A querela das cartilhas

Hélio Schwartsman (não é meu parente!) publica hoje na Folha de São Paulo um artigo sobre “A Querela das Cartilhas”. Ele vê mérito nos diferentes métodos, acha importante o tema, mas conclui que “daí não se segue que nossos péssimos índices de sucesso na alfabetização sejam conseqüência direta da presença ou da ausência de cartilhas e outros materiais didáticos. Candidatos mais verossímeis para explicar os fracassos da escola pública na alfabetização são o despreparo dos professores, as classes superlotadas, a falta de estímulos à leitura no ambiente familiar, o pouco envolvimento da comunidade no processo educacional e o acesso limitado das crianças à pré-escola. Mudanças na forma de ensinar sempre podem produzir ganhos incrementais. Mas defender esse tipo de discussão não implica aceitar a falsa polêmica que se esboça. Pelo contrário, devemos rejeitá-la. Ela apenas lança uma cortina de fumaça sobre o crime continuado que há anos perpetramos contra o país ao não tornar a educação básica a prioridade nacional.”

Tudo a favor de fazer da educação uma prioridade nacional. Mas a questão dos métodos de ensino, que não se reduz ao uso ou não uso das antigas cartilhas, não pode ser desqualificada. Os filhos dele, como os meus, aprendem a ler praticamente “sozinhos”, pelo ambiente cultural em que vivem. São candidatos ideais para escolas e métodos experimentais de qualquer tipo. Já os de famílias pobres e pouco educadas, se não recebem uma educação bem estruturada e sistemática e resolvem de forma efetiva a alfabetização inicial, não aprendem nunca. É o que mostra a altíssima correlação entre nível socioeconômico das famílias e desempenho escolar das crianças no Brasil. É claro que se não há professores minimamente qualificados, se os professores faltam ao trabalho ou são substituidos a toda hora, se a escola é um caos e não tem o mínimo de recursos, não há método que funcione. Mas sabemos também que pouco adianta melhorar os salários dos professores e obrigá-los a ter diplomas de nível superior e de pós-graduação se eles não aprendem e utilizam métodos adequados de ensino, apoiados por bons materiais didáticos, e acompanhados por procedimentos regulares de avaliação. Nossas secretarias de educação gastam muito dinheiro em todo tipo de programas de qualificação de professores, e os resultados destes esforços são desconhecidos, e provavelmente nulos.

Para avançar na área da educação não basta a boa vontade e o bom senso, e nem mesmo dinheiro: é necessário também pesquisar e entender o que funciona e o que não funciona. Hoje, por exemplo, há uma idéia generalizada de que a falta de pré-escola é uma das causas do fracasso escolar no país. A pré-escola vem se expandindo enormemente nos últimos anos, consumindo recursos que poderiam estar sendo aplicados na melhoria da educação fundamental, mas não há sinal de que, com isto, a qualidade da educação básica esteja melhorando. Pesquisas fora do Brasil comprovam que um bom investimento na educação pré-escolar é muito importante para garantir bons resultados futuros. Mas quem disse que a pré-escola brasileira é um “bom investimento na educação”, e não, simplesmente, um sistema de creches de qualidade desconhecida, sobretudo para a população mais pobre?

Faz parte da tarefa de colocar a educação como prioridade nacional ir além do sentido comum, e entender melhor os problemas específicos e os possíveis resultados de determinadas políticas. Em relação aos métodos pedagógicos, o que necessitamos é sair da situação que havia até agora em que o governo impunha um método único, de validade questionada em todo o mundo, para uma situação em que o setor público estimule a pluralidade de métodos e avalie de forma sistemática os resultados, fazendo com que o melhor prevaleça. É só um pedaço do problema, mas um pedaço muito importante.

Peter Fry e Yvonne Maggie sobre cotas nas universidades

Peter Fry e Yvonne Maggie publicaram o seguinte texto no O Globo de 11 de abril:

Política social de Alto Risco

A Câmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votado por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora “raça” e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei e os cidadãos serão divididos em duas “raças” com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto uma sociedade dividida entre “brancos” e “negros”. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no primeiro mundo. As cotas são destinadas justamente para a classe média baixa que só agora com a expansão do ensino de segundo grau pode sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. E essa classe média ascendente é justamente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas “raças”?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia a dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata, é um remédio barato (posto que é uma política de custo zero que não irá onerar os cofres públicos) e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas, de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas “raças”. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades “raciais” e, em última análise, do genocídio dos “pardos”, “caboclos”, “morenos”etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um vislumbra uma nação pautada das diferenças “étnicas/raciais”—isto é uma nação de comunidades. Outro projeto aposta na construção de uma cidadania com direitos em comum independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada individuo a seguir o estilo de vida que mais lhe convém—isto é uma nação de indivíduos. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a “raça”. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a “raça”, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura: um Brasil de cotas raciais?

Este artigo saiu publicado no Correio Brasiliense de quinta feira, 13 de abril de 2006:

O Congresso Nacional está prestes a aprovar a introdução de cotas raciais nas universidades sem um debate mais amplo com a sociedade. Tramita ainda o Estatuto da Igualdade Racial, que, apesar da designação ampla, contempla um segmento específico (os afrobrasileiros), propondo, entre outras medidas, que o cidadão declare compulsoriamente a sua “raça” em todos os documentos gerados nos sistemas de ensino, saúde, trabalho e previdência. Cria-se um Brasil de brancos e não brancos, ou de negros e não negros. Essas iniciativas procuram transformar a diversidade étnico-social da população brasileira em grupos raciais estanques.

O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que a situação pouco se altere. Há a necessidade de políticas sociais que compensem os prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam corrigir um mal maior. Além disso, teriam caráter temporário. No momento atual, no qual mais do que nunca é necessário que se ampliem os debates com a sociedade civil, inclusive com vistas a que o Congresso aperfeiçoe os projetos sob análise, quem discorda desse modelo de políticas sociais, em particular das cotas, vem sendo tachado até mesmo de racista.

A estratégia das cotas é solução equivocada para um problema mal definido. Análises estatísticas mostram correlações importantes entre cor e uma série de desvantagens econômicas e sociais, que persistem mesmo quando outras variáveis são controladas. Assim, “brancos”, “pardos” e “pretos”, ainda que de mesmo nível educacional, têm rendimentos diferentes. Contudo, essas associações precisam ser vistas com cautela, pois não contam toda a história. Mesmo com o mesmo número de anos de estudo, por exemplo, indivíduos negros e pardos podem ter se formado em cursos de menor prestígio e valorização no mercado de trabalho. De fato, parte das diferenças pode também derivar da exposição à discriminação, ainda que faltem estudos detalhados sobre como os mecanismos discriminatórios operam e produzem as desigualdades observadas. Contudo, o que está ampla e detalhadamente comprovado é que a educação das pessoas é o que mais explica as diferenças de renda e oportunidades de vida.

A maneira mais efetiva de reduzir as desigualdades sociais é pela generalização da educação básica de qualidade e pela abertura de bons postos de trabalho. Cotas raciais, mesmo se eficazmente implementadas, promoverão somente a ascensão social de um reduzido número de pessoas, não alterando os fatores mais profundos que determinam as iniqüidades sociais. São reconhecidamente sérios os problemas envolvidos na implementação de cotas. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades com direitos específicos. Já se vê no país a ocorrência de experiências polêmicas de implementação de cotas que desrespeitam o direito das pessoas à autoclassificação. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos “raciais” estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir efeito contrário, ou seja, o acirramento do conflito e da intolerância, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos.

