O globo.com publica hoje o texto abaixo meu, sobre a questão as prioridades em bolsas para o exterior e para a pesquisa:
Apesar da infelicidade dos comentários recentes do presidente da CAPES sobre as ciências econômicas (“vamos continuar mandando alunos para formar doutores num modelo que faliu o mundo?”) ele tem razão em pensar que é preciso estabelecer prioridades e decidir como usar melhor os recursos públicos. Uma bolsa de doutorado pode custar 200 mil dólares, não podem existir muitas, e é preciso ser muito criterioso na sua distribuição, não somente em relação à qualidade dos candidatos, seus planos de trabalho e as universidades aonde pretendem ir, mas também em relação à expectativa futura de sua inserção no país, assim como da possível contribuição de sua linha de trabalho. seja para a educação superior, seja para o desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia no país. Quando, tempos atrás, eu disse em uma entrevista que haveria que pensar se devemos ou não dar prioridade à física de particulas nos investimentos de pesquisa, deixando alguns físicos indignados, eu estava expressando a mesma preocupação (eu não disse nada, no entanto, nem poderia, sobre o valor intrínseco desta área de conhecimento, nem estava decidindo nada).
O governo federal, CAPES e CNPq, vem reduzindo sistematicamente as bolsas de estudo para o exterior, que estão sendo substituídas pelas chamadas “bolsas sandwitch”, em que os estudantes brasileiros passam um tempo fora, mas voltam para defender suas teses aqui. A idéia de fortalecer os programas de doutorado no Brasil é importante, mas existe também o risco de manter o país fechado para o resto do mundo. Apesar de muitos programas de pós-graduação de boa qualidade, o Brasil não tem nenhuma universidade de padrão realmente internacional, e a experiência cultural e pessoal de ver e entender como funciona uma destas universidades é tão ou mais importante do que o conteúdo da tese ou da pesquisa que o estudante desenvolva. Não conheço nenhuma avaliação dos programas “sandwitch”, mas eles têm dois óbvios problemas: a curta duração e o fato de os estudantes ficarem fora dos programas regulares das universidades, o que significa que podem ficar marginalizados, sem entender muito do que está acontecendo à sua volta, a não ser que tenham um orientador fortemente interessado em seu trabalho.
Por isto, é importante manter aberta a janela da pós-graduação no exterior, e não penalizar, como hoje ocorre, os cursos cujos melhores alunos são bem recebidos nos doutorados das melhores universidades lá fora. Existe uma maneira fácil de reduzir os custos ou dobrar o número de bolsistas, que é financiar somente os dois primeiros anos dos estudos de doutorado. Nos Estados Unidos pelo menos, depois de dois anos os bons estudantes de pós-graduação conseguem com facilidade uma bolsa local, ou um trabalho de assistente de pesquisa ou de ensino que pague seus custos e permita que participem mais plenamente da vida universitária. Estudantes que consigam bolsas de pós-doutorado, ou contratos de trabalho de alta qualidade no exterior, deveriam ser estimulados a seguir adiante, e não ser forçados a voltar para o país imediatamente, como ocorre hoje. Existe também o risco de o bolsista não voltar. Dar a bolsa na forma de um crédito, a ser perdoado caso o bolsista se integre a uma universidade ou centro de pesquisa no país, pode ser uma maneira de reduzir este risco. A experiência mostra que, quando existem boas condições e boas perspectivas de trabalho no Brasil, os estudantes que se formam no exterior preferem voltar, e os que ficam fora podem atuar como pontes importantes entre as comunidades científicas e técnicas do Brasil e do exterior.
