acumular o “capital cultural” que é o requisito para o bom desempenho escolar. Uma indicação do que pode estar ocorrendo pode-se ver na percentagem de pessoas que estudaram em escolas particulares, cuja qualidade em geral é maior, nos níveis mais altos de renda e educação. Entre as famílias entre 9 e 15 mil reais mensais de renda, 59% dos brancos estudaram em escolas particulares, assim como 61% dos pardos, mas somente 28.6% dos pretos. Entre as famílias cujas mães têm nível superior completo, 40% dos brancos, 30% dos pardos e 18.7% dos pretos estudaram em escola particular.

O ENEM tem várias perguntas sobre percepção e experiência de discriminação. Muito poucos se dizem preconceituosos, mas cerca de 30 a 40% vêm preconceitos nos colegas e nas próprias famílias. Mais da metade dos pretos, e 16% dos pardos, dizem que já sofreram discriminação. Mas ter ou não sofrido discriminação não afeta os resultados no ENEM.

É possível, no entanto, que as crianças pretas e pardas estejam sofrendo formas de discriminação que não aparecem nas estatísticas, e que podem estar afetando seu desempenho? É claro que é possível, e até mesmo provável. Mas o que as estatísticas mostram é que, com ou sem discriminação, o que mais determina as diferenças de resultado e de oportunidades educacionais são a renda das famílias, a educação dos pais, e outras variáveis como o tipo de escola que o jovem freqüentou. É importante conhecer melhor, enfrentar e corrigir os problemas de discriminação, assim como os fatores que levam muitas famílias, mesmo educadas e ricas, a não proporcionar a seus filhos as condições adequadas para que estudem e se desenvolvam. Mudar tudo isto é difícil, caro e complicado. Criar cotas raciais nas universidades por decreto é simples e barato. Mas não resolve, e acaba desviando a atenção de aonde estão os verdadeiros problemas.

Fico devendo a segunda parte da discussão, sobre o sistema universitário brasileiro e o que fazer com ele.

Em quem votar?

A Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção, criou um site com o histórico de todos os candidatos à Camara de Deputados, em todo país – quem são, o que fizeram, os bens que possuem, os processos que sofreram, etc. Agora, ninguém mais pode dizer que votou errado por falta de informação. O site se chama Excelências, e vale mais do que um click! (site inacessível em julho 2009)

Uma maneira emocionante de voar

Depois de alguns meses em Oslo, onde tudo é organizado e funciona, e a adrenalina nunca sobe fora dos campeonatos de ski, foi emocionante voltar ao Brasil tendo que fazer uma conexão em Londres pela Varig em crise. O mais emocionante de tudo era a total falta de informações sobre o que estava acontecendo ou iria acontecer. Os telefones da companhia nas diversas capitais européias haviam sido cortados, ou respondiam com musiquinha eterna do Antonio Carlos Jobim, e muito raramente atendia alguém, que dizia não saber de nada. Aproveitando a crise da Varig, as outras companhias que voam para o Brasil jogaram os preços nas alturas, e mesmo assim todos os voos estavam lotados para as próximas semanas.

