O parto da montanha

O texto final da proposta de reforma do ensino superior, apresentado com tanta fanfarra pelo governo no início do Ministério Tarso Genro, resultou em uma proposta tímida, que insiste em erros antigos e não lida com os temas importantes, e que dificilmente passará pelo Congresso neste ano eleitoral. Junto com Cláudio de Moura Castro, fizemos uma série de comentários sobre as sucessivas versões deste projeto, o último dos quais, “O Parto da Montaha”, sobre esta versão mais recente, disponível aqui.

Os equívocos e a falta de clareza do Ministério da Educação na área do ensino superior são dissecados com lucidês em um texto preparado por José Luis da Silva Valente, que foi Diretor do Departamento de Desenvolvimento do Ensino Superior da SESu/MEC na gestão de Paulo Renato e trabalha hoje em uma empresa privada, a VMD BRASIL Consultoria Educacional.

Como nos tempos do Estado Novo: obrigatoriedade da sociologia e filosofia no ensino medio

Tenho recebido uma chuva de mensagens pedindo apoio para a campanha para tornar obrigatório o ensino de sociologia e filosofia no ensino médio. O principal promotor desta campanha é o sindicato dos sociólogos de São Paulo. A Lei de Diretrizes e Bases diz que os estudantes oriundos do ensino médio devem demonstrar ” domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Ora, quem sabe sociologia e filosofia são os sociólogos e filósofos formados nestas disciplinas, e quando a lei passar a ser cumprida, eles serão contratados para dar estes cursos, criando um grande mercado de trabalho para estas profissões e, ao mesmo tempo, formando melhores cidadãos para o pais. Bom para os sociólogos e filósofos profissionais, e bom para todo mundo. Certo?

Não, errado! No passado, a tradição era que o governo definia, nacionalmente, os currículos de todos os cursos, que eram obrigatórios para todas as escolas. A conseqüência era que o ensino se dava de forma burocrática, ritualizada, e os estudantes tinham que aprender um amontoado de conhecimentos inúteis e mal dados, que eram esquecidos rapidamente. Em grande parte, isto ainda é assim. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, ainda que de forma imperfeita, buscou mudar isto. Ela estabelece, de forma bastante ampla, que os estudantes devem adquirir conhecimentos de ciências naturais, linguagem e ciências sociais e humanas, e que os governos, nos seus diferentes níveis. devem estabelecer as “competências e diretrizes” da educação em seus diversos níveis, “que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos” dos diferentes cursos. Ela menciona filosofia e sociologia (erradamente, me parece), da mesma forma que poderia mencionar disciplinas tradicionais do ensino médio, como geografia e historia, e disciplinas que obviamente deveriam existir, como o direito, a economia, a computação e a estatística. Em principio, cada escola deveria poder organizar seu programa de estudos como achasse melhor, e os estados e municípios poderiam estabelecer requisitos mais específicos para seu âmbito de atuação, que as escolas deveriam atender, sem perder sua autonomia.

Mas o publico, de uma maneira geral, não entendeu isto, e os governantes tampouco. As demandas pelo ensino obrigatório de diferentes disciplinas não para de crescer: educação ambiental, língua castelhana, agora sociologia e filosofia – porque não antropologia e demografia, e trazer de volta a historia e geografia, e mais a economia e o direito, sem falar das novas áreas cientificas e técnicas, como computação, biotecnologia e nanotecnologia? E a teologia, ou religião? Milhares de novos professores seriam contratados para estes cursos obrigatórios, e os alunos que se virem para entender e memorizar todos estes novos conteúdos!

Isto não tem como dar certo. Do ponto de vista dos alunos, este tipo de educação enciclopédica, formada pela soma de pequenos fragmentos de conhecimentos das diversas disciplinas, não faz o menor sentido. O estudantes precisam dominar a linguagem verbal e simbólica das matemáticas, e é importante que entendam o que são as ciências, o que é o mundo das relações sociais e econômicas, e o que são as instituições. Isto pode ser feito de muitas maneiras diferentes, e existem formas de verificar se de fato estes conhecimentos básicos estão sendo adquiridos e incorporados (vejam por exemplo as avaliações internacionais da OECD, o PISA). O mais importante não é o conhecimento extenso, de um monte de fragmentos, mas o conhecimento o mais aprofundado possível de algumas áreas, com as quais as escolas possam ter mais afinidade. No nível médio, algumas escolas podem preferir se aprofundar na formação literária, outras na formação em ciências biológicas, outras na formação filosófica ou sociológica, ou em determinadas línguas estrangeiras. Idealmente, os alunos, e suas famílias, deveriam poder escolher as escolas conforme suas especialidades. Mesmo não havendo esta possibilidade, se a escola trabalhar bem seus temas, o mais provável é que todos os alunos se beneficiem.

Meus colegas do sindicato de sociólogos que me perdoem, mas sociologia não é, nunca foi e provavelmente nunca será uma profissão, e sim uma disciplina acadêmica, com fronteiras pouco definidas e conteúdos muito variáveis. Como disciplina, ela se aproxima mais de áreas como a filosofia, antropologia e economia do que das profissões estabelecidas como o direito ou a medicina. Os conhecimentos relativos ao mundo das relações sociais, assim como das questões da ética e da moralidade, não são privilégios dos sociólogos e filósofos portadores dos respectivos diplomas, mas estão presentes, de diversas formas, em outras disciplinas, como a teologia, a antropologia, o direito, a historia e a critica literária. Fazer com que as escolas contratem, obrigatoriamente, pessoas com diplomas de sociólogo ou filosofo não é nenhuma garantia de que os estudantes irão adquirir conhecimentos relevantes nestas áreas, inclusive porque a Lei de Diretrizes e Bases não diz, nem teria como dizer, que conteúdos específicos em sociologia ou filosofia os estudantes deveriam aprender. Dada a qualidade geralmente precária dos cursos superiores de sociologia e filosofia no pais, criar esta obrigatoriedade seria, simplesmente, enrijecer ainda mais o currículo escolar, e tornar o ensino médio pior ainda do que já é .