Que Brasil queremos? Um país no qual as escolas eduquem as crianças pobres, independentemente da cor ou raça, dando-lhes oportunidade de ascensão social e econômica; no qual as universidades se preocupem em usar bem os recursos e formar bem os alunos. No caso do ensino superior, o melhor caminho é aumentar o número de vagas nas instituições públicas, ampliar os cursos noturnos, difundir os cursos de pré-vestibular para alunos carentes, implantar câmpus em áreas mais pobres, entre outras medidas. Devemos almejar um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela cor ou raça: que se valorize a diversidade como um processo vivaz que deve permanecer livre de normas impostas pelo Estado a indivíduos que não necessariamente querem se definir segundo critérios raciais.

Luisa F. Schwartzman: uma proposta alternativa às cotas

A introdução forçada de cotas raciais nas universidades, que o Congresso está discutindo, é a maneira errada de tratar de um problema importante, que são as desigualdades sociais que afetam pessoas de diferentes origens sociais e culturais. Existem, no entanto, melhores alternativas, como mostra este texto de Luisa Farah Schwartzman, que vem estudando o tema.


Uma proposta alternativa às cotas

Fiquei surpresa como todo mundo no Brasil se posiciona contra ou a favor de um sistema de cotas, um sistema que nos Estados Unidos é considerado uma forma extrema de ação afirmativa. Os que se opõem às cotas em geral propõem como solução a melhora do ensino básico.

É claro que melhorar o ensino básico é importante. No entanto, não acho que a única escolha que temos é entre um sistema de cotas e melhorar o ensino básico. Mesmo melhorando o ensino básico, sempre vão existir desvantagens que são transmitidas de uma geração para a outra. Isso também acontece em paises desenvolvidos. Além disso, pode-se criar um sistema da ação afirmativa que seja importante somente enquanto o ensino básico não resolver os problemas: se o ensino básico for suficiente, ele vai tornar a ação afirmativa redundante, mas enquanto não for, a ação afirmativa pode corrigir essa deficiência. Alem disso, é bom ter pessoas que vêm de origens mais humildes em posições de prestígio, porque elas podem devolver para a comunidade mais pobre os benefícios que receberam. Por exemplo, um médico que nasceu na favela pode ser mais capaz de tratar dos problemas de saúde das pessoas de sua comunidade de origem.

Um aspecto muito discutido em relação das cotas é a questão racial. Existe obviamente uma correlação forte entre cor, renda e educação no Brasil. Seja quais forem as causas (racismo, herança do passado etc.) seria bom mudar essa correlação. Ser negro no Brasil ainda é visto como sinônimo de pobreza. Se estivéssemos acostumados a ver negros de classe média, talvez não fizéssemos mais essa associação, e isso mudaria a maneira pela qual os negros são tratados na nossa sociedade.

O problema é que usar o critério racial diretamente traz várias dificuldades. Uma tem a ver com se o governo (ou universidades) devem impor identidade/classificação racial às pessoas. O caso da UNB ilustra isso bem: quem tem o direito de determinar se um indivíduo é negro ou não? As universidades vão impor sua classificação aos alunos? Se você deixar a cargo de escolha do indivíduo (como é o caso da UERJ), como você vai saber se as pessoas que estão se classificando como negras (ou pardas) realmente são tratadas como negras (ou não-brancas) na sociedade? E a questão da herança? Ter ancestrais negros não importa, independente da cor da pele? E será que todas as pessoas sabem que são discriminadas? E as pessoas que se classificam como “pardos”? Elas se consideram “negras”? Na linguagem popular, “negro” muitas vezes é um conceito mais restrito, que se refere a pessoas de pele mais escura. Pesquisas mostram que “pardos” e “pretos” são parecidos em relação a características sócio-econômicas, mas que são diferentes em relação a outras questões, como casamento, violência policial e segregação. O que significa que a discriminação contra “pardos” seria mais institucional, e por isso mais difícil de ser notada. Muitas pessoas classificadas como “pardas” nem se vêem como “negras” (ou se vêem assim somente em algumas situações) nem sabem que são discriminadas. Como essas pessoas vão julgar se merecem ou não participar da cota? Além disso, não deveríamos criar a imagem de que os negros de classe media chegaram onde estão somente por causa das ações afirmativas (mas ao mesmo tempo, é melhor ter uma oportunidade assim do que não ter nenhuma).

Uma boa solução seria implantar um sistema de metas. O governo estipula uma meta para as universidades, que pode ser baseada em cor/raça, mas também pode ter outros critérios, como percentagens de alunos cujos pais não foram para a universidade, percentagem de alunos com certo nível de renda etc., e ficaria a cargo dos departamentos dentro das universidades decidir como chegar a essa meta. A meta podia ir crescendo através dos anos para as universidades terem tempo de se adaptar. O papel do governo seria 1) tirar amostras de alunos em períodos mais avançados para avaliar o perfil dessa população e 2) distribuir recursos de acordo com se o perfil está seguindo ou não a meta.

Um sistema de metas significaria que as universidades poderiam usar critérios não-raciais para atingir objetivos de melhora da “igualdade racial.” Isso poderia incluir convênios com cursinhos e escolas secundarias da periferia, modificação do vestibular, cotas com critérios sociais, melhoria no recrutamento (por exemplo, as universidades poderiam dar mais informação para escolas secundarias onde os alunos tendem a não prestar vestibular) etc. A vantagem seria não ter que medir raça no vestibular, mas também criar oportunidades para pessoas brancas que também tenham algum tipo de desvantagem.

Também significaria que a universidade não teria que resolver somente o problema de admissão dos alunos, mas também o de retenção. Ou seja, não adianta colocar todo mundo para dentro e depois do primeiro ano as pessoas largarem a faculdade. A universidade tem que poder incorporar alunos com mais dificuldades, não só dando aula de reforço e ajuda financeira (que deveria que ser parte do pacote do sistema de metas), mas também institucionalizar um sistema que permita a alunos de origens mais humildes entender o “currículo não-escrito,” ou seja, regras informais que pessoas de classe media que entram já sabem, até por terem contatos fora da universidade com pessoas que já são profissionais da área, e em geral por terem pessoas na família que já tem experiência de estar na universidade, ou fazendo aquele curso especificamente.

Um sistema de metas mudaria a obrigação de se perguntar a cor do aluno. Primeiro, porque nem todos os alunos teriam que marcar sua cor, já que seria uma amostra. Segundo, que a cor que um indivíduo marcasse não teria nenhum impacto na chance dele de estar na faculdade, então não teria nenhum incentivo para ele marcar diferente do que ele faria, digamos, numa pesquisa do IBGE, com a vantagem de se poder comparar com as estatísticas. Como marcar a cor não teria conseqüência individual, o ato de marcar a cor teria menos impacto no dia-a-dia da pessoa e portanto seria menos impositivo.

