Um modelo para o novo ensino médio

Um modelo para o novo ensino médio

Proposta de organização do ensino médio por trajetórias acadêmicas, por tempo de horas (currículo de 2400 horas em três anos)

 

No início de 2017, o Congresso aprovou uma nova legislação para o ensino médio; em abril de 2018, o Ministério da Educação publicou a primeira versão do que seria a “Base Nacional Curricular Comum” do ensino médio, que, além de outros problemas, se limita somente ao que seria a “parte comum” do novo currículo;  desde então a propaganda governamental na TV mostra jovens felizes dizendo que, agora, finalmente, podem fazer suas escolhas. Mas ninguém sabe ainda, nas redes escolares, como será este novo ensino médio. O Conselho Nacional de Educação tem a oportunidade de rever a proposta da Base Curricular elaborada pelo Ministério, e esta é uma ocasião de aprofundar o entendimento sobre como a reforma que se busca ficará de fato.

Esta proposta, resultado de conversas com vários colegas nas últimas semanas, propõe um modelo para este ensino médio reformado. Está longe de ser um modelo acabado, mas permite pensar de forma mais concreta o que poderia de fato ser feito, e assim, avançar.

Contexto

O ensino médio é o período de transição entre a educação fundamental, que deve proporcionar uma base comum de conhecimentos e competências para toda a população, e a educação superior e profissional, em que os jovens se encaminham por diversas trajetórias de formação e trabalho.

Em todo o mundo, os jovens já chegam ao ensino médio com diferentes condições, necessidades, competências e motivações para o estudo e o trabalho. No Brasil,  além disto, a grande maioria dos jovens não completa a educação fundamental com um nível satisfatório de domínio da língua portuguesa, do raciocínio matemático, do entendimento das ciências naturais e sociais, nem de conhecimentos mais amplos e aprofundados do contexto cultural, social e político em que vivem.

O ensino médio tradicional, implantado no Brasil na década de 40 e mantido sem mudanças mais profundas até recentemente, se iniciava após o antigo primário de 4 ou 5 anos com o antigo ginásio e continuava pelos três anos dos cursos colegiais, e tinha como objetivo dar aos poucos estudantes que chegavam a este nível, sobretudo homens, uma formação geral que os preparasse para os estudos universitários. Para as mulheres, as alternativas eram a formação para o lar ou os cursos normais para o magistério. Para os demais, havia uma oferta limitada de ensino profissional para a indústria, comércio e agricultura, e a grande maioria não ia além da educação primária, quando chegava até lá.

Desde então, o acesso à educação se alterou radicalmente no Brasil. O acesso à educação fundamental se tornou praticamente universal, e a diferenciação por gênero praticamente desapareceu. Em 2017, 87% dos jovens de 20 anos haviam completado a educação fundamental, e 64% haviam completado o ensino médio, que se tornou obrigatório por lei. Ao mesmo tempo, o mundo do conhecimento, da pesquisa e das profissões se ampliou e se transformou profundamente. De uma educação de elite, excludente e relativamente homogênea no passado, evoluiu-se para uma educação abrangente, inclusiva mas, por isto mesmo, mais diferenciada.

Dos jovens que hoje chegam ao ensino médio, cerca de 20 a 30% no máximo chegarão à educação superior, que também está se ampliando, mas com níveis muito distintos de exigência e qualificação. O ensino médio precisa atender ainda a uma grande população adulta que busca completar sua educação – em 2017, 25% de seus alunos tinham mais de 18 anos. A grande maioria dos alunos chega ao ensino médio com uma educação fundamental precária, precisando de uma qualificação profissional valorizada no mercado de trabalho, e muitos precisam trabalhar enquanto estudam.

O ensino médio precisa atender a este público diferenciado oferecendo aos diferentes segmentos uma capacitação que seja útil e significativa para as diferentes trajetórias. A nova legislação sobre o ensino médio reconhece esta necessidade, ao diferenciar um núcleo comum de formação das diferentes trajetórias ou itinerários formativos possíveis. A parte comum inclui  as competências no uso da língua portuguesa, da matemática, da língua inglesa, e conhecimentos nas áreas das humanidades, ciências sociais e naturais. A parte diferenciada também se dará, naturalmente, dentro das diversas áreas de conhecimento, mas com maior aprofundamento e capacitação para trajetórias futuras, seja em estudos superiores, seja na vida profissional.  É do peso relativo e da maneira pela qual estes diferentes conteúdos serão apresentados e apropriados pelo estudantes que o novo ensino médio se diferenciará efetivamente do modelo tradicional adotado até o presente.

