Propostas para uma nova pós-graduação

Apresentação preparada para o seminário da SBPC da série Projetos para um Brasil Novo, 6 de abril de 2022

A pós-graduação brasileira foi criada nas décadas de 1960-70, quando o Brasil tinha somente cerca de 300 mil estudantes de nível superior. Hoje, são cerca de 10 milhões, entre estudantes de graduação, especialização e pós-graduação. Já é tempo de revisar os pressupostos de mais de meio século atrás e organizar a pós-graduação brasileira em novas bases (para uma análise detalhada da pós-graduação brasileira e sua relação com a área de pesquisa, ver S. Schwartzman, “Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?” Estudos Avançados 36(14): 227-254, 2022)

O sistema inicial

O sistema inicial se formou a partir de dois impulsos, a reforma universitária de 1968, liderada pelo então Conselho Federal de Educação, e os investimentos em ciência e tecnologia dos anos 70. A reforma de 1968 buscou adotar, para o Brasil, o modelo norte-americano de universidade de pesquisa, baseada em institutos e departamentos, em substituição ao tradicional sistema de faculdades e cátedras. Para isto, era necessário que os professores universitários tivessem formação em nível de doutorado e desenvolvessem atividades de pesquisa, e a CAPES coordenou as atividades e investimentos para a qualificação acadêmica dos professores. Nos anos 70 o Ministério do Planejamento, através da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP – e do renovado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – começou a investir em ciência e tecnologia, e parte substancial destes investimentos foi para os novos programas de pós-graduação que estavam sendo criados nas universidades públicas. Como o Brasil não tinha, à época, massa crítica suficiente para formar doutores em quantidade, os programas de pós-graduação se organizaram inicialmente como mestrados, e a CAPES criou um sistema de validação e avaliação por pares dos programas, para garantir sua qualidade, em termos das pesquisas que realizavam.

O sistema de pós-graduação dos anos 60-70

As transformações dos últimos 60 anos

A reforma universitária de 1968 não tomou em conta a massificação do ensino superior que começaria a ganhar impulso já na década de 70. Se os reformadores tivessem examinado com mais cuidado o sistema norte-americano, teriam visto que as “research universities” que tentaram copiar eram somente uma parte pequena de um grande sistema já massificado de educação superior que tinha em sua base o antigo sistema dos “land-grant” colleges, do século 19, e os Community Colleges espalhados por todo o país.  

No Brasil, na falta de uma política pública adequada para absorver a crescente demanda por educação superior, ela foi absorvida inicialmente pelo setor privado.  O setor público também se expandiu, ainda que mais lentamente, e o resultado foi a criação de um número crescente de instituições públicas que, legalmente, obedeciam ao formato e às regras gerais das universidades de pesquisa (titulação de doutorado para os professores, regime de tempo integral etc.) mas, na prática, eram essencialmente instituições de ensino.  A massificação da educação superior levou também a uma busca por maior qualificação por muitas pessoas que haviam obtido o diploma universitário, mas que buscavam agora se diferenciar no mercado de trabalho. Estas pessoas buscavam, quando podiam, entrar nos cursos de pós-graduação das universidades públicas, que, além de serem gratuitos, ainda podiam proporcionar bolsas de estudo. Como o acesso a estes cursos era limitado, criou-se um grande mercado privado e não regulado de cursos de especialização, sobretudo, mas não exclusivamente, nas áreas das profissões sociais.  

O resultado deste processo foi que a pós-graduação, que inicialmente era vista como unitária, passou a se dividir, informalmente, conforme três demandas distintas, a da formação de pesquisadores propriamente ditos, a de titulação para as carreiras universitárias, e a de qualificação adicional para o mercado de trabalho. Esta diferenciação da demanda impactou a pós-graduação de diferentes maneiras. No setor regulado, controlado pela CAPES (conhecido como “latu senso”), muitas pessoas entraram nos mestrados buscando melhor qualificação para o mercado de trabalho, e com isto os mestrados deixaram de ter a função inicial de cursos preparatórios para o doutorado. Segundo,  os doutorados passaram a admitir pessoas mais velhas interessadas em maior titulação para suas carreiras docentes, e não, necessariamente, na formação para a pesquisa científica.  A pesquisa de mais alto nível ficou concentrada em um número relativamente pequeno de instituições, e a perspectiva de que as demais eventualmente evoluiriam para o nível 7 da CAPES, considerado como de padrão internacional, deixou de existir.

A expansão da pós-graduação acompanhou, de maneira geral, a expansão do ensino superior brasileiro, caracterizado pelo predomínio numérico das áreas das profissões sociais, saúde e educação.  Em 2018, havia no Brasil 378 mil estudantes de pós-graduação estricto senso, dos quais 35% em programas de doutorado, com predomínio para estas áreas. O Ministério da Educação não toma conhecimento nem tem informações sobre o setor não regulado, mas a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD) mostra que setor é, atualmente, três vezes maior do que o regulado, com forte predomínio das instituições privadas.

Fonte: Pnad Continua, 2021
Fonte: Plataforma Sucupira

Há um forte consenso, internacionalmente, que os anos de juventude são os mais produtivos e criativos na área de pesquisa e inovação, sobretudo nas ciências exatas e naturais. Uma pessoa que entra na universidade aos 18 anos e completa o bacharelado aos 22 pode dedicar os próximos 4 a 6 anos a um doutorado e iniciar sua vida profissional antes dos 30. Para quem busca, no entanto, uma titulação, e não tem por objetivo seguir uma carreira de pesquisador, a pós-graduação pode vir mais tarde. A distribuição de idade dos pós-graduados brasileiros mostra que grande parte deles, sobretudo nas ciências sociais e humanas, se formam bem mais velhos.

O quadro abaixo resume o panorama atual da pós-graduação brasileira, com as diferentes demandas existentes e os tipos de programas que as atendem:

Implicações e recomendações

Formato institucional

É evidente que o formato institucional criado na década de 70, regulado pela CAPES, que teve papel importante do desenvolvimento da pós-graduação e pesquisa brasileira ao longo do tempo, não é mais adequado, e precisa ser revisto. Nenhum país moderno que tenha um sistema de pós-graduação e pesquisa desenvolvido tem um sistema tão rígido e regulado. Nos últimos anos, a CAPES tem buscado se aperfeiçoar, reconhecendo a existência de mestrados e doutorados acadêmicos e profissionais, e buscando introduzir critérios de impacto e relevância, além dos de excelência acadêmica, nas suas avaliações. Mas não fez até aqui nenhum movimento de romper a rígida barreira que entre a pós-graduação regulada, estrito senso, e a não regulada.