Um sistema de metas poderia ter um resultado mais radical do que um sistema de cotas. Isso porque o sistema de cotas dá margem às universidades de arranjarem maneiras de seguir os critérios formais e ao mesmo tempo reduzir significativamente o numero de alunos beneficiados. Isso parece estar acontecendo na UERJ. A UERJ instituiu uma renda per capita máxima muito baixa e uma nota de corte (para muitos departamentos) muito alta. Isso significa que existem pouquíssimos alunos que, ao mesmo tempo, acabaram o segundo grau, ganham mais do que esse mínimo e vão superar a nota mínima, o que significa que está sobrando vaga na cota. Um sistema de metas (com critérios mais gerais e com certa flexibilidade para os departamentos decidirem os detalhes) eliminaria esse problema.

É possível que membros do movimento negro continuassem criticando esta proposta, argumentando que ela eliminaria a discussão sobre desigualdade racial e discriminação no Brasil. Uma forma de resolver isso seria incluir esses temas no currículo da universidade, o que, no meu ver, deveria incluir uma discussão que questione o conceito de raça como algo com base biológica, e explique para os alunos que esse conceito só faz sentido como um fenômeno social. O tema das cotas está levando a uma discussão sobre o racismo mas deixando intacta a questão do racialismo (a idéia de que raças existem biologicamente), e os estudantes deveriam estar discutindo os dois assuntos. Vale a pena ressaltar que o discurso de miscigenação também é um discurso racialista, pois se não existem raças, também não pode haver miscigenação. De novo, acho que cada departamento deveria ter a liberdade de escolher como inserir a discussão sobre essas questões no currículo, tentando relacioná-las com a área específica de cada curso.

Em resumo, a proposta seria o seguinte. Um sistema de metas raciais (que pode ser combinado com outros critérios), que seria avaliado com base em uma amostra de alunos no terceiro ou quarto período, com recursos do governo atrelados ao cumprimento ou não dessas metas. Junto com isso, uma proposta de incluir nos currículos uma discussão sobre desigualdade racial, racismo e sobre o conceito de raça/cor (que pode incluir uma discussão mais ampla sobre desigualdade social no Brasil).

Contribuição de Claudio de Moura Castro: o relatório de Mr. Saturnino

Cláudio de Moura Castro, que dispensa apresentações, nos envia o seguinte texto, preparado para um livro comemorativo a ser publicado pela Linha Direta:

Saturno envia ao Brasil um disco voador. Para evitar as dificuldades de pronúncia, chamemos de Mr. Saturnino o chefe da missão exploratória do MEC de lá. Seus termos de referência: entender a nossa educação. Para isso, compra todas as revistas e periódicos sobre o assunto. Metodicamente, põe-se a analisar o que dizem.

Mr. Saturnino fica impressionadíssimo. Lê centenas de artigos exibindo teorias complexas e abstratas. Há duelos doutrinários, travados em linguagem rebuscada e adjetivação exaltada. Fala-se de Vygotsky, Piaget, Paulo Freire, Foucault, Habermas, Deleuze, e muitos outros. Denuncia-se a ‘sociedade disciplinar’, em coro com Foucault. Disparam-se estocadas nos ‘conteudistas’ (Mr Saturnino não entendeu o termo, mas concluiu que seriam pessoas abomináveis) e nos incautos que defendem um tal método fônico. Exalta-se o ‘espírito crítico’, a ‘transversalidade dos conhecimentos’ e a ‘formação do homem integral’. Que país avançado é esse Brasil!

E como deve ser boa a sua educação, já que tão doutos ‘scholars’ sequer julgam necessário deter-se nos seus resultados. De fato, não há registros de problemas dignos de nota – pelo menos, as revistas não os mencionam.

Embevecido, despacha para Saturno um relatório, sugerindo que lá se adotem as teorias discutidas tão calorosamente no Brasil.

Mas fazia parte dos termos de referência de sua missão visitar outros países mais ricos. Imagina ele que lá encontraria teorias ainda mais sofisticadas. Ordena ao seu piloto que faça um plano de vôo para visitar a Coréia e Cingapura, famosas pela excelência de suas escolas. Mas enquanto a tripulação checa mapas e rotas, alguém lembra que são países com uma pedagogia muito peculiar. Os educadores acreditam que basta sentar e estudar até aprender. O segredo do sucesso seria o caráter obsessivo dos estudantes. Uma aberração da personalidade.

Mr. Saturnino pede então planos de vôo para a Finlândia, país que teria a melhor educação no mundo e mais a França e Inglaterra, países com ensinos de enorme fama. Cansado de tantas teorias, organiza visitas às escolas desses países, para ver como conduzem suas salas de aula. A perplexidade toma conta de sua equipe.

As escolas adotam livros-texto e estes são usados metodicamente nas aulas, orientando o passo a passo da aprendizagem. Não é curioso que os educadores não se rebelem contra a tirania e autoritarismo dos manuais? Pelo pouco que entendeu do que seriam ‘conteudistas’, concluiu que na Europa os professores o são, cometendo uma horrenda heresia.

Havia lido que ‘a linguagem serve para articular a experiência do grupo que a usa, formando um modo de expressão que varia, dependendo da constituição desse grupo, de sua história e da própria evolução da linguagem’. Na Europa, o texto escrito tem um único significado que dever ser buscado pelo aluno e mostrado nas provas. Que falta de sensibilidade cultural!

Havia também aprendido no Brasil que ‘o aluno é um ser concreto, produto de uma realidade social e econômica, política e cultural. Essa realidade é o ponto de partida para o processo de apropriação do saber sistematizado, na busca de superação de uma visão desarticulada de mundo, em direção a uma consciência crítica. Nesse processo, o aluno desempenha o papel de construtor e reconstrutor do próprio conhecimento’. Mas Europa adota currículos oficiais e detalhados. O que acontece na sala de aula está indicado nos regulamentos ministeriais. Depois de ler tanto sobre o construtivismo, ficou chocado de constatar que, na Inglaterra, é o governo central quem decide as formas de ‘construir socialmente o conhecimento’. Pior, os regulamentos indicam o que ensinar, como ensinar e como distribuir o tempo da aula entre diferentes atividades.. Mais confusa ainda ficou a sua cabeça ao verificar que, com a introdução de tão abjeto detalhamento para as aulas, o ensino na Inglaterra havia dado um salto considerável.

Nota outra heresia. Nos países visitados, o método fônico é o único aceito pelas autoridades. Na França o método global foi até proibido pelo Ministro. Mr Saturnino fica abismado de ver que, na Cidade da Luz, pairam as trevas sobre os melhores métodos de alfabetização.

Ainda ressoando em sua cabeça as advertências de Foucault, mostrando que a escola (tal como prisões e quartéis) é uma ‘instituição de sequestro’. Mr. Saturnino fica abismado ao ver na França uma disciplina férrea na sala de aula: ninguém conversa. E os recalcitrantes se arriscam a uma reguada, aplicada com competência pela professora – e sob o beneplácito da lei. Tudo errado pensou, não leram a imperecível obra de Foucault, seu compatriota, onde denuncia uma escola onde há a necessidade de ‘criar mecanismos de vigilância e as conseqüentes punições para aqueles que, por um motivo ou outro, não se adaptassem a um modelo preestabelecido de perfeição humana’. Como é possível tal ignorância, se os longínquos brasileiros citam Foucault a cada momento?