Eu vejo um papel importante para sociólogos e filósofos em relação ao ensino médio, que é o de pensar e propor, a partir de seus conhecimentos, conteúdos que poderiam ser de interesse das escolas, preparando livros e materiais pedagógicos de qualidade, e tratando de convencer as escolas da importância de seus conhecimentos para a formação dos jovens. Mas isto deve ser feito de baixo para cima, a partir do trabalho com as escolas, e não de cima para baixo, pela promulgação de leis de ensino obrigatório, como nos velhos tempos do Estado Novo.

As organizações da sociedade civil e a democracia

No dia 25 de maio, participei do 4o. Congresso GIFE sobre investimento social privado, em Curitiba, aonde apresentei os resultados  do Censo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, que me coube analisar (publicado em dois volumes, um geral, e outro específico sobre as ações na área de educação.. O GIFE tem hoje mais de 90 associados, e reúne as principais instituições privadas que desenvolvem investimentos sociais no país. Estima-se que os associados do GIFE gastem cerca de 1 bilhão de reais por ano, sobretudo na área da educação. É muito dinheiro, mesmo se comparado com os gastos públicos do setor educacional – cerca de 15 bilhões por parte do governo federal e 40 bilhões dos governos estaduais, além dos gastos dos municípios e das famílias.

No passado, os investimentos sociais das empresas eram feitos sobretudo como filantropia, ou como instrumento de marketing institucional. Hoje, cada vez mais, o tema da responsabilidade social das empresas ganha o primeiro plano, e uma questão que se coloca é se as empresas não estariam, de alguma forma, tratando de desempenhar uma função que seria eminentemente pública. Em um extremo, estes investimentos podem estar suprindo carências que seriam da responsabilidade do setor público, aonde ele não consegue chegar. No outro extremo, estes gastos poderiam estar abrindo espaços para novas experiências e desenvolvendo novos modelos de atuação que poderiam beneficiar a sociedade como um todo. Entre os dois, estes gastos podem estar tendo uma função filantrópica importante, mas limitada ao âmbito de atuação das instituições, sem impactos externos mais amplos. Os dados do Censo, ainda que limitados, sugerem que é ainda sobretudo isto o que está acontecendo.

O tema reapareceu, de uma outra forma, na reunião sobre “Sociedade civil e democracia na América Latina: crise e reinvenção da política” organizada pelo Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e o Instituto FHC em São Paulo, nos dias 26 e 27. O paper inicial de Bernardo Sorj colocou a questão: em que medida as instituições políticas tradicionais – os partidos políticos, o Congresso, o próprio executivo – estariam sendo substituídos por ONGS – as organizações não governamentais – e qual a conseqüência disto para a Democracia? O caso do Chile, apresentado por Ernesto Ottone, serviu como evidência de que a verdadeira democracia se constrói com partidos políticos e instituições públicas consolidadas, elementos que faltam ou estão em crise em outros paises da região – Argentina, Brasil, Peru, Bolívia.

Não é uma discussão simples, e é claro que as instituições que participam do GIFE são muito diferentes do que normalmente se pensa quando se fala das novas ONGs. Para de Tocqueville, a base da democracia americana, duzentos anos atrás, era justamente a fortaleza das organizações da sociedade civil que, segundo autores mais recentes (Robert Putman, Bowling Alone) estariam desaparecendo, ou se transformando em lobbies e grupos de pressão. Que espaço existe ainda, na América Latina, para as instituições políticas mais tradicionais, e o que se pode esperar da combinação entre governos de base plebiscitária e estes novos atores sociais?

Inversão de prioridades no projeto de reforma do ensino superior

Os jornais têm noticiado que já existe uma nova proposta de reforma universitária na Casa Civil, pronta para ser enviada ao Congresso para aprovação. Vi referências a muitos aspectos desta versão, mas não consegui ver ainda o texto final. Pelo que tem sido publicado, ela manteria a elevação para 75% dos recursos de educação do governo federal para o ensino superior, em detrimento da educação básica. Carlos Henrique Araujo e Nildo Luzio escreveram recentemente o seguinte texto a rspeito:

É extremamente preocupante o estabelecimento de um percentual obrigatório de pelo menos 75% dos recursos do Ministério da Educação a serem aplicados no ensino superior. Com isso, o projeto de Reforma Universitária do Governo do Partido dos Trabalhadores poderá gerar repercussões negativas para as gerações futuras.

Alguns dados da realidade, não levados em conta, evidenciam como o Ministério da Educação, com essa proposta, pode estar contribuindo para aumentar a desigualdade no sistema de ensino nacional, já tão vilipendiado. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, o Inep, órgão responsável pela estatística educacional, em 2002, o investimento público médio em todas as modalidades da educação básica foi de R$ 900,00 por aluno e, no ensino superior, de R$ 10.534,00. Isso corresponde à razão de menos um real aplicado no nível básico para cada 11 reais gastos diretamente no ensino superior.

Alguns dirão que isso é razoável, pois manter o estudante na universidade é necessariamente mais caro do que no ensino básico. De fato, porém, a razão de investimento entre os níveis, como acontece no Brasil, não encontra precedentes quando comparados com outros países, especialmente os que têm melhores indicadores educacionais e sociais, o que não é o caso do Brasil. Alguns dados podem ajudar a refletir melhor sobre o tema.

A razão de aplicação de recursos públicos entre o secundário e o superior, por aluno, é de 1,7 vezes na República da Irlanda. Na Coréia do Sul, a distribuição dos gastos públicos por nível educacional mostra 34% aplicados na educação primária, 43,4% no secundário e 18,1% no nível superior. O restante dos recursos se divide em 1,2% para o pré-primário e 3,3% em programas de pesquisa e inovação. Esses são somente dois exemplos.

O Ministro da Educação disse que as Universidades serão chamadas a cumprir metas, com indicadores objetivos de resultados, contemplando aspectos como número de alunos por professores e número médio de aulas por docente a cada semana, dentre outros indicadores. No entanto, o que se vê no Brasil é que as Universidades foram capturadas por interesses corporativos de funcionários e professores. Os sindicatos advogam sempre pela autonomia. No entanto, não é aceitável que as instituições não prestem contas do dinheiro público ali investido. Além disso, não há na proposta nenhuma garantia legal de que a responsabilização relativa à aplicação dos recursos esteja garantida. Se estivesse, menos mal.