A distinção entre programas acadêmicos e profissionais é insuficiente, e arbitrária, para classificar a grande variedade de cursos de pós-graduação que existem em toda parte. A Carnegie Classification nos Estados Unidos identifica 18 tipos diferentes de programas de pós-graduação, mas não é uma classificação formal, mas um simples agrupamento para fins estatísticos. Da mesma forma, é impossível adotar uma classificação consensual das áreas de conhecimento, e mais impossível ainda manter uma base de dados sobre publicações científicas rigidamente classificadas por sua qualidade ou relevância, como o se pretende com o sistema Qualis desenvolvido pela CAPES.

Equidade e Financiamento

Nos anos 70, quando a pesquisa e a pós-graduação praticamente não existiam no Brasil, fazia sentido criar um sistema de bolsas para estimular os alunos a buscar níveis mais altos de formação. Hoje, com quase quatrocentos mil alunos, isto não é mais viável, e é injustificável do ponto de vista da equidade social.

A estimativa é que metade dos estudantes de pós-graduação estricto senso recebe algum tipo de bolsa, e os cursos nas instituições públicas, a grande maioria, são gratuitos. Nos últimos anos os valores das bolsas têm depreciado, e o número de bolsas vem também diminuindo. Isso se deve à depressão econômica que o país sofre desde 2015, assim como à baixa prioridade que o atual governo dá à área de educação e ciência e tecnologia.  Mas também ao fato de que, com um sistema com estas dimensões, fica muito difícil proporcionar a estudantes adultos bolsas que lhes permitam se dedicar integralmente aos estudos e ainda recursos para equipamento, trabalho de campo e outras necessidades.

Do ponto de vista da equidade, os dados mostram que os estudantes de pós-graduação, tanto do setor regulado quanto do não regulado, têm um nível de renda muito superior ao dos estudantes universitários, que sobe ainda mais entre os já formados.

Para famílias com renda familiar per-capita de 4 mil reais, uma bolsa de doutorado, que hoje é próxima de 2 mil reais no sistema federal, é no máximo um complemento, e não é capaz de fazer com que os estudantes se dedicam integralmente à sua formação, se precisarem trabalhar.

Recomendações

O quadro abaixo resumas principais recomendações decorrentes desta análise:

A primeira recomendação é de abolir o atual sistema da CAPES, e substitui-lo por um sistema muito mais aberto, que devolva às instituições a responsabilidade pelos títulos que proporcionam. Como acontece no resto do mundo, os sistemas de avaliação e credenciamento devem se referir às instituições como um todo, não a cursos ou programas específicos.   A CAPES, e outras instituições de fomento, podem e devem continuar a apoiar os programas que considerem merecedores, fazendo para isto avaliações por pares e uso de indicadores, e os programas podem utilizar seus portfolios de produção cientifica e aplicada, assim como de inserção de seus formados no mercado de trabalho, para atrair alunos e valorizar os diplomas que emitem. Mas sem uma classificação formal rígida como a que existe hoje.  Uma mudança como esta pode ter implicações legais que precisariam ser analisadas, mas que não devem impedir uma transformação mais profunda.

A segunda recomendação vai no sentido de abandonar a distinção rígida entre mestrados estricto senso, regulados, e mestrados lato senso. Ela implica reconhecer que a função primordial dos mestrados é a qualificação profissional para o mercado de trabalho. Isto não significa que, tal como com os doutorados, as instituições não possam organizar mestrados com perfis diferentes. Mas, como regra geral, os estudantes destinados aos doutorados devem ser recrutados diretamente dos cursos de graduação, de tal forma que se comecem suas carreiras cedo.  

A terceira recomendação é concentrar os recursos públicos em áreas prioritárias, e em montantes significativos. Não faz sentido pulverizar recursos em bolsas de baixo valor para estudantes (e professores) em programas sem equipamentos, recursos operacionais e capacidade comprovada de pesquisa. Estudantes de mestrado em busca de maior qualificação profissional, em princípio, deveriam pagar por seus cursos, como já ocorre no setor privado. Existe a interpretação de que os cursos estricto senso das universidades públicas devem ser gratuitos, o que cria um privilégio para uma população que não o necessita, e discrimina contra os alunos dos programas do setor privado. Se não for possível mudar esta interpretação, deve ser possível fazer uma emenda constitucional que acabe com esta discriminação, que também afeta os cursos de graduação. Claro que, como ocorre no setor privado, devem existir mecanismos de crédito educativo diferido que garantam que os estudantes não sejam impedidos e estudar por falta de recursos, e possam pagar os custos no futuro, conforme os níveis de renda que obtenham.

Este seria então o cenário de uma nova pós-graduação: um sistema mais aberto e diversificado, com mais espaço para a inovação, em que as instituições decidem que programas querem desenvolver, e que possam competir por financiamento das agências de fomento, por convênios com o setor privado, e atrair os estudantes com o perfil apropriado para seus cursos.

De pastores e competências

(Uma versão resumida deste artigo foi publicada em O Estado de São Paulo, 8 de abril de 2021)

A revelação de que dois pastores amigos do presidente cobravam uns trocados para liberar recursos do Fundo Nacional de Educação, FNDE, tomou conta do noticiário durante dias e provocou a queda do Ministro.  Mas ninguém se deu ao trabalho de explicar o que é e como funciona este Fundo, que maneja 50 bilhões de reais ao ano. Uma outra notícia, a da aprovação, pelo Ministério, de uma desastrosa proposta de alteração do Exame Nacional do Ensino Médio, que pode afetar o futuro de milhões de jovens nos próximos anos, passou totalmente desapercebida. É assim que a educação brasileira não anda: gasta-se enorme energia discutindo os detalhes, e ignora-se as questões maiores.

O FNDE é uma autarquia que administra e repassa recursos obrigatórios para estados e municípios, como o Fundeb, o crédito educativo (FIES) e os recursos do salário educação, e executa um enorme varejo de programas, como os de livros didáticos, transporte escolar, dinheiro direto nas escolas, alimentação escolar, construção de prédios e outros. Vários bilhões são classificados como “transferências voluntárias”, e dependem, para ser liberados, do bom entendimento entre a direção do Fundo e os governadores e prefeitos. Não é à toa, e não é de hoje, que o Centrão sempre teve interesse em controlar o FNDE. Precisamos mesmo de uma autarquia como essa?  Não seria melhor, simplesmente, transferir os recursos da educação básica diretamente para as redes escolares carentes, em função de critérios de equidade e desempenho, ou inclui-los no FUNDEB, e tirá-los das mãos dos políticos? É isso que precisaria ser discutido.