E a interdisciplinaridade, conquista teórica irreversível de pensadores de vanguarda? Vejam só, adota-se uma grade curricular, onde cada professor ensina a sua disciplina, com mínimas visitas à ciência do vizinho. Pobres europeus, não descobriram que é preciso ‘romper com a segmentação e o fracionamento’ e, assim, ‘compreendê-lo como expressão e base do projeto político e pedagógico da escola, culturalmente determinado’.

No Brasil havia aprendido que a avaliação ‘será enriquecedora, desde que seja parte de um processo de construção de saberes e conhecimentos, sobre intencionalidades e conteúdos, metodologias e fins propostos com conseqüentes tomadas de decisão’. A bem da verdade, não estava seguro haver entendido, mas ficou impressionado com a erudição. Foi um choque ver na Europa ‘ditados’, ‘para casa’, provas e redação (esta última, com estrutura fixa e definida no currículo nacional). Competem todos febrilmente pelas notas e até pelas medalhas. Um brasileiro havia se queixado de que ‘parte de nossa sociedade ainda utiliza régua e compasso para medir os indivíduos em função de suas conquistas’. Mas na Europa, é a régua e compasso para todos (e as vezes, a régua sozinha, para golpear a munheca do infrator). Uma lástima.

Ainda mais decepcionante foi ver como funciona a burocracia escolar da Europa. Os diretores são escolhidos pelo Ministério da Educação, sem qualquer consulta às bases. Os diretores ousam mandar, tampouco consultando alunos ou professores. No Brasil, Mr. Saturnino havia prestado atenção às denúncias contra o autoritarismo. Mas parece que os europeus não descobriram tais abusos do poder.

Outra surpresa foi descobrir que há inspetores nacionais que, sem mais nem menos, visitam as escolas. Arrogantemente, vão se sentar nas salas de aula, de prancheta em punho, anotando os erros e acertos dos professores. E pobre do mestre que barbeirar seriamente. Suas promoções tornam-se mais problemáticas. Sobre tal assunto, lembra-se haver lido que no Brasil isso seria inaceitável, uma verdadeira agressão à escola e à dignidade do professor.

Finalmente, registrou que os pobres alunos são obrigados a assistir aulas por até seis horas todos os dias. E são massacrados com intermináveis deveres de casa.

Interessado no comportamento bizarro dos professores, perguntou-lhes o que achavam de Vigotsky e de Piaget. O primeiro, não conheciam. Mas conheciam Piaget: era um excelente relógio suíço, embora muito caro. Mr Saturnino estava completamente perdido. Como era possível que os professores não houvessem se dedicado com afinco a ler as obras completas desses dois luminares? Como seria possível dar boas aulas sem tal conhecimento?

Mr Saturnino termina as visitas profundamente desapontado com as escolas européias. Fazem tudo errado. Os grandes teóricos mandam fazer, elas fazem o contrário. Está decidido, no seu relatório vai botar os europeus nos seus medíocres lugares. Tanta riqueza material e tanto atraso pedagógico, diante de um Brasil pobre, mas sábio em assuntos de educação.

Temendo a sabatina que poderia vir de algum superior ranzinza, Mr Saturnino resolve olhar um pouco os resultados das avaliações – que não são jamais mencionadas nas revistas brasileiras que leu. Há um tal SAEB, indicando que, na quarta série, metade dos alunos lê mal e entende menos ainda. O INAF indica que três quartos da população adulta é analfabeta funcional. Em uma prova internacional de 1991, o Brasil heroicamente conquista o penúltimo lugar, escapando do último, porque Moçambique estava em plena guerra civil. Mas no PISA, em 2001, o Brasil não escapa e fica em último lugar.

Em contraste, a Finlândia sai em primeiro lugar, no mesmo PISA. Inglaterra e França obtêm posições invejáveis. Como é possível? Esses europeus fazem tudo errado e terminam com os sistemas de melhor desempenho!

Nesse momento, Mr Saturnino não entende mais nada. Sua primeira dúvida é muito simples. Por que, as mentes tão portentosas e ilustradas do Brasil nunca escrevem que a educação do país obtém resultados tão pífios? Em vez disso, as discussões são sempre sobre teorias abstratas e sobre planos grandiosos para transformar radicalmente o mundo. A segunda dúvida é pouco lisonjeira para os geniais autores que leu. Se suas teorias são tão boas, por que não permitiram ao país obter melhores resultados – que mais não fosse, melhores que seus visinhos?

Coincidiu sua estada em Paris com o lançamento do Beaujolais nouveau. Sentado em uma brasserie, bebericando uma amostra da nova safra, dá voltas à imaginação. Como seria possível que os melhores resultados estivessem em uma Europa tradicional e autoritária, ainda praticando uma educação que as melhores cabeças do globo afirmavam estar irremediavelmente errada. Em contraste, o Brasil, totalmente au courrant de todas as teorias recentes, tinha uma educação pra lá de lamentável.

Auxiliado pelo Beaujoulais, vem a inspiração! O PISA e outros tais resultados eram medidas rasteiras de habilidades mecanicistas. Nada a ver com as conseqüências imensuráveis de uma educação liberadora e integral. Os testes eram uma medida apenas da qualidade da produção de ‘robozinhos’, dóceis e intelectualmente castrados. A verdadeira meta de uma educação deveria ser a criatividade e a construção do ‘homem integral’. A Europa produz robôs enquanto a boa educação produz cidadãos conscientes e criativos. Pronto. Estava resolvido o dilema.

Satisfeito, paga a conta e sai vagando alegremente pelo Quartier Latin. Por puro acaso, passa pelo Liceu Louis, le Grand, um dos melhores da França. Casualmente, pega um folheto, explicando que, no século XVIII foi necessário construir um calabouço com capacidade para 100 alunos, pois andavam muito rebeldes. Mais uma confirmação do autoritarismo das escolas.

Contudo, ao caminhar pelos bulevares, vai vendo os nomes de ruas, estátuas e monumentos. Neles se festejava a memória de escritores, escultores, pintores, atores, compositores e cientistas franceses. Eram centenas, famosos pelo mundo afora. Mr. Saturnino ficou pensando. Será que todos levaram reguadas da professora?

Nesse momento, Mr. Saturnino só tem uma preocupação: descobrir uma maneira de interceptar seu relatório sobre o Brasil, antes que seja visto pela burocracia do seu MEC.

Reducao da desigualdade, da pobreza, e os programas de transferencia de renda

Coloquei na minha página na internet uma versão revista do texto sobre o tema acima, que incorpora, na tabela 10, um sumário dos dados mais recentes do suplemento daPNAD 2004 sobre os programas sociais do governo brasileiro (quadro 10). O texto pode ser baixado aqui. Estes dados não alteram a conclusão do texto original:

As análises sobre a evolução da pobreza e da desigualdade social mostram que, ao contrário do que muitas vezes se afirma, tanto a pobreza quanto a desigualdade no Brasil vêm se reduzindo ao longo do tempo, com algumas mudanças significativas nos anos mais recentes. As principais causas da redução da pobreza e da desigualdade são a melhoria progressiva do acesso à educação e da disponibilidade e custos reduzidos de alimentos e bens de consumo duráveis. O baixo crescimento da economia nos anos mais recentes tem constituído uma limitação importante neste processo, achatando os rendimentos nominais. No entanto, o aumento sistemático dos indicadores de consumo, expectativa de vida, educação e condições habitacionais, mesmo quando a economia não cresce, mostra uma redução progressiva das condições de pobreza extrema, ainda que novos problemas tenham também surgido, sobretudo os associados às condições de vida nos grandes aglomerados urbanos. Os dados mostram também o grande peso da distribuição regressiva dos benefícios das aposentadorias e pensões, concentrados nos segmentos de renda média e alta.