O que é mais preocupante é o fato de que a educação básica ainda carece de muito incremento. Uma análise séria sobre a área deve, necessariamente, partir das dimensões cruciais a serem consideradas, ou seja, acesso, fluxo escolar e qualidade dos resultados, sobretudo os de aprendizagem.

O que se nota, hoje, é que apenas o acesso, no ensino fundamental, está resolvido. Contudo, o fluxo e os resultados de aprendizagem são um verdadeiro desastre. Para resolvê-los, é preciso aumentar os recursos, notadamente entre os mais de 70% dos municípios brasileiros, com baixa arrecadação e capacidade de investimento. Por outro lado, é preciso ser mais rigoroso na adoção de programas. Estes devem atacar os reais problemas, com gerenciamento eficiente.
A reforma universitária, como está desenhada, vincula cada 0,75 de real do orçamento do Ministério da Educação para as universidades. Isso significa dizer que, no futuro, cada aumento possível, em situações de menor aperto fiscal e de maior esforço do Estado, com apoio da sociedade, irá para o ensino superior.

Não se advoga por deixar morrer a míngua as Universidades. Deve-se equacionar os problemas de financiamento das federais. Porém, até agora não se fez uma discussão séria em torno do assunto, considerando aspectos como pagamento de mensalidade, flexibilidade para captação de recursos junto aos setores privado e público e rigor na aplicação dos recursos assim obtidos. Estes são temas que não podem ser negligenciados para que se garanta recursos no futuro.

O financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior pode se valer de outras fontes, além dos recursos orçamentários. Para tanto é necessário que as lideranças da maior parte dos professores e funcionários vejam o problema de forma menos dogmática e, de certa modo, ingênua.
É muito fácil propor reformas a partir da declaração de princípios ideológicos. Porém, quando se lida com recursos públicos vale reiterar a máxima de que não existe almoço grátis. Por isso é cada vez mais necessário definir prioridades. Certamente, seria mais pertinente garantir o básico com qualidade para nossos jovens. A reforma proposta pelo Ministério da Educação é conservadora e atrelada aos interesses coorporativos presentes na sociedade brasileira, que sempre privilegiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Aliás, exatamente o contrário do pregou o Partido dos Trabalhadores em seus mais de vinte anos militando na oposição.

Observando os dados de fluxo, vemos que ainda é forte o funil educacional em todo o Brasil. Hoje, estima-se que de cada 100 alunos que ingressam na 1a série do ensino fundamental cerca de 56 o concluem e não mais que 30 concluem o nível médio. Ao se olhar quem está se perdendo neste funil, constata-se o óbvio: são os mais pobres das regiões mais pobres. Aqueles que mais precisam do setor público e não contam com devolução do imposto de renda para subsidiar mensalidades de escolas particulares para seus filhos. É preciso uma verdadeira revolução das prioridades no setor educacional brasileiro para privilegiar os mais pobres, com uma educação básica de qualidade, capaz de propiciar uma verdadeira igualdade de oportunidades para o povo deste País.

O Brasil tem futuro?

A pergunta que eu mais ouço, e que aparece nas mensagens que recebo, depois da explosão de violência em São Paulo, é se o Brasil tem algum futuro, ou se as coisas vão continuar piorando cada vez mais. Eu prefiro pensar que tem futuro sim, mas que, no melhor dos casos, será um processo longo e difícil, e sujeito a recaídas. Já poderemos ficar contentes se a economia continuar estável e crescendo, ainda que pouco; se a violência cotidiana for se reduzindo, como vinha acontecendo em São Paulo e está acontecendo em cidades aonde existe uma política inteligente de segurança pública, como parece ocorrer em Belo Horizonte; e se a combinação de populismo e oportunismo não terminar por inviabilizar de vez o governo federal e muitos governos estaduais e locais, como já ocorreu, na prática, no Estado do Rio de Janeiro. Temos chance, mas também existe a possibilidade de que tudo dê para trás: as coisas sempre podem ficar piores do que a gente pensa.

É o máximo de otimismo que consigo ter no momento…

Carlos Henrique Araújo e Nildo Luzio: Como (não) formar os professores

No Brasil se gasta muito em cursos de formação para professores, mas ninguém sabe se estes cursos realmente servem para melhorar a qualidade da educação que as crianças recebem. Carlos Henrique Araujo, hoje secretário executivo da ONG Missão Criança, e ex-diretor de avaliação da educação básica do INEP, escreveu o seguinte texto a respeito, com a colaboração de Nildo Luzio:

Formação de professores e qualidade da educação

Bons professores, em geral, precisam ser bem formados. Excluindo-se aqueles que são autodidatas ou geniais, a ampla maioria dos profissionais precisa receber uma formação estruturada, formalizada e séria para que a educação básica ganhe em qualidade de aprendizado.

Muito se tem discutido sobre a denominada formação continuada. De fato, se a entendermos como a necessária atualização dos docentes frente aos avanços do conhecimento, no campo da tecnologia educacional, dos métodos didáticos e em outras áreas, concluiremos que a oportunização da formação continuada é útil e necessária. Contudo, parece que no Brasil, dos últimos anos, a formação continuada foi erigida como a solução para os males de origem, ou seja, a má formação inicial.

Resolver os problemas estruturais da formação inicial garantirá resultados muito mais efetivos para transformação da educação básica no Brasil do que a versão da formação continuada para tapar buracos.

Na formação inicial, do Brasil, são cometidos alguns pecados mortais. Os currículos são muito generalistas e teóricos e pouco voltados às necessidades com as quais os profissionais irão lidar em sua prática docente. Em geral, o futuro professor tem poucas horas de prática docente, pouco contato com a realidade de sala de aula, pouco ou nenhuma interação com os docentes mais experientes. Enfim, o jovem professor pouco ou quase nada se dedica a fazer, na prática, aquilo que lhe será exigido no cotidiano de uma sala de aula.