O problema das prioridades é mais complicado. Para muitos cientistas que conhecemos, a única política científica aceitável por parte do governo seria dar cada vez mais dinheiro para os pesquisadores, sem se perguntar para quê e como este dinheiro está sendo utilizado. Isto funciona razoavelmente bem dentro de cada área de conhecimento, quando as diferentes propostas e solicitações são analisadas no mérito por especialistas da própria área. Mas as exigências de avaliação podem ser muito diferentes de uma área para outra, as tentativas de medir e comparar o desempenho das áreas por indicadores objetivos como publicações internacionais ou citações são muito precárias, e é impossível muitas vezes distinguir entre a defesa da boa pesquisa e a defesa dos interesses corporativos dos pesquisadores, sobretudo quando os avaliadores são indicados pelas próprias instituições que vão ser avaliadas, e os mais encrenqueiros são cuidadosamente evitados. Na falta de critérios adequados, a distribuição de recursos entre as diferentes áreas acaba ocorrendo de forma tradicional, dando mais para que tinha mais antes, ou a partir de preconceitos, fáceis de ocorrer quando biólogos acham que podem avaliar a economia, físicos a ciência política, e sociólogos a pesquisa em genética.
Quando governantes e burocratas tratam de estabelecer prioridades, os riscos são altos. A transferência do antigo CNPq para o Ministério do Planejamento, nos anos 70, foi baseada na idéia de que a ciência deveria ser planejada, e tivemos inclusive vários planos nacionais de desenvolvimento científico e tecnológico que, embora pudessem dar impressão de coerentes, não passavam de uma listagem apressada do que já estava sendo financiando, criando para isto, no entanto, uma burocracia de custos cada vez maiores, que redundou da implantação de um Ministério da Ciência e Tecnologia em 1985 (coisa que os Estados Unidos e muitos outros países desenvolvidos não têm). Ainda precisa ser feita uma avaliação dos grandes projetos – sobretudo na área tecnológica, que são os mais caros – iniciados naqueles anos e que fracassaram, ou continuam existindo sem maiores perspectivas ou impacto. Eu listaria, como bons candidatos, a política de informática, o programa espacial e o programa nuclear. Uma lista mais detalhada incluiria um grande número de projetos “induzidos” pelas agências com as melhores das intenções, mas que deixaram de produzir resultados porque apostaram em instituições, pessoas e projeções tecnológicas equivocadas. Sem falar nas prioridades estabelecidas por puro preconceito contra ou a favor de determinados temas ou áreas de estudo e pesquisa.
Não há soluções fáceis para esta situação, mas alguns princípios importantes poderiam ser úteis. O primeiro é diversificar. Quando existem várias agências em diferentes níveis de governo, cada qual com suas missões e prioridades, os riscos de errar são menores. A CAPES é uma agência de apoio à formação de recursos humanos para o ensino superior, o CNPq cuida do fomento à pesquisa básica e aplicada, a FINEP cuida dos projetos tecnológicos, as Fundações de Amparo à Pesquisa estaduais têm uma ótica regional, etc. É como deve ou deveria ser. Existem superposições entre os trabalhos destas agências, o que é bom, porque permite às instituições e pesquisadores buscar apoio em um “mercado” diversificado de recursos e prioridades. O segundo é se preocupar com os grandes projetos tecnológicos e de alto custo, e deixar espaço para o varejo dos pequenos projetos e iniciativas, que devem ser financiados sobretudo através dos mecanismos clássicos de controle de qualidade por revisão por pares. O terceiro é, ao estabelecer projetos e áreas prioritárias, não se limitar a dizer, por exemplo, que “a nanotecnologia é importante”, e colocar dinheiro no setor, mas especificar, com muito mais clareza e detalhe, como os investimentos nesta área poderão trazer resultados palpáveis, olhando, por exemplo, sua inserção em cadeias produtivas reais ou em formação. Estas prioridades precisam ser traduzidas em linguagem suficientemente clara para serem entendidas pelos não especialistas, e acompanhadas de mecanismos também claros de avaliação externa de resultados.