As políticas de transferência de renda têm tido algum impacto nestas modificações, mas limitado, tanto pelo pequeno volume dos recursos transferidos para cada família, quanto pela má focalização dos gastos, já que estes recursos são distribuídos tanto a famílias realmente pobres quanto a outras menos pobres, e, além disto, a outras cujo padrão de vida não se expressa com nitidez na renda monetária medida pela PNAD. Uma política que fosse capaz de redistribuir melhor os gastos públicos em aposentadorias e pensões poderia contribuir muito mais para a redução da desigualdade de renda no pais país do que as políticas compensatórias implementadas atualmente.

Um dos argumentos a favor da prioridade que tem sido dada recentemente às políticas de transferência de renda é que elas seriam associadas a condicionalidades, ou seja, à freqüência das crianças à escola, ao atendimento das famílias aos centros de saúde púbica, e assim por diante. Isto seria importante, porque, a médio prazo, as transferências de dinheiro deveriam fazer com que as pessoas deixassem de depender destes recursos. Não há evidência, no entanto, que estas condicionalidades estejam de fato sendo implementadas, e nem há razões para crer que políticas que busquem alterar o comportamento quotidiano das pessoas possam ser dirigidas e comandadas a partir do governo federal, em uma relação direta com as famílias.

De uma maneira geral, chama a atenção que as análises macroeconômicas que buscam estimar o impacto destes programas deixam de tomar em conta as questões relacionadas ao sistema federativo e os problemas associados aos diferentes níveis de implementação dos programas sociais. O governo federal tem condições de redistribuir recursos e estabelecer sistemas genéricos de incentivo, mas muito pouca capacidade de gerenciar ações de nível local. De fato, as evidências disponíveis sobre o programa bolsa-escola mostram que se trata de um programa muito pouco efetivo do ponto de vista educacional, não só pela má focalização, como também pela impossibilidade de controlar efetivamente sua condicionalidade mínima, que é o controle de freqüência à escola. Os recursos a ele destinados teriam tido maior impacto se fossem utilizados para fortalecer as escolas e seus vínculos locais e diretos com as comunidades das quais participam. Programas específicos que apóiam ações descentralizadas de governos estaduais, municipais e da comunidade, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, parecem ser muito mais bem sucedidos do que programas genéricos como o da bolsa família. É um tema que precisa ser aprofundado.

Métodos de alfabetização: contribuicao de Luiz Carlos Faria da Silva

O professor Luiz Carlos Faria da Silva, do Departamento de Fundamentos de Educação da Universidade Estadual de Maringá, manda a contribuiçao abaixo sobre o tema.

(várias pessoas continuam recebendo copias destas notas com caracteres chineses ou outros no lugar das letras acentuadas. Quando isto ocorrer, é melhor clicar no link do blog ao final da mensagem, e ver o texto original na Internet).

Eis o que diz Luiz Carlos:

O termo construtivismo não é de uso científico. Ele tem uso formalizado somente na alta Matemática e na Arte. Em educação não há definição formal de construtivismo. Menos ainda de alfabetização construtivista. Ao contrário, há tantas noções de construtivismo quanto pedagogos. Alfabetização construtivista é uma expressão cujo conteúdo é completamente lábil. Logo…

Não existe no Brasil, há pelo menos 25 anos, curso de Pedagogia ou Letras que ensine o que é e como se aplica a instrução fônica na alfabetização. Pelo contrário. Quando se fala hoje em instrução fônica pensa-se no ba-be-bi-bo-bu. Isso é apresentado como contra-exemplo, há quase 30 anos, em todas as Faculdades de Educação e Letras do país. Mas não é instrução fônica.

É de doer a desinformação científica revelada nas reportagens e cartas veiculadas ultimamente pelo Jornal Folha de São Paulo na cobertura do “debate” sobre alfabetização. Quando é coisa de jornalistas e leitores, menos mal. Mas quando é coisa de doutores em educação, inclusive de altos dirigentes da universidade e da educação nacional, é grave.

Levantamentos parciais indicam que a instrução fônica (desenvolvimento de consciência fonêmica e ensino explícito e sistemático do princípio alfabético), como meio de quebrar o código alfabético, está ausente da formação de educadores há décadas no Brasil.

Ora, a consciência fonêmica e o domínio do princípio alfabético são, segundo amplo consenso entre pesquisadores de todo o mundo, os fatores com maior capacidade de predição do sucesso na alfabetização em todas as língua alfabéticas.

Há evidências científicas suficientemente acumuladas de que o desenvolvimento da consciência fonológica trás benefícios inclusive para o aprendizado de leitura em língua cujo sistema de escrita é logográfico ou morfo-silábico, como o chinês, silábico, como o kanji japonês, ou alfabético como o hangul coreano, conforme mostra Charle Perfetti, pesquisador do LRDC – Learning Research Development Center, na University of Pittsburgh e do CNBC – Center for Neural Basis of Cognition, além de Ying Liu e Julie Fiez, também do LRDC, e Li-Hai Tan, da Hong Kong University.

Qualquer consulta aos dados sobre média de idade dos professores brasileiros mostra que é ínfimo o número de alfabetizadores e/ou professores de Ensino Fundamental cuja formação superior terminou há mais de 25 anos. A idade média dos professores de pré-escola e classe de alfabetização era, por volta de 1996, de 32 anos. E os professores de 1ª á 4ª séries tinham em média, nessa mesma época, 35 anos. A informação é do Censo do Professor de 1997 feito pelo MEC/INEP.

Detalhe: a porcentagem de professores de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental no Brasil graduados em curso superior já era de 48% há dez anos, segundo o mesmo Censo do Professor de 1997. Hoje essa porcentagem é certamente muito maior. E a média de idade dos professores, tudo leva a crer, caiu.

Sendo assim, quantos serão hoje no Brasil, e onde atuarão professores de Ensino Fundamental, diretores de escolas, supervisores pedagógicos, assessores de Secretários de Educação e técnicos dessas secretarias, que terminaram suas formações pedagógicas de nível superior há mais de 25 anos, portanto, fora da influência da concepção de educação e de alfabetização hegemônica em todos os centros de formação superior de educadores do país nas duas últimas décadas do século XX?

Onde se pode encontrar, nesse período, uma prova sequer de concurso para professor ou especialista em educação das redes públicas de ensino cujas questões não estivessem alinhadas com essa concepção educacional?

Os que terminaram seus cursos de Pedagogia a partir de 1985 nunca ouviram, a respeito de alfabetização, nas Faculdades de Educação, outra coisa a não ser Lev Vygotsky, Paulo Freire, Emília Ferreiro, Ana Teberosky, Telma Weisz e Magda Soares.