Muitas vezes, os futuros docentes passam pela licenciatura sem conhecer as orientações curriculares nacionais e os currículos do Estado ou município onde irá trabalhar. Muitos não têm a oportunidade de conhecer a fundo os livros didáticos de sua área, especialmente aqueles adquiridos pelo Ministério da Educação e distribuídos nas escolas públicas. Não se pode desprezar, como é em geral o que acontece, o necessário conhecimento do licenciado sobre as opções existentes e, ainda mais, sobre as formas de potencializar o uso do livro didático na rotina pedagógica.

O Ministério da Educação, no governo anterior e no atual, têm mantido programas de formação continuada de professores. A efetividade disso ainda não foi avaliada de forma consistente. Algumas análises desenvolvidas a partir dos dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) mostram que as diferenças no rendimento dos alunos não são significativas, quando se considera a participação dos professores em projetos de formação continuada.

A realidade mostra ser urgente uma atuação mais estratégica por parte dos dirigentes de educação na questão da formação do profissional de ensino. Como, por exemplo, mudar as diretrizes para formação de professores e induzir as mudanças nas Universidades Federais para alcançar o efeito de demonstração para as instituições particulares, estas, atualmente, responsáveis por 80% dos estudantes de licenciatura e pedagogia.

As instituições formadoras devem se aproximar das redes de ensino para que o professor deixe de ter um “estágio” de fachada e ganhe uma prática efetiva. Por outro lado, deve-se enfrentar as idiossincrasias acadêmicas e comprometer as instituições universitárias com as necessidades mais prementes da educação básica.

Já não é mais surpresa para os formadores de opinião de que a qualidade da educação básica no Brasil deixa muito a desejar. São muitos os problemas e de gravidade alarmante. A taxa de repetência, a distorção idade-série, o número de não concluintes do ensino fundamental são altíssimos e os níveis de aprendizado são medíocres. E isto se liga diretamente à questão da formação dos professores. Neste campo, a gestão deve ser orientada por resultados. Essa orientação por resultados é condição da eficiência, sobretudo no setor público, quando se lida com recursos retirados da sociedade que afinal é quem os produz. O País está necessitando urgentemente de professores capazes de promoverem o desenvolvimento das potencialidades dos alunos, pelo menos no que diz respeito a ler, a escrever e a contar.

George Zarur: aprendizes de feiticeiro

George de Cerqueira Leite Zarur, consultor legislativo da área de educação da Câmara dos Deputados, publicou no O Globo de 11 de maio de 2006 o seguinte artigo sobre o tema das políticas raciais:

Estamos todos sentindo que o Brasil em que vivemos é muito pior do que o Brasil de algumas décadas atrás.

Há muitos séculos, estamos construindo nossa identidade na esperança de uma sociedade onde, conforme todos já ouvimos, em algum momento, “será construída uma nova civilização em que serão derrubadas as barreiras de raça, religião e classe”. Vivemos o desenvolvimento econômico contínuo por mais de setenta anos e nossa pele morena era motivo de orgulho. Havia e há muito preconceito, mas a miscigenação era entendida como nossa grande vantagem sobre os Estados Unidos e os países anglo-saxões, que discriminam ostensivamente por raça.

Embora a segregação legal tenha sido abolida nos Estados Unidos, ela continua central à cultura norte-americana, como demonstra um aspecto absolutamente crítico, o residencial, pois os negros vivem em guetos, em sua enorme maioria. São segregados por premissa, pois não é importante para os anglo-saxões classificar alguém como “mulato”. A oposição é entre “brancos” e “não brancos”. A idéia de “pureza da raça” branca é muito forte, uma vez que basta ter uma gota de “sangue negro”, para alguém ser classificado como negro. Ser negro nos Estados Unidos, é como ser portador de uma doença genética.

O Brasil está negando sua identidade, ao abandonar a miscigenação como valor central à sua cultura. Há diferentes fatores atuando neste sentido. A freada de trinta anos no desenvolvimento econômico é um deles. Outro é o desespero com a corrupção e os caminhos da política. Nossa auto-estima está no chão. Assim, em vez de resgatar nossa identidade de nação brasileira – barco do qual somos todos passageiros e tripulantes – estão querendo acabar com o nosso projeto cultural de muitos séculos e construir nações separadas de negros e de brancos, como acontece nos Estados Unidos. O direito à diferença, eixo central da democracia, é confundido com a associação espúria entre raça e cultura.

Um outro fator que contribui para a importação do modelo norte-americano de racismo é o custo zero de algumas “políticas públicas”. Um caso característico é o das cotas para negros, hoje abolidas nas universidades americanas, propostas no Brasil em substituição a medidas realmente eficazes, como a melhoria da qualidade da educação básica. Não é o orçamento da União ou o das universidades que paga a conta das cotas. É a classe média supostamente branca que cede as vagas à classe média supostamente negra; ou o favelado sertanejo nordestino, considerado “branco”, que as cede ao seu vizinho; ou o irmão mais claro, classificado como “branco” que as cede ao irmão mais escuro, considerado “pardo”. Como no Brasil, a classificação ainda é pela cor da pele e não pelo “sangue” (idéia que estão tentando disseminar), há na mesma família irmãos “pardos” e “brancos”. Os primeiros têm direito a cotas e os outros, não.

Pais e mães de filhos mais ou menos morenos, sabemos que será muito difícil explicar-lhes porque só um irmão tem direito a cotas nas universidades. Como será muito difícil explicar ao imigrante nordestino a razão pela qual seu vizinho tem direito a cotas e ele não. E assim, toda a sociedade será fatiada por um novo critério, o da contaminadora gota de sangue negro. Daí, o aparecimento de comitês de identificação racial ou de leis visando a imposição de documentos raciais, pois, com exceção das pessoas de pele muito escura, ninguém sabe, com certeza, o que é um “negro” no Brasil. E para complicar, há ainda, a chamada “raça social”, pois o jogador Ronaldo se considera “branco”, como os demais mestiços ricos se percebem. Mesmo o critério americano da “gota de sangue” seria de impossível aplicação no Brasil, sem o apagamento do índio do nosso passado – um verdadeiro etnocídio simbólico – uma vez que nossa cor morena
se deve tanto a negros como a índios.