Sobre o novo ENEM, o Conselho Nacional de Educação desenvolveu recentemente um projeto bastante razoável, alinhado com o que ocorre no resto do mundo, em que os alunos que se destinam a cursos superiores seriam avaliados conforme as grandes áreas de orientação profissional – tecnologia e engenharia, ciências biológicas e da saúde, profissões sociais, humanidades. Se bem executada, a proposta poderia ajudar a dar um rumo à reforma do ensino médio, que se arrasta há anos, já que as escolas seriam levadas a se organizar para preparar os estudantes para estes exames. No entanto, o Ministério da Educação preferiu adotar um projeto prolixo e inexequível que combina cinco “eixos estruturantes” (investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural, empreendedorismo) com quatro estranhos “itinerários formativos”:  linguagens, que vão do português à dança, passando por informática; ciências naturais, que vão da física à biologia molecular, mas excluem as engenharias; ciências sociais e humanas, que vão da sociologia à filosofia, mas excluem economia e direito; e matemática, que, Deus sabe porquê,  fica sozinha. Mais ainda, na proposta do MEC os estudantes teriam que escolher um bloco de dois itinerários, em quatro combinações das seis possíveis, o que forçaria as escolas de ensino médio a montar diferentes programas de estudo combinados. Teria sido uma oportunidade para o CNE publicar sua proposta, em um texto claro e simples, livre de jargão jurídico e pedagógico, firmando posição e abrindo um debate que seria de grande importância para quando tivermos um governo que queira fazer algo em relação a isso. Mas o CNE preferiu colocar sua proposta na gaveta e endossar a que veio da burocracia ministerial. Se é para fazer isto, para que mesmo serve este Conselho?

Tanto o parecer engavetado do CNE quanto o modelo aprovado pelo MEC preveem dois dias de prova, uma de tipo geral, para todos os candidatos, e outra específica, à escolha de cada um, em um conjunto de quatro. A ideia, nos dois casos, é que esta primeira prova avalie os conhecimentos ou competências próprias da parte geral do ensino médio, que, em princípio, seriam aquelas definidas pela base nacional curricular comum. No parecer do CNE havia a indicação de que esta prova deveria se aproximar do modelo do PISA, o exame da OECD utilizado internacionalmente para avaliar estudantes aos 15 anos, ao final do ensino fundamental, em competências gerais de leitura, matemática e ciências. Isto é muito diferente do que o MEC pretende fazer, que é avaliar todo o conteúdo desta parte geral. Na linguagem gongórica da apresentação divulgada pelo MEC, “as competências previstas na BNCC serão articuladas como um todo indissociável, fortalecendo as relações entre os saberes, conforme artigo 11 da Resolução do CNE nº 3, de 21 de dezembro de 2018, inseridas no contexto histórico, econômico, social, ambiental, cultural, do mundo do trabalho e da prática social, a partir de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala regional e global”. 

Seria muito importante ter, no Brasil, uma prova semelhante ao PISA, mas ao final a educação fundamental, que é quando todos os estudantes precisam consolidar os conhecimentos e competências básicas em linguagem, matemática e ciências. Seria uma adaptação do atual SAEB, com a diferença de que os resultados fariam parte do currículo dos estudantes. Isso funcionaria como um forte incentivo para melhorar a qualidade do ensino fundamental II, que é a parte mais precária da educação pública brasileira, e os resultados poderiam servir de instrumento para orientar os estudantes em suas opções para o ensino médio.

A ideia inicial da reforma do ensino médio foi que, como na prática muitos estudantes chegam ao ensino médio sem esta formação consolidada, então deveria haver ainda uma parte comum de formação que cumpriria este papel. Mas deveria ser uma parte pequena, porque, neste nível, esta formação deveria ser consolidada no contexto das diferentes áreas de estudo dos alunos.  No entanto, no processo de discussão do projeto de lei, o Congresso acabou inchando esta parte, que pode chegar a 60% do total das horas de estudo, mutilando assim o sentido original da reforma  

A proposta do CNE significaria, na prática, criar uma prova semelhante ao antigo ENEM, quando ele ainda não tinha sido transformado em um exame vestibular nacional, o que tem sua lógica, embora a rigor ela devesse ser feita ao final do ensino fundamental.  Já o que o MEC pretende fazer é totalmente sem sentido, a começar pelo fato de nenhuma resolução de ninguém consegue juntar todos os conhecimentos e competências em um “todo indissolúvel”, e não é possível medir esta grande quantidade de dimensões diferentes em uma mesma prova.  A técnica utilizada hoje para a elaboração destas provas, a chamada “teoria de resposta ao item”, supõe que as provas contenham vários itens, ou questões, com níveis diferentes de dificuldade, que estejam alinhadas a uma mesma dimensão, e sejam extraídos de uma grande coleção de itens equivalentes devidamente testados e ponderados que possam ser substituídos nas provas a cada ano, mantendo a comparabilidade dos resultados. Se eu quiser medir três coisas diferentes, como capacidade de leitura, raciocínio matemático e raciocínio científico, preciso de três provas distintas, que podem até ser feitas no mesmo dia, mas não há como ir muito além disto. Este mesmo problema afeta a proposta do MEC em relação às provas do segundo dia, que deveriam medir os cinco “eixos estruturantes”, cada um com duas ou três partes, chegando a um total de 11 dimensões em cada um dos quatro “itinerários formativos”.  O papel aceita tudo, mas no mundo real não há como desenvolver um banco de itens apropriado para medir tudo isto e espremer tudo em uma prova única.