Há mais de 25 anos no Brasil não se ensina nada nos termos dos achados científicos que todas as revisões de literatura dos últimos anos confirmam, em todo o mundo:

a – No NRP Report nos EUA.

b – No Rapport 2005-123 do ONL na França.

c – No Rose Review, do Dfes na Inglaterra.

d – No National Inquiry into the Teaching of Literacy Report, na Austrália.

e – No Shapira Committee em Israel.

f – No balanço dos achados científicos dos estudos que o NICHD financiou em seu programa de pesquisas, iniciado em 1965, a fim de que cientistas de todo o mundo explicassem: como as crianças aprendem a ler? Por que algumas aprendem mais facilmente que outras? O que funciona melhor para ensinar a ler cada um desses tipos de crianças?

Nós testamos habilidades de leitura de crianças de 2ª série de escolas municipais de três cidades do Paraná. Os testes foram elaborados por João Batista Araújo e Oliveira, aplicados sob minha supervisão. E tiveram relevância estatística para toda a coorte de alunos de 2ª série das redes em que os testes foram aplicados. Com os critérios de desempenho em leitura baseados no Beginning to Read: Thinking and Learning About Print, da Marilyn Jaeger Adams e no Early Reading Instruction: What Science Really Tells Us About How Do Teaching Reading, da Diane Mcguinness.

É uma tragédia. Mais de 60% dos alunos não alfabetizados no início da 2ª série. Isso é comum nas redes públicas de escolas do Brasil. Os dados do SAEB apresentam indícios de que isso ocorre. E nós o comprovamos diretamente. Os alunos seguem a vida escolar aos trancos. Acumulam fracassos até a 4ª série. A falta de êxito na alfabetização dificulta o domínio da leitura. E o malogro no domínio da leitura lesa a capacidade de ler para aprender da 5ª série em diante.

Resultado? Uma legião de alunos ineptos para usar a leitura como meio de se instruir. Todos com diploma de 8ª série.

Isso é obra de quem?

De marcianos?

Ou do baronato de doutores das faculdades de educação e letras associados ao establishement burocrático-pedagógico, às ONGs, aos grupos de influência e de pressão que dominam a educação nacional, pública e privada, desde a redemocratização no final da década de 70 e início da década de 80?

Tomara que não inventem uma disputa política PSDB / PT para ver quem é responsável por isso. Em questão de alfabetização e de didática há mais acordo entre o PSDB e o PT que entre o Malan e o Palocci.

Aqui no Brasil as coisas não serão diferentes do que ocorre na França atualmente (vocês conhecem o affaire Laforgue?) e do que ocorreu nos EUA se quisermos realizar a recuperação da efetividade da educação escolar na alfabetização e ensino de leitura.

A Linnea Ehri, Panel Member do National Reading Panel, conta, em um memorial de sua vida de pesquisa científica, feito para a conferência de recepção de um prêmio da Society for the Scientific Studies of Reading, o seguinte, falando sobre um artigo seu cuja publicação foi rejeitada pela Reading Research Quarterly, a revista da IRA – International Reading Literacy:

Normally my reaction to negative reviews is, first, to let the anger subside, and then to consider the criticisms and try to devise ways to address them, either with logic or additional data. However, in this case, there was nothing to address. The entire study had been rejected as insignificant. So we sent the paper to Child Development, a highly respected journal, where it was published (Ehri & Roberts, 1979). A year later, we conducted another similar study with findings supporting the first study (Ehri & Wilce, 1980). We submitted this study to the same reading journal, now with new editors. This time it was accepted for publication and in fact received an award from IRA, indicating that this research did have value.
However, the resistance to reading research that focused on words, phonemes, and letters only grew stronger in subsequent years, as more data appeared supporting its importance for learning to read. What kind of resistance was this? Unfortunately, it was not scientifically conducted studies. Quite the contrary. Science was denounced as a means of providing answers to questions. Name calling tactics were employed. For example, I recall attending a symposium, entitled “Researching Whole Language” at the 1989 AERA meeting. Rich West, Keith Stanovich and I stood at the back of a very crowded room. We found ourselves the target of criticism as one speaker contrasted whole language research to traditional research. He criticized traditional researchers for going into schools and conducting studies that have not been designed through collaboration with the teachers and do not address needs that teachers feel are most important. He branded these researchers “academic rapists.” This was clearly an attitude shaping tactic intended to turn educators against an approach to research that had produced evidence challenging whole language beliefs.
Another example of the use of maligning language to prejudice educators occurred during a conference that was organized by IRA and the Center for the Study of Reading for the purpose of presenting the latest research to publishers of reading programs. Marilyn Adams was on the program talking about the book she had just written, Beginning to Read: Thinking and Learning about Print (Adams, 1990) which reviewed much of the research on beginning reading processes that I and others had published. Joanna Williams and I were discussants for Marilyn’s presenta-tion. Later in the day, another discussant who was a whole language advocate expressed disagreement with Adams and branded all of us “phonicators.” Since then Marilyn has been the target of many such attacks. Her book has been referred to as the work of the devil. At an IRA meeting, many people heard a whole language leader assert publicly that Marilyn should be “shot with a silver bullet,” implying that she was a vampire.

E Laurent Laforgue, da Academia de Ciências da França, Professor do IHÉS – Institut des Hautes Études Scientifiques, Medalha Fields em 2002, equivalente ao Prêmio Nobel no campo das matemáticas (não há Prêmio Nobel de Matemática), no número de fevereiro da Revue Parlamentaire:

Nous les défenseurs de l’école nous adressons aux personnalités politiques de toutes les sensibilités. L’école est la plus précieuse institution de la République et ne pourra être sauvée de la ruine que si toutes les tendances politiques reconnaissent la nécessité d’une rupture radicale avec les politiques suivies depuis trente ou quarante ans. L’annonce par M. de Robien d’un retour aux méthodes alphabétiques-syllabiques est remarquable car elle rompt avec ce que les responsables de l’Éducation nationale ont dit et imposé depuis des décennies. J’espère que ce premier pas important sera suivi de beaucoup d’autres.

Vamos ver até quando o Brasil vai ser enganado por pedagogias ineficazes. Até quando a sociedade vai tolerar esse crime de lesa-pátria?

A escola brasileira em geral não sabe mais ensinar a ler. O país joga uma montanha de dinheiro fora. Enquanto não reaprendem a ensinar crianças a ler, vão aumentando o número de dias letivos, fazer Ensino Fundamental de 9 anos, escola de tempo integral. Mais aula e mais tempo de permanência numa escola ineficaz para ensinar a ler significa mais dinheiro malbaratado. E a sociedade inchará ainda mais com gente que desiste da escola, que não encontra nela nenhum valor e utilidade social pelos quais valha a pena lá permanecer.

No início de tudo está o fracasso na alfabetização.

É o Efeito Mateus.

Um Ministro que sabe disso e não toma atitudes imediatas não me parece corajoso.

PS.: Pai de um menino de 7 anos e meio e de uma menina de 6 anos aos quais fui obrigado a proteger da alfabetização em escola regular. Eles foram alfabetizados em casa, por mim e por minha esposa, antes que o Estado brasileiro me obrigasse a matriculá-los na escola.

