(O artigo abaixo foi publicado em O Estado de São Paulo, 12 de maio de 2023. O tema são as desigualdades no ensino superior brasileiro. No dia 25 de maio às 17h devo fazer uma apresentação remota sobre o tema em um seminário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade, quem estiver interessado pode se inscrever neste link. A versão preliminar do trabalho de referência, em inglês, está disponível aqui, e comentários são desde logo bem vindos)
“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”, dizia a Constituição da distopia imaginada por George Orwell em A Revolução dos Bichos. Me lembrei desta frase ao ver os resultados de um trabalho importantíssimo feito pelo INEP sobre o que acontece com os jovens que entram no ensino superior brasileiro. Entitulado “Indicadores de fluxo na Educação Superior”, os dados estão disponíveis na Internet, mas até hoje nunca vi alguém que tenha se dado ao trabalho de falar da gravidade do que revelam.
O que o INEP fez foi identificar os alunos que entraram no ensino superior em determinado ano, e verificar, em cada ano seguinte, o que aconteceu com cada um – se continua estudando, se abandonou o curso, ou se concluiu. A metodologia é complicada, mas os resultados são fáceis de entender. Para o Brasil como um todo, dos que entraram em 2015, cinco anos depois, em 2020, 35% haviam se formado, 10% continuavam estudando, e 54%, mais da metade, haviam abandonado sem terminar. Os números variam conforme o tipo de instituição, a modalidade do curso e a área de estudos, mas não muito. No setor privado, com 75% da matrícula, a taxa acumulada de abandono depois de 5 anos era de 57%; no setor público, 47%. Um pouco melhor, mais ainda muito alta. Para os estudantes em cursos presenciais, era de 54%; para os cursos à distância, 65%. A área com maior proporção de estudantes que abandonam é a de tecnologias de computação e informação, 65%, seguida das engenharias, 59%.
São dados desastrosos, que podem ser explicados por muitos fatores, como a dificuldade dos alunos em seguir cursos mais exigentes, a precariedade dos cursos à distância. a necessidade de trabalhar, a dificuldade em pagar as mensalidades das faculdades privadas, e outros. O que é inexplicável é que ninguém parece ser preocupar com isto. Este dado não entra no complicado sistema de avaliação do MEC, as verbas e os salários dos professores nas universidades públicas continuam chegando quer os alunos se formem ou não, e as universidades privadas não devolvem as mensalidades dos que não se formam.
O que faz lembrar a sociedade dos bichos é que, nos últimos 20 anos, as politicas de educação superior tiveram como preocupação quase única tornar o acesso aos estudos universitários o mais igualitário possível. Programas como o Prouni, Reuni, Crédito Educativo, a transformação dos antigos CEFETS em institutos universitários, a transformação do ENEM em exame vestibular nacional, a lei de cotas, todos buscavam ampliar as vagas, oferecer estudos gratuitos ou empréstimos a perder de vista para pagar os estudos, facilitar os processos seletivos, e privilegiar estudantes mais pobres, das redes públicas e não brancos. Com isto, o ensino superior se tornou um pouco maior e mais igualitário, o setor público ficou menos elitista, mas, ainda assim, fazer um curso superior continuou sendo um privilégio. E boa parte da desigualdade entre os que entravam ou ficavam fora agora existe dentro, entre os que se graduam e a metade que fica pelo caminho. É um enorme desperdício, como de uma fábrica que joga fora metade do que produz, e uma grande frustração para os que entram cheios de esperança, investem tempo e dinheiro, e acabam sendo forçados a desistir.
Claro, aa frustrações já vinham se acumulando desde antes, para os milhões que terminam o ensino fundamental sem saber ler direito, os que não conseguem terminar o ensino médio, os que não conseguem notas razoáveis no ENEM; e continua inclusive para os que, depois de quatro ou cinco anos, terminam com um diploma universitário, mas mal conseguem um emprego de nível médio. Mas parece que não importa – há sempre aqueles que se dão bem, que são mais iguais do que os outros, e mantêm o mito de que todos um dia poderão chegar lá.
Os dados de fluxo nos dizem qual as chances de um estudante de determinada área de estudo ou setor terminar seu curso, mas não identificam quais instituições cuidam mais de seus alunos, nem que características dos alunos os tornam mais vulneráveis ao fracasso. Além disto, os estudantes só têm uma ideia vaga das oportunidades que terão no mercado de trabalho. Temos informações gerais que nos dizem que ter um diploma universitário facilita muito ter um emprego estável e um bom salário, o que explica porque tanta gente continua tentando. Mas não existe nenhum sistema de informações que ajude os estudantes a escolher seus cursos, e que ajude aos governantes a decidir que instituições e áreas de estudo precisam ser apoiadas ou desestimuladas.
São estas informações, e não provas que a ninguém importa e indicadores que ninguém entende, que deveriam ser a base de um sistema efetivo de avaliação da educação superior brasileira. Já é hora de falar menos de igualdade de acesso e encarar a ineficiência e as desigualdades que existem dentro das instituições. Como usam seus recursos, qual a qualidade e pertinência do que ensinam, e o fazer para que não continuem sucateando metade os jovens que caem em suas mãos.
Simon Schwartzman,
Obrigado por compartilhar a informação e pela preocupação na necessidade de se definir um norte para a educação brasileira.
O cenário, reportado por você e pelos dados do INEP, retrata a realidade vivenciada pela educação brasileira, em seus diferentes níveis de formação.
Os desafios enfrentados pelo setor, há várias décadas, mostram que não temos “política de estado” e que este quadro, também, reflete negativamente na pesquisa, na inovação e no desenvolvimento do país.
Para conhecimento, no Brasil, já existe discussão independente (visão apartidária) a respeito do cenário vivenciado pela formação nas engenharias e sobre a proposição de sugestões de melhoria. Esta ação voluntária, estimulada pela Rede PDIMat, é desenvolvida por um grupo de trabalho composto por diferentes visões do problema (dimensões).
O grupo de trabalho é coordenador pelo Prof. Bismarck Luiz (UFRN / Rede PDIMat) e conta com participação de especialistas da academia, do setor industrial e de entidades representativas.
A previsão é termos a apresentação dos resultados preliminares no mês de novembro, durante o engBRASIL23 (http://www.redepdimat.org/engbrasil23).
Toda contribuição é bem-vinda!
Como fazem Alemanha e China, os alunos mais competentes e de mais alto QI devem ser selecionados e apoiados, independientemente de etnia e género.
Excelente texto. Simon (como sempre). Há apenas uma frase que não me pareceu fazer sentido: “as universidades privadas não devolvem as mensalidades de que não se formam”.
Leia-se “dos que não se formam”