Nem o parecer CNE nem proposta do Ministério da Educação avançam na questão da avaliação dos alunos que optarem pelo ensino médio técnico, ou profissional. Os dois tentaram uma porta dos fundos para trazer para o exame as pessoas que não se prepararam para ele. O CNE não propõe um exame separado para estes cursos, inclusive porque podem ser centenas, mas diz, enigmaticamente, que os alunos destes cursos “deverão prestar as mesmas provas dos egressos de itinerários acadêmicos, preferencialmente organizadas em áreas profissionais e carreiras que dialoguem com as formações dos itinerários profissionalizantes”. O Ministério da Educação propõe um sistema complicado e arbitrário de “pontos” que as universidades poderiam atribuir aos alunos dos cursos técnicos que tenham feito somente a prova do primeiro dia, ou não se saído bem na prova do segundo. Mas a grande maioria dos que fazem cursos técnicos de nível médio não pretende ir para a universidade, e sim obter uma qualificação valorizada no mercado de trabalho (os que pretendam e tenham condições podem sempre fazer o ENEM, independentemente das opções que tenham feito até ali). O que eles necessitam é de um sistema robusto de certificação de competências profissionais desenvolvido em parceria com o setor produtivo, que poderia começar com algumas profissões mais demandadas, e ir se ampliando progressivamente. O ensino técnico não pode ser um beco sem saída, e para isto é preciso ampliar a oferta de cursos superiores curtos (que no Brasil recebem o nome de “tecnológicos”) que possam dar sequência à formação profissional de nível médio para quem queira continuar sua formação. Mais amplamente, é necessário ampliar as possibilidades de educação pós-secundária para pessoas que venham de trajetórias mais profissionais e menos acadêmicas. Mas esta é uma questão que tem a ver o ensino superior brasileiro como um todo, que não pode ser resolvida no ENEM.

Há mais de dez anos que eu e outras poucas pessoas vimos escrevendo sobre os equívocos que começaram com a Base Nacional Comum Curricular, se desdobraram nas deformações introduzidas na reforma do ensino médio, e culminam agora nesta proposta do Novo Enem. O que defendemos é o que se faz em todo o mundo onde a educação funciona. Ninguém contesta, mas a burocracia pedagógica segue impávida em sua falta de rumo. 

A questão central é que a educação não pode ser pensada como o acúmulo de habilidades ou competências separadas, mas como a transmissão e desenvolvimento de culturas que combinam conteúdos e práticas de forma viva e significativa. Se eu juntar um sistema digestivo, um sistema respiratório, um cérebro etc. eu, no máximo, construiria um Frankenstein, nunca uma pessoa. Da mesma forma, não se aprende uma língua decorando regras gramaticais e taxonomias de estilos literários, mas interagindo, falando, lendo, escrevendo, e depois analisando; e não se formam bons profissionais com aulas de empreendorismo e processos criativos, mas com o desenvolvimento e apropriação integrados de conhecimentos, práticas e valores das diferentes áreas de atuação. O que se deve buscar na educação não é substituir o ensino burocrático e tradicional dos currículos de química, biologia, história e geografia por competências genéricas vazias, mas dar aos estudantes condições e oportunidades para absorver e fazer parte da cultura viva e rica de conteúdos que começa com a linguagem e o uso dos números e culmina nas diversas áreas de formação acadêmica e profissional. Para ser um físico, um economista, um advogado ou um programador, não basta acumular os conhecimentos e as técnicas próprias de cada campo, mas incorporar também um conjunto de maneiras de trabalhar, pensar e conviver que só se aprende em contato quem já atua nestes campos e serve de modelos e referências. Não é uma coisa rígida, novas culturas técnicas e profissionais estão sendo todo o tempo criadas, recombinadas e transformadas, mas sempre a partir de uma base de conhecimentos e práticas anteriores, e não de forma arbitrária, a partir de um catálogo de competências ou habilidades.

Parece óbvio, e a grande dúvida é por quê que tanta gente é contra, ou indiferente. Minha explicação é que manter e desenvolver a cultura viva é muito mais difícil do que persistir na rotina do ensino burocrático, que continua a mesma quando se pretende substituir as matérias enlatadas pelas “competências” da moda. Da mesma maneira que se prefere o varejo das verbas federais administradas pelo Centrão ao compromisso e responsabilidade com os resultados da educação.

Educação Superior e Capitalismo Acadêmico na América Latina

O termo “capitalismo acadêmico” tem sido usado com bastante frequência para caracterizar a educação superior nos Estados Unidos e em muitos outros países, em que as instituições universitárias são administradas em forma semelhante às empresas, atuam agressivamente nos mercados em busca de recursos e alunos, e ajustam sua oferta de cursos e outros serviços às demandas do mercado.

A referência principal desta linha de interpretação é o livro Academic Capitalism and the new economy: Markets, State and Higher Education, de Sheila A. Slaughter e Gary Rhoades (JHU Press, 2004). Na Amércia Latina, José Joaquin Brunner, da Universidad Diego Portales em Santiago do Chile, tem usado esta perspectiva para a análise e interpretação da educação superior na região. Agora a Universidade Diego Portales acaba de publicar um livro editado por ele, Enfoques de sociología y economía política de la educación superior: aproximaciones al capitalismo académico en América Latina, em que vários autores se valem destas ideias para entender melhor o que vem ocorrendo na região, na perspectiva de sua economia política.

O lançamento do livro ocorrerá em um seminário internacional do dia 25 de março, as 11 da manhã, organizado pela Universidade Diego Portales.

Minha contribuição para o livro foi um capítulo intitulado “Entre Berlim e a bolsa: capitalismo acadêmico no Brasil?”.  O que penso sobre esta teoria é que, primeiro, ela não é nova, porque o tema do empreendedorismo no ambiente acadêmico tem sido estudado há muitos anos, com destaque para os trabalhos de Burton Clark sobre “universidades empreendedoras” e os estudos sobre empreendedorismo na pesquisa , com destaque para livro clássico de Bruno Latour sobre Ciência em Ação (1988) e também The New Production of Knowledge, de 1994, no qual colaborei. E, segundo, porque a antiga lógica dos sistemas universitários, que tem como modelo ideal a Universidade de  Humboldt em Berlim, não desapareceu, e coexiste de diferentes formas com as atuais tendências de mercantilização que se observam. O que explica isto é a grande presença do Estado no financiamento e regulação do ensino superior, que é muito menor nos Estados Unidos do que no resto do mundo, o que inclusive explica a força do capitalismo acadêmico naquele país.