Contribuições de João Batista Araujo e Oliveira ao debate sobre alfabetização

A nota de outro dia, sobre as prioridades da educação, parece estar gerando um debate salutar, que pretendo ir colocando neste blog. Exitem duas formas de contribuir para o debate. Uma é colocando um comentário debaixo dos textos. Outra, quando for um texto for mais elaborado, é enviando para mim, para colocar como nota separada. Nos dois casos, eu me reservo o direito de moderar a discussão. Quanto a contribuiçao é significativa, ela é também enviada a uma lista de pessoas que acompanham este blog. Quem quiser entrar na lista, é só enviar um email solicitando.

A contribuição de hoje é de João Batista de Araujo e Oliveira, que, nas “credenciais” que apresenta abaixo, só fala das coisas mais recentes, deixando de lado uma vasta experiência de trabalho no Brasil e no exterior em prol da educação. Com a palavra João Batista:

Minha contribuição se resume em quatro partes. Na primeira, em um parágrafo, apresento minhas credenciais. Na segunda faço dois conjuntos de afirmações categóricas para focar o debate. Na terceira, analiso três momentos do debate iniciado pela Folha, dois deles veiculados no blog do Simon. Concluo sugerindo termos para o debate.

I – Apresentando credenciais

Há 5 anos tento, sem sucesso, estimular a comunidade científica e profissional do Brasil a participar do debate sobre alfabetização infantil. Publiquei dois artigos na Revista Ensaio, há um terceiro artigo no prelo a ser publicado pela revista do SESC no próximo mês, alguns artigos em jornais, dois livros (ABC do Alfabetizador e Alfabetização de Crianças e Adultos) e coordenei, em 2003, o relatório Alfabetização Infantil: Novos Caminhos. Junto com a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados convidamos todas as instâncias formais como o CONSED, UNDIME, CRUB, ANPED, CNE, ABC e outros para discutir o relatório – sem qualquer resposta. Tentamos sensibilizar os ministros Cristóvam Buarque e Tarso Genro, sem sucesso. Recentemente o Ministro Fernando Haddad se sensibilizou com a questão e convidou o país ao debate. A Folha de São Paulo convidou-me para apresentar os termos da questão. Começaram a aparecer artigos, mas até hoje nenhum deles se referiu ao meu artigo ou, de modo particular, às quatro questões que nele coloquei. Portanto, considero que o debate não se iniciou. Jornais não costumam ser os veículos mais adequados para esse fim. Quem sabe o blog do Simon será o forum desse debate. Se algum leitor concordar ou discordar do que disse nesses publicações supra-referidas ou no que direi hoje, que compareça ao debate que este blog se propõe a acolher. O resto, possivelmente, continuará a ser bate-boca e jogo de platéia.

II- Fatos científicos sobre alfabetização

1. Alfabetizar significa dominar o código alfabético, ou seja, as relações fonema-grafema, com suas valências respectivas. Esta definição, consagrada por Stanovich (não vou citar referências aqui) é adotada universalmente entre os pesquisadores desta área – normalmente congregados sob o paradigma da Ciência Cognitiva da Leitura. Basta olhar as 20 revistas científicas mais importantes e rigorosas que publicam artigos sobre alfabetização para confirmar essa definição. Alfabetização, portanto, é diferente de compreensão (letramento). A prova mais cabal: um adulto analfabeto (ou seja, uma pessoa que comprende, mas não lê). A confusão estabelecida sobre o tema, especialmente entre os chamados construtivistas (termo indefinível no que se refere à alfabetização) é apenas uma confusão – como se pode ver por exemplo nos artigos que vêm sendo publicados na Folha pelos auto-declarados especialistas em alfabetização (não sabia que os havia tantos no Brasil, onde será que eles publicam seus trabalhos sobre o tema?). Mas essa confusão tem efeitos importantes sobre currículos, programas de ensino e avaliação. Na escola pública brasileira, por exemplo, ninguém sabe em que série se alfabetizam os alunos (os mais “progressistas”dizem que é um processo permanente…) Todas (poucas) avaliações que conheço no Brasil sobre alfabetização não medem alfabetização, medem compreensão. Se o aluno erra, continuamos sem saber se foi alfabetizado, pois não sabemos se não leu ou se não compreendeu. Como a maioria desses testes de compreensão é oral, também não se sabe se compreendeu porque sabe compreender ou porque leu e compreendeu. Quem tratar dessa questão, no Brasil, onde esses termos se confundem, tem que definir com clareza do que está falando.

2. Alfabetizar é uma habilidade relativamente simples, mas não trivial. Não fomos programados geneticamente para aprender a ler, mas com um pouco de ajuda conseguimos fazê-lo – e o fazemos com razoável sucesso desde o tempo dos Sumérios, há mais de 3.500 anos, e mesmo antes de termos uma pedagogia da alfabetização ou uma ciência cognitiva da leitura. Isso significa que podemos usar vários métodos para alfabetizar. Da mesma forma que podemos usar vários instrumentos para pregar pregos na parece, inclusive batendo com a cabeça. Quem frequenta a literatura científica sabe, no entanto, que alguns métodos são mais eficazes do que outros. Nos últimos 30 anos sabemos que os métodos fônicos são os mais eficazes. E mais, aprendemos porque o são. E mais: sabemos que os métodos fônicos que ensinam o código de maneira sistemática e explícita (vide as competentes meta-análises de Dianne McGuiness) são MUITO mais eficazes do que os demais. Num país em que não conseguimos alfabetizar a maioria dos alunos (vide SAEB e o PISA, que é mais eloquente), não me parece adequado tentar redescobrir a roda e concluir que todos os métodos podem ensinar. A contribuição acadêmica que me parece legítima é identificar aplicações adequadas do método que se comprovou mais eficaz. E a contribuição dos responsáveis pela política pública seria a de estimular a adoção desses métodos – a exemplo do que se faz em TODOS os países desenvolvidos cujo sistema de escrita é alfabético.

III- Três momentos do debate

1. Deplorável a afirmação do ex-Presidente FHC de que o debate entre construtivistas e método fonético (ele deveria ter dito fônico) é estéril. O Brasil está atrasado até para esse debate, que se tornou muito profícuo nos demais países. Todos os países desenvolvidos e especialmente França, Estados Unidos e países do Reino Unido (e agora Austrália) – que foram as maiores vítimas de idéias equivocadas sobre alfabetização – levantaram a questão, e mesmo sem ter conseguido consenso entre educadores – seus governos mudaram suas políticas de alfabetização. Na Inglaterra os métodos fônicos são obrigatórios; na França recomendados (e os métodos ditos “globais”são interditados), e nos Estados Unidos somente os sistemas educacionais que adotam métodos fônicos se qualificam para receber fundos federais. Tudo isso é de conhecimento público, está na internet e não precisa ser documentado. Mas também não pode ser ignorado.

2. No site do Simon Ana Cristina Collares, se qualifica (não sou pedagoga) e, ao mesmo tempo faz declarações contundentes como “as pesquisas que comprovam a eficácia desse método possuem também várias falhas e seus resultados são discutíveis.” Só posso sugerir que minha colega submeta um artigo a qualquer um dos principais jornais científicos que trata da questão criticando a metodologia das análises e metaanálises mais recentes de Snow, Stanovich, Adams, o National Reading Report ou o livro já referido de McGuiness. É assim que se dá o debate científico. Ainda acredito que há uma diferença entre doxa e episteme.