A melhor recomendação que consegui foi embarcar para Londres como estava previsto, procurar a Varig no aeroporto, e ver o que ia acontecer. Chegamos às 7 da noite, com várias malas, e o que encontramos foi dezenas de pessoas amontoadas ante um guichê onde dois funcionários tentavam atender de alguma maneira quem conseguia chegar até eles. Alguns haviam entrado na fila duas da tarde, outros estavam tentando ser atendidos pelo segundo ou terceiro dia. Alguns conseguiam ser colocados em voos de outras companhias, outros não. Outros funcionários conversavam com os passageiros na fila, e davam informações desencontradas. A um estudante uruguaio, que dizia não ter dinheiro nem para comprar um sanduíche, disseram que não poderiam fazer nada, que a Varig não estava pagando gastos de hotel, e ele que procurasse sua embaixada para pedir ajuda. Um italiano chegou perguntando, inocentemente, aonde deveria entregar sua bagagem, e foi informado de que o vôo não existia, que a Varig não voltaria a voar, e que ele deveria pedir à agência de viagens que devolvesse o dinheiro da passagem. Para uma moça educada que pedia o telefone da Varig em Londres para se queixar, deram um número que, quase certamente, não atenderia. Onze da noite, depois de eu ter reservado e pago um hotel pela Internet, anunciaram aos que ainda estavam na fila que teriam um hotel pago pela companhia, e que em dois dias, esperavam, haveria um vôo extra de Londres para o Brasil. Dois dias depois mandaram os que estavam no hotel para Frankfurt, aonde foi preciso enfrentar uma nova fila para conseguir o cartão de embarque para um dos dois vôos que estavam saindo para o Brasil, em meio a boatos de que a tripulação estava exigindo seu descanso regulamentar, e não voaria. Minha impressão dos funcionários com quem lidei foi que estavam todos muito tensos, tendo que absorver e lidar com a ansiedade dos passageiros, temendo ser agredidos, e sem saber o próprio futuro, com a ameaça bastante real de perder seus empregos. A maioria conseguia se manter equilibrada e tratar bem todo mundo, mas ouvi muitas queixas de gente maltratada também.

A principal causa da confusão, me parece, foi a tática deliberada da companhia e seus novos donos de ir empurrando os problemas com a barriga, lidando com as crises e situações a cada momento, em vez de buscar uma solução organizada a previsível para a situação de falência, conhecida há tanto tempo. É uma tática que tem sua lógica. Se eu tivesse sido informado com antecedência que meu vôo havia sido cancelado e a passagem perdida, eu teria comprado outra, arcado com o prejuízo e pronto, gastando um pouco de bílis, mas pouca adrenalina. Sem isto, fica a pressão de todos sobre a companhia e as matérias na imprensa, que, sem dúvida, ajudam a pressionar o governo e os credores por mais prazos, mais concessões, e assim ir vendo o que dá para salvar de todo este desastre. Nesta confusão, não existe previsibilidade, não há critérios claros sobre quem vai ou não ser atendido, e as soluções parecem variar tanto em função do “você sabe com quem está falando” como do humor dos funcionários, ou das instruções diferentes que recebem a cada momento. O fato de que havia em meu grupo um advogado bem relacionado em Brasília, e que o grupo se organizou para tratar em conjunto com a companhia, parece que ajudou bastante.

O que torna possível esta tática de empurrar com a barriga, me parece, é a insegurança jurídica que caracteriza a economia do pais, sobretudo numa área regulada como esta da aviação civil. Desde o início, a crise da Varig tem sido marcada por uma sucessão interminável de apelos, decisões e contra-decisões judiciais, e um posicionamento pouco claro por parte do governo que, por um lado, tem conseguido evitar que o setor público, via BNDES, assuma todos os custos da falência da empresa, mas, outro lado, faz uma série de concessões em relação às dívidas com o fisco, uso de aeroportos, concessão de linhas, etc. Nisto, o governo tem apoio da opinião pública – uma enquête do site do O Globo na Internet mostrou que a maioria das pessoas achava que a viúva deveria acudir a Varig, e poucos eram a favor de uma “solução de mercado”, aonde a Varig nunca conseguiu competir. Minha impressão é que, neste processo, a empresa foi se desorganizando cada vez mais, perdendo valor e espaço no mercado, e o resultado final está sendo pior para todos, desde as empresas internacionais que fornecem os aviões e deverão buscar mais garantias e proteção para assinar novos contratos. até o público que é afetado pelas incertezas e não tem os benefícios de um mercado mais competitivo, sem falar, é claro, nos custos invisíveis dos impostos e taxas que o governo deixa de recolher, e que são pagos, em boa parte, por quem só anda de ônibus.

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