No meu texto, eu trato de mostrar como estes dois polos, “Berlim” e a “bolsa”, coexistem a disputam espaços na educação superior brasileira, mediados pelo Estado. O resultado é uma grande variedade de instituições regidas por lógicas muito distintas. Os setores público e privado têm estratégias muito diferentes para garantir seus recursos e sobreviver. No setor público é uma estratégia que se apresenta em termos acadêmicos, mas na verdade é especialmente política e burocrática. No setor privado, por outro lado, trata-se de uma estratégia claramente capitalista, mas pouco acadêmica, que consiste basicamente na venda massiva de cursos e credenciais de baixo custo, com uso intensivo de novas tecnologias de administração e transmissão de conteúdo. Entre os dois extremos estão parcelas do setor público, principalmente em instituições com maior capacidade de pesquisa e programas de pós-graduação, que têm atuação mais empreendedora, disputando recursos em agências de fomento à pesquisa e contratos com empresas públicas e privadas; e um pequeno segmento do setor privado que busca oferecer ensino superior de qualidade aliado a atividades de pós-graduação, pesquisa e envolvimento com a comunidade local. Pode ser que, com a crise fiscal e econômica agravada com a epidemia de Covid 19, tanto o setor público quanto o privado tenham que mudar suas estratégias e esse espaço intermediário cresça dos dois lados, com o avanço de um sistema de ensino efetivamente diferenciado e com mais capacidade de resposta às exigências de formação e conhecimento da sociedade a vários níveis. Mas este certamente não é um futuro garantido.









      

O Apagão do Ensino Médio

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de março de 2022)

Levantamento recente da Secretaria de Educação de São Paulo mostra o impacto da pandemia no ensino médio do Estado, que já não vinha bem. Em Língua Portuguesa, em 2019, os alunos que terminavam o ensino médio já estavam, em média, 3,83 anos atrasados em termos do que haviam aprendido, ou seja, sabiam menos do que o esperado no 9.º ano do ensino fundamental. Em 2021, este atraso havia aumentado para 4,24 anos. Em Matemática, o atraso, que era de 5,14 anos, aumentou para 6,53 anos, ou seja, tinham o nível próximo ao esperado no 5.º ano. É provável que, no resto do País, o impacto tenha sido maior (o impacto mais dramático, no entanto, foi entre os alunos da 5a série, como se pode ver no gráfico, com dados extraídos da publicação da Secretaria de Educação).

É assim que estes estudantes estão entrando, em 2022, no novo ensino médio, estabelecido em 2017. Pela lei, os estudantes que entram no ensino médio como um caminho para o ensino superior deveriam escolher as áreas de estudo de sua preferência; para a maioria, sobretudo da rede pública, que não irá além do nível médio, seria possível obter uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho. E, para todos, haveria mais espaço para fortalecer as competências básicas gerais, como os conhecimentos essenciais de linguagem e raciocínio matemático. A intenção foi boa, mas a lei ficou confusa, e caberia ao Ministério da Educação liderar a transição para o novo sistema, resolvendo as ambiguidades e apoiando as redes neste processo. O ministério se omitiu, e cada Estado está tratando de fazer as mudanças como pode. 

A omissão do governo federal tem que ver com a incompetência e hostilidade do governo Bolsonaro em relação aos temas de ciência, cultura e educação, mas também com uma forte resistência do establishment educacional aos dois objetivos da reforma. Esta resistência se deu e ainda se dá em dois níveis, o das ideologias e concepções e o das dificuldades práticas que a reforma acarreta, que me parece o mais importante. 

A oposição à diferenciação de trajetórias se manifesta muitas vezes na forma de defesa do direito à educação, que seria afetado se o estudante tivesse um currículo mais direcionado. Ela veio, também, associada ao temor de que a flexibilização dos currículos afetaria a rotina e o emprego de professores de filosofia, sociologia, educação física, religião e tantos outros que têm asseguradas suas horas de ensino nos currículos tradicionais. O resultado foi aumentar, na lei, o tamanho e os conteúdos da parte de formação comum do ensino médio, e adotar, para os diferentes itinerários de formação, uma classificação formal e arbitrária de áreas de conhecimento (linguagem, Matemática, ciências da natureza, ciências sociais), ao invés de temas mais próximos das áreas de formação profissional (tecnologia e engenharia, ciências da saúde, profissões sociais, humanidades), como se dá no resto do mundo. 

Nem tudo estava perdido, porque é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) que define o que fazem, na prática, as escolas do ensino médio. Pensando nisso, o Conselho Nacional de Educação (CNE) desenvolveu uma proposta para um novo Enem, que consistiria em duas partes, a primeira de competências gerais, semelhante ao Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e a segunda com opções nas quatro áreas de formação profissional. 

Mas o Ministério da Educação, com o apoio de associações como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), acabou adotando um projeto diferente. São, também, duas partes, a primeira juntando todo o conteúdo da parte geral e a segunda com quatro módulos diferentes à escolha dos alunos, combinando as diferentes áreas formais de conhecimento. É uma proposta confusa, carregada de linguagem pretensiosa (“intervenção social”, “articulação de competências”, “interdisciplinaridade”, etc.), tecnicamente duvidosa e que mal esconde a resistência à inovação. 

O principal argumento ideológico contra a reforma do ensino técnico é de que ele estaria subordinando a educação ao mercado de trabalho (horror!), abandonando o suposto ideal gramsciano de “politecnia”. Esta reforma deveria ter sido acompanhada de uma política efetiva de fortalecimento dos vínculos entre as redes estaduais e os sistemas de formação profissional existentes, como os do sistema S e o sistema Paula Souza, em São Paulo, e da implantação progressiva de um sistema nacional de certificações de competências profissionais, em parceria com o setor produtivo, que pudesse dar rumos e valorizar as carreiras vocacionais. 

Além disso, deveria haver um esforço de ampliação e qualificação de um sistema moderno de aprendizagem profissional e do ensino superior de curta duração, que dariam continuidade à formação técnica de nível médio. Ao invés disso, o que se viu foi uma preocupação em manter o ensino técnico integrado ao currículo tradicional, como uma formação elitista só possível para os poucos institutos tecnológicos federais que, na prática, selecionam e preparam seus estudantes para as carreiras universitárias. 

É este o apagão do ensino médio brasileiro em 2022: uma reforma confusa, sem ter quem a lidere e com alunos prejudicados por dois anos de escolas fechadas. Seria um bom tema para as campanhas eleitorais, se os políticos realmente se interessassem por educação. 

Pesquisa e Pós-Graduação no Brasil: duas faces da mesma moeda?

A revista Estudos Avançados, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, acaba de publicar meu texto com o título acima, disponível neste link.