O sistema de classificação brasileiro, onde se reconhece pardos, mulatos, sararás, cafuzos, mamelucos, etc. dissipa o conflito, por sua ambigüidade. O sistema norte-americano, ao opor de forma absoluta, “brancos” a “não brancos” estimula o conflito. Fiz pesquisa em um gueto negro nos Estados Unidos. Vivi, também, em uma comunidade branca sulista norte-americana. Nunca imaginei que pudesse existir tanto ódio ou, pelo menos, tanta indiferença, por razões raciais!

Diferenças étnicas causam os mais horrorosos conflitos e guerras pelo mundo afora. Não é razoável que aprendizes de feiticeiro os tragam para o Brasil!

Fabio Waltenberg: Teorias de justiça distributiva e as cotas nas universidades brasileiras

Fábio Waltenberg, doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, envia a seguinte contribuição:

Creio ser importante subdividir a discussão sobre as cotas nas universidades brasileiras em três questões distintas:

(a) As cotas são justas?
(b) As cotas são oportunas? (Benefícios superam custos?)
(c) As cotas são implementáveis?

Evidentemente, há interseções entre essas três questões, mas acredito que a discussão ganhe mais clareza ao ser organizada desta maneira. Por exemplo, mesmo que tivéssemos boas razões para responder positivamente às questões (a) e (b), uma resposta negativa à questão (c) poderia nos levar a tomar posição contra a adoção das cotas. Por outro lado, poderíamos responder positivamente a (b) e (c) mas discordar de (a). Em muitos textos tratando sobre as cotas, me parece haver uma confusão, na argumentação, entre as respostas dadas pelos autores a cada uma das questões.

Neste texto, trato brevemente da questão (a). Meu objetivo principal é apenas apresentar de que forma ela pode ser definida nos termos de uma teoria de justiça distributiva recente e importante. Não tenho a pretensão de respondê-la de maneira definitiva, e já adianto que minha resposta não passará de: “as cotas podem ser justas”. Dedico apenas algumas linhas às questões (b) e (c), não por serem menos importantes, mas por falta de espaço (e também de conhecimento mais aprofundado sobre o assunto).

(a) As cotas são justas?

Para responder à questão (a), isto é, para determinar se as cotas são justas ou não, me parece fundamental recorrer às teorias de justiça distributiva, área de pesquisa que se encontra na fronteira entre a economia normativa e a filosofia política, e que procura fornecer subsídios teóricos para fundamentar a repartição de direitos e obrigações entre os membros de uma sociedade, a partir de princípios éticos básicos. Posições normativas “puras” como a de utilitaristas (eficiência como valor primordial), libertaristas (liberdade) ou igualitaristas (igualdade), provavelmente levariam a prescrições que estariam em contradição com as “intuições morais” da maioria de nós. Indubitavelmente, a obra fundamental e divisor de águas é A theory of justice, de John Rawls (1971), que procurou dar um tratamento mais equilibrado aos princípios de liberdade, igualdade e eficiência. Abriram-se assim as portas para inúmeros desenvolvimentos dentro do que se costuma denominar igualitarismo liberal, entre os quais se destacam os trabalhos de: Michael Walzer, Jon Elster, Ronald Dworkin, Richard Arneson, Philippe Van Parijs, Amartya Sen, John Roemer e Marc Fleurbaey.

Evidentemente, o debate sobre as teorias de justiça distributiva continua ativo e acredito que dificilmente se poderá chegar a algo que se assemelhe a uma “teoria consensual”. Mas alguma convergência existe entre as teorias e, no meu entender, dado o estado-da-arte atual, o trabalho de Roemer (1998), Equality of opportunity, é particularmente interessante. Ele propõe um marco teórico que pretende ser filosoficamente sólido (importantes objeções às contribuições anteriores foram devidamente levadas em conta), mas que também seja pragmático e aplicável a problemas reais. Assim como outros autores, Roemer parte da idéia de que as “vantagens sociais” (ex: renda ou nível de educação) que os indivíduos possuem não devem depender de suas circunstâncias relevantes, isto é, daquilo que não podem controlar e que tenha alguma relevância na determinação de suas chances futuras (ex: terem nascido pobres). Ao mesmo tempo, essas vantagens ou desvantagens sociais devem ser sensíveis a variações no nível de exercício de responsabilidade por parte dos indivíduos (ex: é justo que, em circunstâncias semelhantes, receba uma renda maior quem trabalhe mais duro). Ciente de que a fronteira entre o que é causado por circunstâncias e o que o é por responsabilidade nunca poderá ser traçada de forma inequívoca, Roemer propõe uma solução pragmática que consiste, em primeiro lugar, em dividir a população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo (ex: mulheres pobres, homens pobres, mulheres ricas, homens ricos). A partir dessa divisão, as políticas públicas devem ser desenhadas de forma a retribuir de forma semelhante o esforço feito por indivíduos que se encontram na mesma posição dentro da distribuição de resultados (ex: desempenho no vestibular) de cada tipo. Por exemplo, se poderia determinar que pelo menos os 5 ou 10% melhores de cada tipo tivessem vagas asseguradas na universidade. Dessa forma, certos tipos (ex: mulheres e homens pobres) seriam beneficiados pela redistribuição da “vantagem social” que é estudar na universidade. Esse “presente” que recebem na forma dessa redistribuição se justifica pelo fato de que, anteriormente, foram os outros tipos os que receberam (arbitrariamente) outros “presentes”: por exemplo, nasceram ricos e receberam mais auxílio familiar. Resumindo, no interior de cada tipo, a meritocracia reina. Porém, entre tipos, há espaço para redistribuição/compensação.