No entanto, Ana Cristina levanta uma questão que vale a pena discutir, pois reflete um erro comum de compreensão dos termos do debate. Ela afirma que quem aprende pelo método fônico fica atrás em compreensão de textos. Esse tipo de afirmação é próprio de quem confunde alfabetização com compreensão de textos. O maior preditor de compreensão de textos é a compreensão oral (o que pode ser medido ANTES e independentemente da alfabetização). O melhor preditor de alfabetização ANTES da pessoa estar alfabetizada é o domínio do princípio alfabético (que supõe o desenvolvimento da consciência fonêmica). Dominar o princípio alfabético significa saber que as letras representam som (para o leitor não especializado: isso é diferente de dominar o código alfabético, que são as valências específicas atribuídas às letras ou grafemas, e que se constitui no cerne da alfabetização). Já o melhor preditor de compreensão entre alunos alfabetizados é a fluência de leitura. O maior determinante da fluência de leitura, por sua vez, é o domínio do código. Desde o início da década de 80 Stanovich já comprovou que o bom leitor é aquele que lê todas as letras e automatiza o código, o mau leitor é aquele que precisa do contexto para ler. Contexto ajuda a compreender e retarda a leitura. O segredo da alfabetização é ensinar a ler bem, para que o aluno possa compreender. Ler bem é condição necessária, não suficiente, para a compreensão. O erro da Ana Cristina – como da maioria dos especialistas em alfabetização no Brasil – decorre da confusão dos conceitos do que seja ler e compreender. E, claro, de confundir evidências científicas com opiniões particulares.

3. Fora do âmbito do blog, lemos há poucas dias resultados preliminares de uma pesquisa assinada pelo prof. Creso, da PUC/RIO. A novidade apresentada é que não há diferença entre métodos. Não tive acesso aos dados – apenas ao que está no jornal. Cabe-me, portanto, apenas fazer alguns alertas, pois à primeira vista parece que estamos prestes a redescobrir a roda.

Uma das maiores dificuldades dos cientistas que pesquisam o método fônico é compreender como uma criança pode ser alfabetizada por métodos globais ou outros (como o de fazer hipóteses, adivinhar o sentido da palavra ou usar pistas para descobrir o que está escrito). E sabemos que isso funciona, que pessoas se alfabetizam dessa forma. A questão é saber como isso ocorre. Fernando Capovilla (USP) investigou essa questão. Ao invés de perguntar ao professor pelo seu método, analisou com rigorosa metodologia as práticas efetivas de sala de aula. E concluiu que o aluno aprende a ler melhor (ele mediu leitura, não compreensão) em função do tempo gasto no ensino das relações entre fonemas e grafemas. E isso independia do professor dizer que é isso ou aquilo. Essa pesquisa está devidamente publicada. Portanto, qualquer discussão sobre esse tema deve começar a partir daí. Ignorar o que já foi descoberto é tentar redescrobir a roda. Os estudos já citados de McGuinness corroboram esses achados de Capovilla. O relatório Rose, publicado na Inglaterra ao final de 2005, corrobora a superioridade dos métodos fônicos sistemáticos (e sintéticos). O debate científico avançará se novas pesquisas desconfirmarem esses achados ou refinarem esses conhecimentos. Resta esperar pelas contribuições científicas que a pesquisa do professor Creso irá trazer ao estado da arte, por enquanto o jornal A Folha de São Paulo apenas diz que redescobrimos a roda.

4. Da natureza do debate intelectual e científico

Um debate intelectual só existe se tiver como objetivo e critério a busca da verdade. Há cinco anos estudando este assunto – e partindo do zero, sem qualquer preconceito ou conhecimento específico do assunto – tenho me pautado por esse princípio. Não consigo compreender como pessoas intelectualmente honestas possam ignorar ou omitir as evidências científicas a respeito. Como não consigo entender como intelectualmente honesta a recusa ao debate, pois isso não ajuda a buscar a verdade – ainda que seja a precária e fugidia verdade científica. Nem sempre esses debates são polidos – em outros países o bate-boca foi ainda maior do que estamos assistindo. E frequentemente levam ao tribalismo – incitados pelo maniqueísmo (fônicos vs. construtivistas).

Um debate científico possui dois outros requisitos. O primeiro é de natureza lógica: os conceitos têm que ser definidos com clareza e consistência (ex. O que é alfabetizar, o que é compreender, o que é letramento). O que é método. O que é método fônico (uma ilustre pesquisadora nacional disse na Folha que o método Paulo Freire é fônico!!!!). E também disse que método depende de professor – portanto não existe método. As conclusões têm que ser lógicas, seguindo os métodos da indução ou da dedução.

O outro requisito é o respeito aos procedimentos. A ciência evolui testando e descartando hipóteses. Teorias são apenas explicações – as que sobrevivem são as que explicam mais,melhor e de forma mais econômica. Teorias não são peças de museu a serem colocadas em altares privados. Não existe uma teoria fônica da alfabetização – existem milhares de estudos empíricos convergentes, que explicam, de maneira mais ou menos adequada, como o cérebro aprende a ler e como melhor podemos ajudá-lo. Essas pesquisas são publicadas em revistas acadêmicas, revistas por pares. Quanto melhor a revista, mais difícil publicar. São essas as referências que contam, e que precisam ser trazidas para um debate acadêmico, com respeito ao saber acumulado.

Nesse espírito, reitero minha disposição ao debate. Se algo do que disse acima e em minhas publicações estiver errado, ilógico ou não fundamentado, que se apresente o contraditório.

Meu reino por uma tomada!

Em Oslo por uma temporada, saí procurando adaptadores poder ligar meus diversos aparelhos de três pinos ou com padrão americano nas tomadas daqui. Ninguém tinha, fui mandado de loja em loja, até que alguém me indicou uma grande loja especializada em todo tipo de artigos elétricos. Depois de procurar em todas as prateleiras, resolvi pedir a ajuda do técnico especializado que me disse, em excelente inglês, que nenhuma loja da Noruega venderia isto – e havia um certo tom de reprovação na voz, como se eu tivesse querendo comprar algum tipo de droga proibida. Me lembrei que, dez anos atrás, tive o mesmo problema em Oxford, na Inglaterra, aonde acabei sendo socorrido pelo técnico do sistema de computação da universidade, que me passou um adaptador como quem vende uisque contrabandeado.

Imagino que seja um velho mecanismo de reserva de mercado, para forçar as pessoas a comprar produtos nacionais ou importados localmente, ao invés de trazê-los dos Estados Unidos, aonde custam a metade, ou da Ásia. Algo como as “regiões” de proteção dos DVDs, e mais fáceis ainda de burlar (mas vou ter que esperar a primeira viagem para comprar adaptadores em algum aeroporto, aonde são vendidos aos montões, ou então em algum camelô em algum outro país, já que aqui não existem). E isto quando , na area de produtos eletrônicos, a única indústria local que ainda parece sobreviver na Escandinávia, pelo design extraordinário, é a dinamarquesa Bang & Olufsen, mesmo assim enfrentando a forte concorrência em estilo da Sony e, cada vez mais, da Apple. É uma mostra da força da indústria local, capaz de manter indefinidamente esta proibição ridícula de venda de adaptadores, mas também da sua obsolecência, no mundo globalizado do qual os países escandinavos participam tão bem em tantos aspectos.

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