O artigo faz um retrospecto do desenvolvimento da pesquisa e da pós-graduação no Brasil, fazendo uso de dados de diversas fontes, e conclui que, ao desenvolver um sistema de ensino e pós-graduação como se fossem dois lados da mesma moeda, o Brasil acabou criando um sistema de pós-graduação estricto sensu demasiado acadêmico, e um sistema de pesquisa mais tolerante à baixa qualidade do que seria desejável. É um sistema concentrado em universidades públicas, muito mais voltado à produção de credenciais para o sistema educacional do que de inovações e profissionais qualificados para o mercado de trabalho mais amplo. Ao mesmo tempo, se criou no país um mercado não regulado de cursos de especialização e MBA, visível nas pesquisas domiciliares, que o Ministério da Educação não registra em suas estatísticas. O sistema de pós-graduação regulado é altamente subsidiado, com cursos gratuitos e bolsas de estudo que beneficiam cerca de metade dos alunos, embora, em termos comparativos, eles tenham níveis de renda familiar e expectativas de rendas futuras bem superiores aos das pessoas com títulos universitários de graduação. Seria recomendável aproximar os programas de mestrado regulados do padrão dos mestrados em outros países, dedicados sobretudo à qualificação profissional, e concentrar os recursos de bolsa de estudos e financiamento de pesquisas nos centros e programas promissores e de excelência, utilizando critérios de qualidade e relevância mais estritos dos que têm predominado até aqui.

Ensino online pode ser bom, mas não substitui o presencial

(um resumo desta análise foi publicado em O Estado de São Paulo, 19 de fevereiro de 2022)

As informações iniciais do Censo da Educação Superior de 2020, divulgadas hoje pelo INEP, mostram que, pela primeira vez, o número de estudantes ingressantes na educação à distância superou o de ingressantes em cursos presenciais, por causa, sobretudo, do aumento de matrículas à distância no setor público, onde antes praticamente não existiam. 

Claro que o aumento da educação à distância foi acentuado pela pandemia, mas é uma tendência que já vinha se acentuando. Para entender o que está ocorrendo, é importante observar que os estudantes dos cursos à distância, com a idade média de 32 anos, são muito diferentes dos estudantes de cursos presenciais, que têm em média 25 anos, pelos dados do Censo da Educação superior de 2019.  O estudante típico da educação presencial é jovem, recém-saído da educação média, e não precisa trabalhar para se sustentar. Com recursos da família, passou por uma boa escola de ensino médio que permitiu que entrasse em uma instituição pública através do ENEM ou da Fuvest, ou que pague um curso presencial em uma instituição privada diferenciada.  O estudante da educação à distância terminou o ensino médio anos atrás em uma escola pública, precisa trabalhar para se sustentar, e possivelmente não conseguiu uma boa qualificação no ENEM ou na Fuvest, se é que tentou.

Até a crise de 2015, estes estudantes mais velhos normalmente entravam nos cursos noturnos das instituições privadas, com bolsas do Prouni, uma pequena parte, e sobretudo com o financiamento estudantil proporcionado pelo governo federal, que acabava muitas vezes não pagando. Quando o FIES começou a encolher, as grandes empresas de ensino do setor privado começaram a transferir os estudantes dos cursos noturnos para cursos à distância, com vantagens para ambas as partes. Com a educação à distância, o custo por aluno cai muito significativamente, porque poucos professores podem atender a muitos alunos com aulas padronizadas que são distribuídas por meios eletrônicos, o que dispensa a manutenção de salas de aula e outras instalações dispendiosas. Para os alunos, os baixos custos tornam os cursos acessíveis, e a educação à distância, quando é bem dada, pode ser melhor do que os antigos cursos noturnos, em que alunos e professores chegavam às salas de aula cansados e sem motivação.

A educação à distância existe há décadas e não é necessariamente de má qualidade, como atesta a experiência famosa da Open University inglesa, e tem sido adotada também em muitos outros países, como na África do Sul, onde a tradicional Unisa (University of South Africa) atende a cerca de um terço a da matrícula educação superior daquele país.  A economia de escala permite que as instituições de ensino à distância produzam materiais de qualidade e desenvolvam sistemas sofisticados de distribuição, acompanhamento e avaliação de resultados que não estão ao alcance de instituições menores e dos cursos noturnos tradicionais. Um problema conhecido da educação à distância é o grande número de estudantes que abandonam os cursos antes de terminar, mas isto 0corre também na educação presencial, onde as taxas de abandono podem ser da ordem de 50%.

Mas a educação à distância não é um substituto para a educação presencial. A vivência da vida universitária, a convivência com os colegas, a proximidade com os professores, o tempo passado nas bibliotecas e áreas de lazer, o conhecimento tácito que não está nos livros nem nos computadores e se adquire no contato pessoal, as redes de relacionamento que se criam e se mantém pela vida, pouco disto pode ser reproduzido à distância.  Para os jovens, a educação presencial, enriquecida com as modalidades híbridas e outros recursos proporcionados pelas novas tecnologias, é indispensável. Para os mais velhos, uma educação à distância de qualidade, sobretudo se mais orientada para cursos mais curtos e práticos, e não para os bacharelados e licenciaturas tradicionais, pode ser uma boa opção.

O outro dado que chama a atenção é que as matrículas no setor privado chegaram em 2020 a 86% do total, o que não é muito diferente de 2019. Hoje,75% de toda a matrícula do ensino superior brasileiro é privada, e os dados das matrículas novas mostra que esta proporção tende a aumentar. O ensino superior público brasileiro não conseguiu se expandir nem se adaptar à demanda crescente por educação da população mais velha que não desfrutou das vantagens da educação superior na juventude, e hoje, bem ou mal, só encontra espaço no ensino superior privado para se qualificar.  

Não se trata, pois, de lamentar da expansão da educação à distância nem do crescimento do setor privado, mas de entender mais profundamente que tipos e modalidades de educação são mais apropriados para diferentes segmentos do público e diferentes tipos de instituição, investir onde necessário, e deixar claras as alternativas para os estudantes que as procuram.