Roemer não defende esta ou aquela definição de tipos. Ele procura apresentar sua solução de forma geral, e diz que em cada sociedade e para cada problema de alocação de recursos escassos, a definição de tipos poderá ser diferente. O que é pertinente em um país pode não ser em outro (ex: o gênero pode ser importante na definição de tipos no Afeganistão, mas provavelmente terá menos relevância na Suécia); determinada definição de tipos pode ser pertinente para a definição de alocação de recursos na área da saúde, mas pode não fazer sentido em educação. Além disso, apesar de reconhecer que certas “vantagens sociais” decorrem de diferenças em termos de circunstâncias, determinada sociedade pode decidir não compensar as circunstâncias totalmente, pelas mais diversas razões (eficiência, por exemplo). Vale mencionar dois casos extremos e interessantes. O primeiro ocorre quando, em um dado contexto, as diferenças de circunstâncias entre indivíduos não são suficientemente fortes. Conclui-se que há apenas um tipo na sociedade (ex: brasileiros) e que, portanto, não deve haver compensação alguma. O outro extremo é acreditar que as circunstâncias determinam, em 100%, o acesso a determinada vantagem social. Nesse caso, cada indivíduo seria considerado como sendo um tipo, e a regra de alocação de recursos seria uma compensação total, isto é, o objetivo da política pública seria francamente igualitarista.

Nos termos da teoria de Roemer, para se avaliar a política de reserva de vagas nas universidades brasileiras, a questão a responder é se é legítimo retribuir o esforço dos melhores alunos negros e/ou dos melhores alunos provenientes de escola pública, reservando-lhes vagas nas universidades públicas, sendo necessário, para isso, retirar algumas vagas de não-negros e/ou de alunos provenientes de escola privada. Não é possível discutir profundamente aqui essa questão (fundamental no debate das cotas), nem tenho resposta clara para ela. Proponho apenas introduzir o assunto, nos marcos definidos por Roemer.

Em qualquer país do mundo, a cor da pele é certamente uma circunstância (não está ao alcance do indivíduo escolhê-la). Mas a cor da pele é uma circunstância relevante, isto é, ela influencia o resultado dos alunos no vestibular? Certamente não tem influência direta, mas sim indireta. O negro no Brasil enfrenta dificuldades de diversas naturezas (ex: discrimação em diversas instâncias), o que justifica, para alguns, o uso da cor da pele na definição dos tipos à la Roemer. Quanto a estudar em escola pública, embora formalmente seja uma escolha, no Brasil pode ser tomado como uma circunstância (não está ao alcance de pais de alunos pobres escolher outra coisa). A relação de causa e efeito entre freqüentar escola pública e ter baixa probabilidade de passar no vestibular é um fato. O argumento favorável ao uso da característica “negros” na definição de tipos poderia repousar sobre a idéia de que uma política de cotas decorrente de uma definição de tipos meramente baseada no fator “escola pública” não seria suficiente para dar a muitos alunos negros a oportunidade de chegar à universidade. Isso seria verdadeiro se, dentro da distribuição de desempenho no vestibular do tipo “alunos provenientes da escola pública”, os negros se posicionassem mal, de forma tal que poucos chegariam a fazer parte dos 5 ou 10% melhores – em outras palavras, se os negros fossem os mais desfavorecidos entre os desfavorecidos (penso já ter lido evidências a esse respeito). Se isto for verdade, e se estivermos convencidos de que ser negro afeta as chances de se passar no vestibular, então há razões para se defender uma definição de tipos que leve em conta ambas as características: cor da pele e escola pública.

O argumento segundo o qual não se deve implementar uma política de cotas, mas sim melhorar a qualidade do ensino básico pode ser entendido como uma busca de um ideal de igualdade de oportunidades nos primeiros estágios do processo educativo, de tal forma que, quando chegasse o momento do vestibular, já não fosse necessário (nem legítimo) dividir a sociedade em tipos – todos seriam do tipo “brasileiros”. Em tese, o argumento faz sentido, mas o que fazer enquanto não houver igualdade de oportunidades nos primeiros estágios e enquanto a perspectiva de que seja atingida no curto prazo for mínima? Talvez as cotas sejam um bom caminho, ao menos durante alguns anos (décadas, talvez).

Como disse acima, meu objetivo aqui é essencialmente o de apresentar um marco que me parece adequado para se buscarem respostas à questão (a) e não tenho a pretensão (nem condições) de dar uma resposta definitiva. Nao obstante, a meu ver, com base na teoria de Roemer, uma política de cotas com tipos definidos em função da cor da pele e do tipo de escola em que estudaram pode ser considerada justa no Brasil, por constituir uma forma de compensação legítima de fatores pelas quais os indivíduos não são responsáveis, e que têm influência – direta ou indireta – sobre o acesso a uma “vantagem social” importante (acesso ao ensino superior).

(b) As cotas são oportunas? Seus benefícios superam seus custos?

Independentemente da resposta que cada um de nós queira dar à questão (a) podemos abordar as questões (b) ou (c). Com relação a (b) – as cotas são oportunas? – creio que a busca da resposta terá como ingredientes uma boa dose de raciocínio hipotético-dedutivo, combinada a uma análise (inclusive econométrica) das experiências de outros países (o que deu certo? o que não deu?). Creio que os textos que temos lido recentemente no blog do Simon Schwartzman (Fry & Maggie, Maio & Ventura, Militão, S. Schwartzman, L. F. Schwartzman etc.) contêm análises extremamente interessantes e ressaltam pontos importantíssimos, tais como os possíveis problemas jurídicos decorrentes das cotas (ex: a introdução na Constituição da distinção entre “raças”). Outro custo importante a ser levado em conta é o possível estigma que os negros podem ter que carregar, isto é, os custos psicológicos das cotas (ex: beneficiados feridos em seu amor-próprio), com eventuais prejuízos materiais (ex: se o mercado passar a considerar que um diplomado negro vale menos do que um diplomado não-negro). Questões de eficiência não devem ser esquecidas: uma compensação à la Roemer que seja ambiciosa demais poderia levar a uma piora na qualidade média dos estudantes (é claro que pode também não levar – trata-se de uma questão empírica para a qual não temos resposta). Também é preciso levar em conta os interesses dos prejudicados pelas cotas: há um certo grau de injustiça caso se mudem radicalmente as “regras do jogo” (isto é, as regras do processo educativo), depois de “começado o jogo”.

