Totalitarismo Universitário

Pedro Lincoln Leão de Mattos, de Recife, envia o seguinte artigo de José Luiz Delgado, publicado no Jornal do Commércio de 17/4/2007:

Totalitarismo universitário

A muitos escandalizou questão de uma prova de ingresso extra-vestibular da Universidade Federal de Pernambuco, cujo enunciado cometia o grosseiríssimo erro de atribuir a Graciliano Ramos a autoria de “Grande sertão: veredas”. A mim não chocou tanto esse erro. Claro que foi equívoco inadmissível, absurdo, distração brutal, absoluta desatenção, com o agravante da deficiente, ou inexistente, revisão, o pouco ou nenhum controle, etc. Mas tudo isso pode acontecer a qualquer um, é apenas um erro.

Muitíssimo mais me chocou, e me horroriza (até porque obviamente consciente e intencional, não um erro), foi, na mesma prova, o teor da questão anterior pedindo que o candidato apontasse “os exemplos de homens éticos com visão filosófica engajada (para além da hipocrisia)” e dando como alternativas: “a) Bush, Olavo de Carvalho, Editora Abril, Inocêncio Oliveira, Roberto Marinho, b) Dalai Lama, Gandhi, Marina da Silva, Frei Beto, D.Helder, c) FHC, Marco Maciel, ACM, Ratinho, Reginaldo Rossi, d) Leonardo Boff, Irmã Dulce, Ariano Suassuna, Betinho, Zilda Arns, e) Dalai Lama, Gandhi, ACM, Frei Beto, Leonardo Boff”.

Não se tratava de um juízo apenas de fato – por exemplo: indicar os que se dedicaram sobretudo às questões sociais – mas de um juízo de valor: quem seria “ético” e quem não seria, quem teria “visão filosófica engajada” e quem não teria, acrescentando-se que essa visão teria de ser “para além da hipocrisia”, ou seja, que algumas das personalidades arroladas poderiam apenas parecer, mas seriam substancialmente hipócritas. Ora, além de gravemente ofender personalidades públicas como sendo “do mal”, ensejando que elas até processem a Universidade por injúria e difamação, – aquele questionamento é completamente inadmissível numa universidade, que deve ser, por excelência, o lugar da liberdade de pensamento e de crítica.

É possível que eu formule, a respeito deste ou daquele personagem, o mesmo juízo subentendido na redação da questão, mas quero ter sempre a lucidez de distinguir aquilo que é meu pensamento individual (legítimo) daquilo que, como professor, posso exigir dos alunos como critério de aprovação numa prova qualquer. Com que autoridade posso impor a alunos que considerem Bush, Olavo de Carvalho, FHC, ACM, Roberto Marinho, Inocêncio Oliveira, Marco Maciel, por exemplo, como intrinsecamente aéticos, não engajados, hipócritas? E posso, ao contrário, exigir de estudantes que tenham o Dalai Lama, Gandhi, Marina da Silva, Frei Beto, D.Helder, Leonardo Boff, como intrinsecamente éticos, engajados e não hipócritas? Onde fica a liberdade intelectual, o livre convencimento, o juízo honesto que cada um deve, essencialmente, apenas à própria consciência?

O episódio dessa prova é particularmente emblemático. É sintoma claríssimo de uma ditadura do pensamento único, o totalitarismo dos que não aceitam senão uma verdade. Se certa corrente prevalecer vultosamente no Brasil, será com isso que teremos de conviver: a imposição de certos modelos de pensamento, a massacrante intolerância em relação a idéias discordantes? Quem não pensar segundo a ideologia oficial será execrado, isolado, excluído? Ao invés, a vida intelectual não se faz autenticamente senão mediante a mais ampla liberdade de investigação e de crítica. Sem ela, a universidade – e de modo especialíssimo a universidade pública (que não tem dono e não se filia a nenhuma confissão filosófica ou religiosa) – não passará de uma farsa.

Cada vez mais é preciso retornar à imortal lição de Voltaire, de “não concordar com uma palavra do que dizeis, mas sustentar até à morte o direito de dizerdes”. Já é gravíssimo se essa questão não foi anulada. Mas nem a anulação basta. Urge que as autoridades universitárias nítida e firmemente repudiem aquele absurdo e tomem providências concretas enérgicas, para que não pareça que os redatores da prova contam, de algum modo, com o beneplácito e a complacência delas, favoráveis, nessa medida, ao totalitarismo intelectual, à ditadura do partido único, à camisa de força imposta ao pensamento livre (que é a suprema dignidade do ser humano).

José Luiz Delgado é professor universitário.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

3 thoughts on “Totalitarismo Universitário”

  1. Alguns viram nos resultados das últimas eleições uma expressão do assistencialismo representado pelo Bolsa Família. Nunca concordei com isso. Penso que expressam a cooptação jamais vista de nossa intelectualidade, dos formadores de opinião. A prova da UFPE confirma minha análise. A eleição do PT é resultado desse trabalho ideológico de intelectuais, jornalistas, artistas…
    Guiomar Passos – Doutora em Sociologia pela UnB e professora da UFPI.

  2. Sou formado em jornalismo pela UFPE e faço atualmente mestrado em sociologia pela mesma universidade. A esse episódio poderia somar muitos outros que eu já presenciei e vivenciei. Muito claro: não me sinto livre para me expressar no ambiente universitário sem ser censurado, julgado ou, na melhor das hipóteses, apenas ignorado. Leio os meus livros e trabalho na minha dissertação, no mais, prefiro ficar calado.

    Leonardo Rabelo

  3. É realmente preocupante que uma instituição universitária atinja tamanha submissão ideológica a ponto de permitir uma questão dessas no vestibular. Imaginem o que passa dentro das salas de aula nos cursos ministrados por aqueles que dão suporte a este tipo de autoritarismo. Me admirei que a opção supostamente “correta” não apresentasse como baluartes da ética Fidel Castro, Hugo Chavez e Luis Inácio Lula da Silva…

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