Garotas de Ipanema

Mais uma vez a Europa se curva diante do Brasil! Em sensacional furo de reportagem, O Globo descobriu que as barrigas fotografadas pelo New York Times em Ipanema não eram de nossas garotas, mas de alegres turistas checas. Está salva a pátria! Ainda segundo O Globo, o NYT publicará uma retratação.
Neste jogo de empurra das barrigas, a gente até se esquece que a grande barriga foi a confusão criada pelo governo quando da publicação dos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE que mostrou, como aliás já sabíamos, que o Brasil não tem um problema generalizado de fome que justifique uma política social centrada nesta questão. O que temos é uma situação de muita pobreza, associada a problemas de emprego, baixa produtividade, educação de má qualidade, caos urbano e incapacidade do setor público em quase todos os níveis de desenvolver programas sociais efetivos. São estes os problemas que precisamos enfrentar.

Educação privada: direito ou função delegada?

Um dos temas que surgiram na discussão sobre o projeto de reforma universitária do MEC é se a educação em geral, e a educação superior em particular, é um bem público, de responsabilidade do governo, ou um dreito das pessoas, em relação ao qual o poder de intervenção do governo deve ser limitado. A posição do Ministério é clara: a educação é um bem público, e por isto ela só pode ser exercida privadamente por delegação e sob estrita vigilância do governo. Eu tenho defendido o oposto: a educação, em todos os níveis, é um direito dos cidadãos, e um serviço que pode ser proporcionado por quem se habilitar, com toda a liberdade, com interferência mínima do setor público.

Vale a pena aprofundar esta questão. A educação pública, como sabemos, é um produto dos estados nacionais que surgem a partir dos séculos 18 e 19, muitas vezes em forte conflito com a Igreja, que se transforma, sobretudo na França, em grande defensora da educação privada, que na realidade era a defesa da educação religiosa. A disputa entre Estado e Igreja pelo controle da educação foi, em grande parte, uma disputa ideológica, entre os defensores de filosofias iluministas e agnósticas e os defensores de valores religiosos, e também fez parte do processo de afirmação do poder dos estados nacionais sobre grupos específicos que resistiam a seu poder e sua autoridade. No Brasil, nos anos 30, a Igreja tentou assumir o controle da educação pública, mas acabou aceitando uma posição menos dominante, criando suas próprias universidades e garantindo o ensino religioso nas escolas públicas, como existe até hoje.

Esta não é, no entanto, a questão atual. Nas sociedades modernas, a educação passou a ser vista como um direito dos cidadãos, o principal instrumento para promover a igualdade de oportunidades em um mundo em que o trabalho e a participação social dependem da capacitação e do conhecimento. O setor público deve zelar e prover recursos para que todas as pessoas se eduquem, da mesma maneira em que deve zelar e prover recursos para elas tenham acesso à segurança e aos cuidados médicos.

Mas, que educação é esta que o setor público deve proporcionar, e até onde vai esta obrigação? Aqui as coisas se complicam, porque as ideologias voltam a se misturar. A visão republicana tradicional é que existiria uma distinção clara e óbvia entre o mundo da Ciência, do Conhecimento, da Cultura e dos Valores Cívicos, e o mundo da superstição, da religião, dos particularismos e dos valores privados; e que o Estado, através de suas repartições nos Ministérios e Secretarias de Educação, seria o guardião deste mundo iluminado, contra o mundo das trevas. Eu sou um racionalista empedernido, defensor dos valores da ciência, da racionalidade e do interesse público, mas isto não me impede de ver que as coisas não são divididas tão claramente assim, e que as burocracias públicas não têm o monopólio das virtudes, nem o setor privado o monopólio dos vícios. Eu acredito que a responsabilidade do Estado, na área da educação geral e pública, deve se limitar a uma agenda mínima – assegurar que todos tenham acesso à leitura e à escrita, e aos meios de informação – e não a uma agenda máxima – definir de antemão os conteúdos de todos os conhecimentos que as pessoas devam ter. Seu papel é garantir a igualdade de oportunidades, e não fazer com que todas as pessoas sejam iguais, conforme o mesmo molde.

No ensino superior, esta questão se complica por duas razões principais. Primeiro, porque muitas profissões conseguiram, através dos anos, que o Estado assumisse o papel de zelar pelo seus monopólios profissionais privados, e isto é apresentado como se fosse o Estado, em nome da sociedade, que estivesse zelando pelo interesse público. Os exemplos extremos são a medicina e o direito, e todas as profissões de nível superior no Brasil procuram imitá-los através de legislações de reconhecimento e regulação profissional.