Esses custos devem ser comparados aos potenciais benefícios proporcionados aos contemplados pelas cotas, bem como à sociedade como um todo, a saber: benefícios imediatos (aspecto “consumo” da educação) e futuros (aspecto “investimento” da educação) usufruídos pelos cotistas; a revelação de talentos que não floresceriam na ausência das cotas (argumento do economista clássico Alfred Marshall em prol de “instruir as massas” na Inglaterra do século XIX); os benefícios para gerações futuras de cotistas; os efeitos de incentivo positivos para os grupos que nem mesmo remotamente consideravam possível chegar à universidade; o valor simbólico da medida (reconhecimento das desvantagens dos negros na sociedade brasileira e implementação de medida compensatória).

Mais uma vez, a minha resposta é a de que as cotas podem ser oportunas no Brasil, em grande parte em função do desenho institucional que tomarem, o que nos leva a discutir o ponto (c).

(c) As cotas são implementáveis?

Uma vez que a lei garantindo as cotas será submetida ao Congresso Nacional em breve, a questão (c) ganha uma grande relevância neste momento, qualquer que seja a resposta que cada um de nós gostaria de dar a (a) e (b). As cotas são implementáveis? Uma questão relacionada é: deveriam ser implementadas na forma em que foram concebidas no anteprojeto de lei ou é possível aprimorar o mecanismo para evitar certos problemas?

As dificuldades envolvidas na obtenção de uma informação podem inviabilizar o uso de determinada característica na definição dos tipos. Como dito acima, a solução de Roemer requer uma divisão da população em tipos relevantes, identificáveis a baixo custo e não facilmente manipuláveis pelo próprio indivíduo. Ainda que possa ser justo dar cotas com base na cor da pela, em muitos casos não é possível verificar essa informação de maneira crível a um baixo custo (aliás, tal custo pode ser considerado como sendo infinito). Identificar quem estudou em escola pública tem um custo de verificação menor (ainda que não seja zero).

Os imperativos de eqüidade subjacentes ao mecanismo proposto por Roemer não precisam ser tomados ao pé da letra, e podem muito bem ser combinados com considerações de outras ordens, o que é freqüentemente o caso quando se passa da etapa de definição de regras de alocação de recursos para a etapa de implementação de tais regras. O alto custo de identificação de uma característica em um indivíduo certamente dificulta a implementação das cotas quando se quer que a cor da pele faça parte da definição de tipos, mas não a inviabilizam. Um pouco de “engenharia institucional” é necessária, por razões de implementação (c), mas também para se tentar minimizar os custos potenciais e maximizar os benefícios potenciais, ambos listados acima (b).

O que tenho em mente quando digo “engenharia institucional” são idéias como a que foi proposta por Luisa Farah Schwartzman no blog de Simon Schwartzman (15/4/2006). Ela propõe, em lugar das cotas, um sistema de metas em que “marcar a cor não teria conseqüência individual” (fundamental, a meu ver), em que as universidades teriam incentivos para acompanhar os alunos ao longo de toda a graduação, e que dá autonomia às universidades para ajustarem objetivos gerais da política (definidos pelo governo ou ministério) a contextos e objetivos particulares (de cada universidade). A proposta que tenho esboçado seria de “cotas moderadas, com focalização geográfica, acompanhada de outras políticas educativas (ex: cotas também para ensino básico)”.

****

Gostaria de concluir respondendo a uma pergunta que tem sido uma constante nos textos tratando sobre as cotas: “que Brasil queremos?”.

Entre os objetivos da “Cátedra Hoover”, instituto de estudos em ética econômica e social da Université Catholique de Louvain, na Bélgica, encontra-se o seguinte: “Agir a serviço de nossos ideias. Sem cinismo, nem ingenuidade. Sem fanatismo, nem fatalismo.”

Que Brasil queremos? Um país em que direitos e obrigações, vantagens e desvantagens sociais, sejam constantemente desafiados, redesenhados e redefinidos, em função daquilo que, coletivamente, a cada momento, nos parecer mais pertinente, justo e adequado, com base em fatos, mas também em diferentes critérios normativos, e como resultado de debates em que distintos pontos de vista sejam avaliados de maneira serena. Em suma, em que diferentes observadores sociais possam agir a serviço de seus ideais, sem cinismo, nem ingenuidade; sem fanatismo, nem fatalismo. O debate sobre as cotas é uma excelente oportunidade para termos uma discussão normativa desse gênero.

Algumas referências úteis:

1. Para uma introdução às teorias de justiça distributiva, um bom livro é Ethique économique et sociale, de C. Arnsperger e Ph. Van Parijs, infelizmente mal traduzido no Brasil . Outra opção é O que é uma sociedade justa?, de Ph. Van Parijs, mas temo que esteja esgotado. Um livro-texto muito bom, em francês, é o de Marc Fleurbaey (1996), Théories économiques de la justice, Paris : Economica. Um bom artigo introdutório é Amartya Sen (2000) “Social justice and the distribution of income”, chapter 1, In: Atkinson, A.B. and F. Bourguignon (eds) Handbook of income distribution, vol 1, Amsterdam: Elsevier.

2. Para teorias específicas, ver: John Rawls (1971) A theory of justice. Cambridge, MA: Harvard University Press; John Roemer (1998) Equality of opportunity Cambridge, MA: Harvard University Press; Philippe Van Parijs (1995) Real freedom for all. What (if anything) can justify capitalism?, Oxford: Oxford Political Theory; e o artigo de Marc Fleurbaey (1995) “Equal oportunity or equal social outcome?” Economics and Philosophy, vol. 11, pages 25-55.

3. Quanto à definição de justiça em educação, uma visão panorâmica e ainda preliminar foi escrita no início do meu doutorado.  Outro artigo, mais pessoal e, espero, mais profundo e completo, está em preparação.

4. No que se refere a aplicações da teoria de Roemer à educação, uma referência básica é um artigo do próprio Roemer em co-autoria com Julian Betts: “Equalizing opportunity through educational finance reform”. Um dos resultados mostra que uma redistribuição de recursos com base em tipos definidos apenas em termos de renda não melhora muito a situação dos negros americanos.