Pesquisa e pós-graduação para os novos tempos

(publicado em O Estado de São Paulo, 11 de fevereiro de 2022)

A partir de 2023, se tivermos um governo minimamente razoável, vai ser necessário recuperar e recompor o sistema federal de pós-graduação e pesquisa, hoje tão dilapidado. O primeiro passo é reconhecer que, desde que foi criado nas décadas de 1960 e 1970, ao lado de suas virtudes, este sistema vem acumulando uma série de deformações que precisam ser enfrentadas. O segundo é colocar à frente das principais agências – Ministério de Ciência e Tecnologia, CAPES, CNPq, FINEP – lideranças que entendam o que deve ser feito e tenham a necessária reputação e legitimidade entre seus pares para convocá-los para este trabalho. O terceiro é recompor os orçamentos destas instituições, pelo menos nos níveis de dez anos atrás.

Que deformações são essas? Meio século atrás, o número de instituições de pesquisa no país podia ser contado nos dedos, e o número de pesquisadores, em algumas centenas. Poucas pessoas chegavam à educação superior, e não existiam cursos de pós-graduação. A reforma universitária de 1968 procurou trazer a pesquisa para as universidades federais, criando cursos de pós-graduação e exigindo que os professores tivessem títulos de doutor e contratos de tempo integral. Nos anos 70 a FINEP, com recursos dos Planos Nacionais de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, começou a criar centros de pesquisa e, junto com a CAPES e o CNPq, a dar bolsas para quem quisesse e tivesse condições de fazer cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior.  Fazia sentido.

Hoje, dependendo de como se conta, temos cerca de 200 mil pesquisadores e mais de 6 mil cursos de pós-graduação regulados pela CAPES, com 140 mil estudantes de doutorado e 200 mil de mestrado.  Além disto, existem cerca de um milhão de estudantes em cursos de pós-graduação “lato sensu”, pouco ou nada regulados, como os MBAs e cursos de especialização. O IBGE registra a existência de 477 mil doutores no país, um quarto dos quais vinculados  aos programas de pós-graduação das universidades. 

Fazer pós-graduação pode significar coisas muito diferentes para diferentes pessoas. Para muitos, é uma maneira de garantir um bom lugar no mercado de trabalho, como profissional especializado. Para outros, é uma maneira de obter um título para subir na carreira universitária, sobretudo em universidades públicas. E para outros, uma minoria, é uma porta de entrada para uma carreira de pesquisador, seja em universidades ou em institutos públicos e privados.  Não são coisas excludentes, é possível ter os três objetivos ao mesmo tempo, mas na prática nem todos que se especializam ensinam, e nem todos que se especializam e ensinam fazem pesquisa. 

Se ser estudante de nível superior no Brasil é um privilégio, ser estudante de pós-graduação é um privilégio maior ainda. A renda familiar per-capita dos estudantes nível médio em 2021 era de 960 reais; dos estudantes de nível superior, 1.800 reais; e dos estudantes de pós-graduação, mais de 4 mil reais. Entre os que só ficam no nível superior depois de formados, a renda média chega a 2.900; para quem tem especialização, a 4.700; e para quem tem mestrado e doutorado, entre 6.500 e 8 mil reais por mês. Considerando estes números, o tamanho que o sistema de pós-graduação e pesquisa atingiu, e os diferentes objetivos das pessoas que entram neste sistema, será que a ideia de que todos precisam ser igualmente subsidiados ainda se justifica?

Claramente não. Com tanta gente, mesmo na melhor das condições, não haverá recursos para financiar bem a pesquisa e a pós-graduação de excelência. Uma bolsa de doutorado da CAPES ou CNPq hoje é de cerca de 2 mil reais, um terço da renda per capita familiar média dos estudantes, insuficiente para que alguém se sustente em uma grande cidade. A pesquisa científica de excelência no Brasil é concentrada em poucas universidades e departamentos, mas todos os professores do sistema federal, pesquisem ou não, ganham a mesma coisa, o que significa que ganham relativamente mal. Faria mais sentido que os profissionais bem-sucedidos que fazem mestrados e doutorados para subir no mercado de trabalho pagassem seus cursos, como já fazem com as especializações. As universidades deveriam ter carreiras separadas para professores pesquisadores de tempo integral e professores que se dedicam ao ensino, com contratos de tempo parcial e sem que sejam obrigados a passar por doutorados de pesquisa que não são de seu interesse; e alunos de doutorado poderiam trabalhar como auxiliares de ensino ou pesquisa enquanto estudam. Com isto haveria recursos para que os investimentos em pesquisa sejam substancialmente aumentados e concentrados nas pessoas e programas mais promissores, de melhor qualidade e que realmente necessitem.

São mudanças profundas que afetam a regulação e o financiamento do setor, e não esgotam a agenda, que precisa ainda incluir os temas da relevância, da eficiência, da internacionalização e da superação das barreiras que ainda separam a pesquisa da pesquisa pública e empresarial.  Mas seria um bom recomeço.

Ainda sobre a idade dos doutorados

Por que os doutores no Brasil se formam muito mais velhos do que nos Estados Unidos? Como mostrei em uma postagem anterior, nos Estados Unidos, 45% dos doutores se formam com menos de 30 anos, e têm uma longa vida profissional pela frente. No Brasil, são somente 10%. No outro extremo, 18% dos doutores brasileiros adquirem seus títulos com mais de 45 anos, quando já terão menos tempo de vida profissional; nos Estados Unidos, são somente 7%.

Para entender melhor o que está acontecendo, comparamos as idades de titulação no Brasil por grandes áreas de conhecimento e pelos conceitos da CAPES. O que observamos é que os doutores nas ciências naturais se formam muito mais cedo do que nas ciências sociais e humanas, e que os doutores dos cursos de conceitos mais altos se formam também mais jovens.

Será que existe algo nas ciências sociais e humanas que explica as diferenças, ou é uma diferença de qualidade, estes cursos são piores, e por isto atrasam o doutoramento de seus alunos? Comparando as duas tabelas, vemos que as as áreas de conhecimento explicam 18,1% da variação, e os conceitos da CAPES, 13,1%. Então, não é só uma questão de qualidade (supondo que os conceitos da CAPES são equivalentes entre as áreas de conhecimento, o que não é garantido). E não é verdade que os doutorados das ciências sociais e humanas levam mais tempo. Em todas as áreas de conhecimento, são 50 meses em média entre a matrícula e a titulação, com muito pouca variação. Quatro anos é o tempo normal para um doutorado, o que invalida a ideia de que os doutorados se prologam porque as bolsas são pequenas e os estudantes precisam trabalhar. Eles não se prolongam, os estudantes é que entram nos cursos mais velhos.