Mas não está certo isto, que o Estado cuide para que não existam falsos médicos e advogados incompetentes, enganando a população? Mais ou menos. No Brasil, os homeopatas têm direito a praticar medicina, mas as enfermeiras não podem receitar remédios para um resfriado, e os optometristas não podem dar receitas para óculos. Existe, neste momento, uma grande discussão sobre uma proposta de definição legal de “ato médico” que, se for adotada, acabaria com a autonomia profissional de várias categorias. Estas disputas se fazem em nome dos conhecimentos e das competências dos diversos setores e grupos, mas é também uma disputa política, cujo resultado pode ser muito diferente de um país a outro. Novamente aqui, o mais recomendável é que o setor público se limite ao controle de situações de abuso extremas, e faça com que a propria sociedade, através das associações científicas e profissionais e da opinião pública, vá definindo o que é aceitável ou não, aceitando que continuarão a existir ambiguidades, pessoas que adoram a homeopatia, e outros que consideram que os homeopatas não passam de charlatães.

O outro complicador, em relação ao ensino superior, é que existe uma relação pouco clara entre os benefícios privados dos títulos de nível superior e os benefícios públicos, ou sociais, desta educação. No passado, havia a idéia de que seria possível planejar, “cientificamente”, quantos médicos (homeopatas, alopatas, etc), engenheiros, advogados e sociólogos o país necessitaria. Hoje ninguem, em sã consciência, acredita nisto. Todo mundo quer ser “doutor” hoje, ainda que seja para não ficar para trás em relação aos amigos, e em geral os benefícios privados dos cursos superiores são altos. Mas, se os advogados ganham muito dinheiro e a profissão cresce cada vez mais, isto é bom ou mal para o país?

Aqui, mais do que na educação básica, fica claro que não cabe ao setor público financiar toda a educação superior, nem vigiar para que ela obedeça aos padrões e normas definidos pelos diversas diversas corporações profissionais e pelas burocracias dos ministérios. O setor público pode, e deve, identificar e apoiar as áreas aonde existam carências evidentes, inclusive de formação de alto nível, e desenvolver mecanismos de apoio para que pessoas sem recursos não se vejam excluidas dos benefícios do acesso à educação superior, mas não deveria ir muito além disto.

Finalmente, é bom lembrar que, na nossa experiência, a educação pública sempre começa boa quando é limitada e de elite, e perde qualidade e se burocratiza quando se massifica. Assim foi com os antigos grupos escolares, com as antigas escolas secundárias e escolas normais, e isto é o que parece estar ocorrendo com o ensino superior público, em grande parte. Não se trata de uma incompetência inerente ao setor público, mas de uma dificuldade que decorre, em parte, da limitação de recursos, e em parte pela lógica burocrática e ritualista que se implanta quando se tenta controlar redes gigantescas de escolas e universidades a partir de burocracias centralizadas, quase sempre atravessadas por interesses e contingências políticas as mais diversas.

É por isto que se busca, em todos os níveis, tornar as instituições de ensino mais autônomas, mais diversificadas, mais abertas a estímulos externos, e desenvolver sistemas de estímulo ao bom desempenho. O papel do setor público é estimular a criação de mecanismos adequados de financiamento para atividades prioritárias e para a correção das iniquidades de acesso, e sobretudo de estimular a sociedade a estabelecer padrões e mecanismos consensuais de controle de qualidade, aceitando, ao mesmo tempo, a pluralidade e a diversificação.

O projeto de reforma do esino superior do MEC incorpora algumas destas idéias, ao estimular a autonomia das universidades públicas e o maior envolvimento das instituições com a comunidade externa, assim como ao buscar mecanismos para tornar o ensino superior mais acessível a pessoas carentes. Pena que estas idéias se percam na visão extremada do poder do Estado sobre a educação, na ojeriza à iniciativa privada e ao mercado, e na confusão entre sociedade e os interesses corporativos dos sindicatos e da “sociedade organizada”.

O projeto de reforma do ensino superior do MEC

Estou colocando na página o texto que preparei com o Cláudio de Moura Castro comentando a proposta de reforma universitária do Ministério da Educação (está em “livros”). O Estadão de domingo 23 de janeiro publicou tambem um pequeno texto resumo. O texto do MEC foi apresentado como documento para discussão, e é este o sentido dos nossos comentários.
Para ajudar na discussão (coisa rara entre nós, com a confusão que costuma ocorrer entre diferenças de opinião e briga), pretendo publicar aqui os comentários, a favor ou contra, que o texto possa suscitar

A educacao andando de lado…

Saiu hoje, no Estado de São Paulo, artigo meu que dá um rápido balanço da área de educação no governo Lula (está em minha página na Internet). O balanço, infelizmene, não é dos melhores. Enquanto isto, o ex-Ministro da Educação, Cristóvão Buarque, aparece propondo nada mais nem menos do que a federalização do ensino básico, o oposto ao que vem sendo feito em todo o mundo, que é descentralizar a educação e fortalecer seus vínculos com a comunidade….

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