5.  Vale notar que, neste artigo, meu co-autor, Prof. Vincent Vandenberghe, e eu não usamos “cor da pele” na definição dos tipos, mas sim “educação das mães dos alunos” (cinco tipos).

——————————————————–

Fábio D. Waltenberg é mestre em economia pela Universidade de São Paulo e doutorando em economia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. O título (provisório) de sua tese é: “Normative and quantitative analysis of educational inequalities”. Contato

Milu Villela: o remédio necessário

Milú Villela, entre outras coisas Presidente do Faça Parte – Instituto Brasil Voluntário, escreveu recentemente o seguinte artigo, divulgado pelo ADITAL – Notícias da América Latina e Caribe:

O estudo divulgado pela Unesco que mostra o Brasil como um dos países com maior índice de repetência no ensino fundamental no mundo não poderia chegar em melhor hora. O indicador, que nos coloca ao lado de Burundi, Moçambique e Camboja, é o alerta que faltava para a corrida eleitoral que se avizinha.

Definitivamente, o problema está na arena. Não podemos mais suportar ver a educação colocada em segundo plano no debate político, como ocorre há décadas. A questão, se não quisermos continuar perdendo competitividade num cenário global em que o conhecimento é fator decisivo, tem necessariamente que ocupar o centro das preocupações daqueles que postulam comandar o país nos próximos quatro anos e no futuro de longo prazo.

É bom começarmos a nos debruçar sobre os dilemas do ensino com a mesma voracidade com que nos entregamos ao exame de temas como juros, câmbio, déficit público e outros assuntos correlatos de economia, que têm lugar certo no altar dos políticos, da mídia e dos agentes de mercado toda vez que nos colocamos diante do processo de escolha de nossos dirigentes.

Mais que nunca temos que ter presente que só um sistema educacional forte, alinhado com as demandas contemporâneas, pode garantir a construção de um modelo sustentável de crescimento e de melhoria das condições sociais. Países como Coréia do Sul, Irlanda, Índia e o nosso vizinho Chile já nos deram lições suficientes sobre o assunto.

O caso da Coréia do Sul, que chama tanto a atenção da mídia por seus resultados extraordinários, dá bem a dimensão do que a educação é capaz de fazer por um país. Há 40 anos, o PIB per capita daquele país era a metade do nosso. Hoje é o dobro. Não é de admirar. A Coréia do Sul elegeu a educação como prioridade estratégica, investiu pesado na formação de professores, ampliou as horas de estudo, informatizou suas escolas, tudo com o objetivo de fazer o país crescer e se tornar um grande exportador de produtos acabados.

Resultado: enquanto de 1996 a 2005, o PIB per capta cresceu na média 3,7% ao ano entre os coreanos, o do Brasil não passou perto disso. Ficou em torno de 0,7%. A educação não respondeu sozinha pelo fenômeno, é claro. Mas não há hoje quem conteste que teve papel decisivo na formação do indicador. O caso da repetência levantado pela Unesco é apenas um entre os muitos indicadores dramáticos de nossa educação que teimam em nos afastar cada vez mais de realidades semelhantes à da Coréia do Sul.

Outros problemas estruturais, e tão devastadores quanto a repetência, resistem no universo da educação brasileira. O analfabetismo funcional é um deles. Estudo feito em 2005 pelo Instituto Paulo Montenegro, do grupo Ibope, revela que apenas 26% da população brasileira tem o domínio pleno das habilidades de leitura e escrita. O restante da população está em estágio de analfabetismo (7%), de alfabetização rudimentar (30%) ou alfabetização básica (38%). Ou seja, a maioria da população brasileira quando lê e escreve o faz de forma precária, o que debilita a capacidade de avançar profissionalmente e conquistar melhores condições de vida.

A evasão escolar é outro fator negativo da vida escolar no país. Apenas 54 de cada 100 alunos que entram no sistema de ensino chegam a concluir a oitava série. Pesquisa realizada recentemente pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas mostra bem o resultado deste fenômeno: 27% dos jovens de 15 a 24 anos estão sem estudo e trabalho. Ou seja, boa parte dos brasileiros em idade de se integrar ao mercado não ultrapassa o estágio do ensino fundamental e não consegue trabalho por falta de qualificação. Trata-se de um problema de proporções homéricas num país de 186 milhões de habitantes, dos quais 54 milhões em idade escolar.

O fato a registrar, entretanto, é singelo e pode ser dito em poucas palavras; não podemos conviver mais com a falta de um projeto estruturado para a educação. Os candidatos que não mostrarem com clareza e coerência o que irão fazer para transformar a educação no Brasil não merecem o nosso voto. A redenção econômica e social que tanto almejamos só se concretizará se colocarmos a educação como prioridade nacional.

Faz-se necessário, para não dizer obrigatório, que os pretendentes ao Planalto e toda a nação brasileira assumam o compromisso de elevar a educação ao posto de principal instrumento de nossas políticas públicas. A educação revoluciona países, elimina a pobreza e faz o conjunto da sociedade prosperar. É o remédio que nos falta.

Barretada com chapéu alheio

Jacques Schwartzman envia a seguinte nota, que me faz lembrar as leis que são aprovadas periodicamente pela Camara de Vereadores do Rio de Janeiro para obrigar os shoppings a dar estacionamento de graça a seus clientes):

O Senado acabou de aprovar projeto de lei que obriga as universidades particulares a concederem bolsas de estudo a 15% de seus alunos. Para financiar o programa, as mensalidades teriam um”pequeno aumento”. Isto é que se chama fazer caridade com o chapeu dos outros, sem atentar para as suas implicações : Há espaço para aumento das mensalidades? Isto não trará uma diminuição da demanda? Como fica a concorrência entre privadas com e sem fins lucrativos? Como fica a atual lei ( 9870 de 1999) que fixa as regras de reajuste de mensalidades? Finalmente, é aceitável origar empresas privadas a direcionarem seus gastos, como se fossem um imposto?

WP Twitter Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Wordpress Social Share Plugin powered by Ultimatelysocial