Mais importante do que tudo isto, no entanto, é o fato de que o Brasil investe muito pouco dinheiro em ciência e tecnologia, – cerca de 1% do PIB, comparado com 2.5% da Alemanha, 2.6% dos Estados Unidos e 3% da Coréia. A diferença entre o Brasil e estes países não está só no fato de que investimos menos, mas no fato de que, nas economias desenvolvidas, os investimentos são feitos sobretudo por empresas ou institutos de tecnologia, enquanto que, no Brasil, predominam os gastos com pesquisas em instituições públicas. Não é possível mudar de patamar e de escala dos investimentos em pesquisa no Brasil sem mudar este padrão de financiamento, o que depende, por sua vez, de que as instituições públicas se tornem muito mais abertas e orientadas para a criação de pontes entre o trabalho acadêmico e a busca de resultados práticos e significativos das pesquisas. Nesta mudança, a pesquisa básica, acadêmica e independente não pode nem precisa ser prejudicada, por que ela só consegue prosperar de fato quando o sistema de inovação de um país funcione como um todo, e envolva a participação de cada vez mais recursos, pessoas, empresas e instituições.
Concordo inteiramente. Fiz análise semelhante em artigo intitulado Formação de Doutores no País e no Exterior:Estratégias Alternativas ou Complementares? publicado na DADOS—Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 44, nº 3, 2001, pp. 607 a 631.
Apesar de ter quase 8 anos, o artigo ainda é atual, na medida em que até hoje não existem avaliações do impacto do doutorado sanduiche na formação de nossos doutores. O que se sabe (e que, talvez, possa ser reflexo de que nós estamos menos inseridos nas redes internacionais do que já estivemos) é que o impacto dos artigos publicados por brasileiros, medido através de citações, tem decrescido (publicamos mais lá fora, artigos que, aparentemente, poucos estão interessados em ler). A coisa não vai bem.
Caro Simon:
Irretorquível, seu artigo. Lembre-se, ainda, que a CAPES teve suas responsabilidades aumentadas frente à capacitação de docentes. Enorme burocracia, maior ficou. Os docentes vão perdendo o controle dos processos de avaliação, etc., em função de “sistemas burocratizantes” estabelecidos. No mais, acredito que suas sugestões estão corretíssimas; o que não vem a ser, propriamente, uma surpresa! Grato. Benicio
Acredito que seja importante definir os critérios de identificação das prioridades na distribuição de recursos públicos, e que isso precisa ser feito com a participação de pessoas, empresas e instituições, como o senhor afirma. Quanto ao doutorado fora, também acredito que a experiência cultural e pessoal de ver e entender como uma universidade lá fora funciona é tão ou mais importante do que o conteúdo da tese ou da pesquisa que o estudante desenvolva.
Prezado Simon,
Realmente muito oportuno seu ensaio sobre os programas do governo federal destinados à formar doutorandos no exterior. Concordo plenamente que limitar o prazo de um ano no exterior é insuficiente em muitos casos, e que o processo de avaliação pode determinar o período ideal de permanência de cada bolsista afim de os interessados busquem uma formação adicional. Fiquei 2 anos nos EUA como bolsista sanduíche e posso dizer que naquele país é significativamente menor a carga educacional do aluno nesse programa, que é classificado como “research scholar” e está claramente voltado para realizar sua pesquisa nos laboratórios em que visita. A nossa exposição educacional fica dependente do interesse do aluno em cursar disciplinas ou cursos extracurriculares, o que de fato acrescenta importante valor em nossa formação. Com relação à bolsas, a minha experiência é a de que é possível obter algum financiamento através dos “grants” do orientador no exterior, mas que qualquer outra forma de financiamento é dificultada pela imigração e regras de fomento daquele país. Porém, ainda concordo com sua opinião sobre o pós-doutoramento no exterior, onde tais regras são diferenciadas e permitem o bolsista aplicar para grants e obter todo financiamento com recursos externos. O que cabe ao governo é acabar com o lastro imigratório nestes casos, mesmo porque muitas vezes o país não é capaz de absorver estes pesquisadores.