(Publicado em O Estado de São Paulo, 9 de agosto de 2024)
Em Por que a democracia brasileira não morreu? (Companhia das Letras, 2024), Marcus André Melo e Carlos Pereira argumentam que ela é mais forte do que se pensa, graças à complexidade dos interesses diversos própria do chamado “presidencialismo de coalizão”. Bolsonaro tentou, mas não teve força suficiente para contrariar os interesses consolidados no legislativo, judiciário, governos estaduais e na burocracia pública, incluindo parte importante das forças armadas. Em diversos momentos, setores ligados ao PT tentaram governar sozinhos, mas não conseguiram. A arte de governar consistiria em reconhecer como legítima e negociar com esta pluralidade de interesses setoriais e particulares, e assim obter apoio para políticas mais amplas que possam ser de interesse geral, como o controle da inflação, o crescimento da economia e a redução da violência.
Claro que estas políticas serão sempre menos perfeitas na democracia do que se fossem implementadas por um governo idealmente todo-poderoso, mas também menos sujeitas a grandes desastres. A democracia, na frase famosa de Churchill, é a menos ruim entre as diversas formas de governo e, bem ou mal, temos feito progresso. Se equivocariam, assim, os que acreditam que a democracia está em crise. Como Felipe Nunes e Thomas Traumann, que, em livro recente, dizem que, por causa da polarização, o Brasil como um todo, e não só o sistema político, entrou em um abismo (Biografia do abismo, Harper, 2023). Ou Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que, alguns anos antes, mostraram em detalhe como as democracias morrem por dentro (How democracies die, Crown, 2018).
O livro de Melo e Pereira ajuda muito a entender como funciona nosso sistema político, mas, ao afastar o medo da morte, corre o risco de fazermo-nos despreocupar com sua saúde. É sem dúvida importante reconhecer e dar legitimidade à pluralidade de interesses na sociedade, mas não é saudável que o sistema eleitoral funcione de maneira tal que os eleitores não sabem quem elegem para o Congresso, que parte crescente do orçamento federal seja destinado a emendas parlamentares de destinação desconhecida, que o aumento dos gastos seja sempre superior ao aumento dos impostos, e que os governos, em seus diferentes níveis, não consigam desenvolver políticas efetivas para lidar com a baixa produtividade, desigualdade econômica, educação, pobreza, violência pública e deterioro ambiental. Assim como é não é normal que o judiciário sistematicamente livre os políticos de processos por corrupção, e que tantos interesses privados sejam protegidos por isenções fiscais e parcerias pouco claras com agências governamentais. Os autores reconhecem estes problemas, mas argumentam que eles não se devem a “patologias imaginárias” do sistema político, como as deformações do sistema de representação proporcional e do multipartidarismo, mas à falta de mecanismos efetivos de controle, que deveriam se fortalecer em função da disputa eleitoral a alternância no poder. Não parece, no entanto, que o processo político brasileiro desde o fim do regime militar tenha tido este efeito.
São duas as principais doenças de nossa democracia de coalizão que deveriam nos preocupar. São enfermidades crônicas, mas vêm se agravando, e não podem ser simplesmente ignoradas pelo “business as usual” da política. A primeira é quando o custo da conciliação e cooptação dos diversos interesses se torna alto demais em comparação com os benefícios que a estabilidade pode trazer. Aqui, é importante não confundir a repartição de benefícios e vantagens com formas descentralizadas de governo, que podem ser superiores à de um executivo todo-poderoso. A segunda é a perda de legitimidade do sistema político quando se torna claro que a lógica do toma-lá-dá-cá prevalece sobre o interesse geral da população. A primeira doença corrói a democracia por dentro, fazendo com que ela se torne cada vez mais disfuncional; a segunda doença a ameaça de fora, destruindo instituições e colocando o país nas mãos de demagogos.
O Brasil tem uma grande concentração de riqueza, e muitos setores, ricos e pobres, que vivem da apropriação das rendas geradas pelos setores mais produtivos. É fato que muitas destas desigualdades e privilégios estão hoje consagrados na Constituição, como se fossem direitos, mas é fato também que a Constituição está longe de ser imutável. A função da política não pode ser, simplesmente, a de manter os diferentes setores satisfeitos, como se fossem imutáveis, ao pêndulo da alternância de poder, e atender os interesses gerais da sociedade com os recursos que sobram, se é que sobram. Em uma democracia, a política é também uma disputa permanente para alterar a distribuição da riqueza e do poder. Isto se faz tanto através dos mecanismos regulares de participação política, as eleições, como também pela disputa de ideias, o trabalho de convencimento pelos meios de comunicação e diferentes formas de participação social e política, incluindo a atividade empresarial, os movimentos religiosos e as sociedades civis de diferentes tipos. A política vai muito além do jogo partidário e eleitoral, e é isto que a torna arriscada, mas também relevante e necessária.
Simon Schwartzman é sociólogo e autor de Falso Mineiro: memórias da política, ciência, educação e sociedade (Intrínseca / Selo Real, 2021)
Muito interesante