Existem outras possíveis explicações que os dados disponíveis, infelizmente, não permitem verificar. Uma é que os doutorados tardios ocorrem entre pessoas já empregadas, para os quais o doutorado interessa sobretudo pela titulação, e não para iniciar uma carreira de pesquisas, e isto seria predominante nas ciências sociais e humanas. Outra é que os doutorados se retardam pela exigência que ainda é comum, no Brasil, de que os alunos completem primeiro os mestrados, o que pode levar dois ou mais anos. A outra ainda é que a distribuição de idade dos doutorandos no Brasil seja semelhante à dos países europeus, e que os Estados Unidos sejam anômalos em relação a isto.

Seja como for, parece óbvio que, do ponto de vista das políticas públicas, deve haver um esforço para que as pessoas façam e terminem seus doutorados ainda jovens, para que possam começar suas carreiras com alta qualificação e possam ter uma longa e produtiva vida profissional.

A idade dos doutores no Brasil e USA

Na postagem anterior eu fiz uma comparação entre a distribuição das idades de formatura dos doutores nos Estados Unidos, obtida no site Statista, com a idade dos alunos de doutorado no Brasil, usando para estes a informação obtida pela Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar Continua do IBGE (PNAD). O que se viu é que no Brasil as pessoas tendem a fazer o doutorado muito tarde, e não, como nos Estados Unidos, no início de suas carreiras.

Havia no entanto dois problemas com esta comparação. O primeiro é que o número de alunos de doutorado que aparecem na amostra do IBGE é muito pequeno – 190, em uma amostra de 320 mil, o que significa que a margem de erro é muito grande. O segundo é que não é possível separar os que estão estudando dos que estão se formando.

Por sorte, os dados da Plataforma Sucupira da CAPES para 2020 têm esta informação detalhada, e refiz a tabela trocando os dados da PNAD por estes. No novo gráfico, a proporção de pessoas mais velhas nos doutorados brasileiros é menor, mas a tendência geral é a mesma. Já fiz a correção na postagem anterior, e reproduzo o texto revisto aqui:

“A comparação da distribuição de idades entre os titulados nos Estados Unidos e no Brasil, pela informaçã0 da CAPES, no gráfico acima, mostra com clareza a situação. Nos Estados Unidos, 44,7% dos doutores se formam com menos de 30 anos, e, no Brasil, 27,8%. Na outra ponta, nos Estados Unidos 12% dos doutorandos têm 40 anos ou mais, e no Brasil, 30,4%”.

Reconectando com a diáspora

O tema do novo número da Revista de Educación Superior em América Latina, disponível na Internet, é o da necessidade de os países da região se reconectarem com os cientistas que ajudaram a formar e que hoje vivem nos Estados Unidos e outros países desenvolvidos. É um problema antigo que se repete em muitas partes: os países oferecem educação superior gratuita para seus melhores estudantes, dão bolsas de estudo para que completem seus doutorados no exterior, e eles não voltam.

Na década de 70 coordenei a parte brasileira de um estudo internacional sobre o tema, e o que constatamos foi que, apesar do clima de repressão política que havia no país, e de inúmeros cientistas que tiveram que se exilar naqueles anos, os brasileiros que iam estudar exterior, ao contrário do que ocorria por exemplo na Argentina, em geral voltavam. A explicação era simples: o sistema universitário e de pesquisa brasileiro estava começando a se expandir, e bons empregos não faltavam para quem voltasse e não estivesse na mira da polícia política.

Esta situação continuou até a década de 2010, quando começou a se inverter. Hoje, basta conversar com qualquer jovem em idade universitária para ver quantos gostariam ou estão ativamente empenhados em ir estudar ou trabalhar exterior, sem perspectivas de volta. É uma consequência direta da estagnação econômica e da crise política que se instalou em meados da década passada e parece não ter fim, mas também da maneira pela qual nosso sistema de pós-graduação e pesquisa evoluiu.

No passado, jovens talentosos não tinham dificuldade em conseguir uma bolsa de doutorado para o exterior, e muitas vezes já saiam empregados, mantendo os salários e ocupando logo posições de liderança quando voltavam. Mas hoje, as universidades públicas pararam de crescer, só contratam mediante concursos que nem sempre existem, e só para posições iniciais de carreira; e existem muito poucas posições de pesquisa no setor privado.

O Brasil continua formando muitos doutores, mas os doutorados são, em grande parte, um mecanismo de titulação para pessoas mais velhas já empregadas, e menos um sistema de formação e recrutamento de novos talentos. É muito difícil para um jovem doutor, formado no Brasil e no exterior, conseguir uma posição de trabalho atraente. Existem bolsas de fixação, mas elas raramente se transformam em empregos regulares. Em 2021, pela PNAD, havia 148 mil estudantes de doutorado no Brasil, com a idade média de 40 anos.  Destes, 46% eram funcionários públicos, e tinham a idade média de 42 anos (a idade média dos 30% que não trabalhavam era de 35 anos). São dados sujeitos a erro, porque baseados em uma amostra de 190 pessoas com este nível de educação. Mas os dados da CAPES de 2020, os mais recentes, obtidos diretamente das instituições, eram 145.360 – número bem próximo – dos quais 20.075 titulados naquele ano.

A comparação da distribuição de idades entre os titulados nos Estados Unidos e no Brasil, pela informaçã0 da CAPES, no gráfico acima, mostra com clareza a situação. Nos Estados Unidos, 44,7% dos doutores se formam com menos de 30 anos, e, no Brasil, 27,8%. Na outra ponta, nos Estados Unidos 12% dos doutorandos têm 40 anos ou mais, e no Brasil, 30,4%. Dado este quadro, a expectativa é que o Brasil passe a ter uma diáspora cada vez maior de técnicos e cientistas, tal como já ocorre com os demais países da América Latina.

No mundo, China e Índia são, de longe, os países com as maiores diásporas de técnicos e cientistas, e são também exemplos dos benefícios que podem advir de um esforço ativo de reconectar os países com suas diásporas. Os que se foram não necessariamente voltam, mas podem atuar como fontes importantes de contatos, conhecimentos e parcerias com os que ficam. Foi assim que a Índia se transformou em uma grande potência na área de computação, e a China tem investido muito em se reconectar e, se possível, trazer de volta cientistas chineses formados no exterior.  Claro que, para isto, precisa haver, no país, condições políticas, econômicas e espaço institucional para que o trabalho técnico e científico se consolide e se expanda.

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