Pontos principais da proposta

  • Ao término do ensino fundamental, os alunos devem passar por um processo de orientação que indique que opções dispõem para continuar seus estudos, em função de sua formação anterior e da disponibilidade de oferta em sua área de residência. Idealmente, como ocorre em muitos países, deveria haver uma avaliação abrangente do desempenho dos estudantes ao término do fundamental, ou seja, aos 15 anos, que servisse de referência para esta orientação
  • A adoção de uma definição explícita dos principais itinerários formativos, que não sejam a classificação formal de áreas de conhecimento adotada pelo Ministério da Educação, nem que fiquem totalmente abertos a critério de cada sistema de ensino. Estes itinerários, de forma condizente com a experiência internacional, deveriam ser 1) humanidades, incluindo língua portuguesa, letras, artes e literatura e filosofia; 2) matemática, ciências físicas e tecnologia (STEM); 3) ciências biológicas e da saúde; 4) ciências econômicas e sociais.
  • Estes itinerários não devem ser obrigatórios, as escolas e redes de ensino continuam com autonomia para organizar seus currículos de outras formas. No entanto, o governo federal não pode se abster, e sua atuação deve consistir em definir com clareza a base curricular dos principais itinerários e o processo de avaliação de resultados através de uma nova versão do ENEM.
  • A base nacional curricular comum, que hoje se limita à chamada “parte comum”, deve identificar, de maneira clara, os principais conteúdos e competências de cada área, em dois níveis:  um nível  inicial ou geral, que em princípio todos os alunos deveriam poder seguir, e um nível mais amplo e aprofundado, para os que optem por esta área como itinerário de formação. O currículo a ser seguido pelos alunos será uma combinação entre um itinerário principal e formação inicial em outras áreas, além de cursos de inglês e opcionais.
  • O atual ENEM deixa de ser uma prova única, e se transforma em um conjunto de provas, uma mais geral, de competências em língua e raciocínio matemático, e outras específicas para cada um dos itinerários formativos
  • A formação técnica e profissional, que proporciona um título de técnico de nível médio, deve ser dada em escolas especializadas, que incorporem também as partes gerais de formação aos currículos técnicos, ou em parcerias entre escolas regulares e escolas ou centros de formação técnica.
  • Os principais cursos técnicos de nível médio deverão ser objeto de sistemas nacionais ou regionais de certificação profissional.

No modelo proposto, resumido no quadro acima, se supõe um curso médio de 2400 horas de duração, que é o que ainda predomina.  A ideia é que cada itinerário ocupe cerca de mil horas para todos os que os escolham, e 300 horas para os demais, sobrando anda 4o0 horas para cursos de inglês, educação física, o opcionais. Assim, por exemplo, só quem optar pela área de ciências físicas e matemáticas precisará cumprir o programa completo de matemática, para os demais a parte inicial de matemática deve ser suficiente. Os alunos que optem por trajetória técnica poderiam optar entre a formação inicial em ciências físicas e tecnologia ou ciências da saúde.

Estes números são somente para dar uma ideia de grandeza, já que o importante não é o número de horas em sala, e sim o desenvolvimento dos conhecimentos e competências  requeridos a serem avaliados ao final. Neste formato, todos os alunos passam pelas quatro áreas, e assim atendem assim aos requisitos comuns do ensino médio, mas com ênfases distintas.

Em relação ao tempo de aula, a lei deu ênfase ao ensino médio em tempo completo, mas não mencionou o grave problema do ensino médio noturno. Será importante, em uma nova política para o setor, procurar acabar definitivamente com o ensino médio noturno para jovens de menos de 18 anos, se necessário com  programas de bolsas de estudo para os que precisem trabalhar.  O desejável é que todos os estudantes possam passar cinco horas diárias na escola, o que daria um total de 3 mil horas em três anos, como está previsto na legislação; o tempo integral pode ser desejável em alguns casos, mas não precisa ser a meta para todos os estudantes.

Justificativas

 Prioridade para a diferenciação

 Existem duas maneiras principais de pensar o novo formato para o ensino médio. O primeiro consiste em colocar a ênfase na parte comum, ocupando o total do máximo de 1.600 horas previstas na legislação para esta parte, possivelmente nos dois primeiros anos, e deixando os itinerários formativos e a formação especializada para o último ano. O risco desta opção é que ela mantém sem maiores alterações o atual modelo, no qual um número significativo de estudantes abandonam o curso já no primeiro ano, pela dificuldade de seguir o currículo e a falta de interesse e motivação por este tipo de estudo.

A segunda opção  é colocar desde o início o centro de gravidade da educação média nos itinerários formativos, e não na parte comum, que deve ser proporcionada, tanto quanto possível, de forma efetivamente integrada e a serviço dos diferentes itinerários, e não de forma separada ou segmentada.

A lei de reforma do ensino médio estabelece que os itinerários formativos devem ser os mesmos da classificação de áreas de conhecimento utilizada tradicionalmente pelo Ministério da Educação (linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas). Existe, no entanto, amplo espaço para que isto seja reinterpretado, já que a lei também estabelece que “a organização das áreas e das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com os critérios estabelecidos em cada sistema de ensino”, e abre a possibilidade de  “itinerário formativo integrado”, combinando os diferentes componentes da base nacional curricular.

Uma definição clara, apoiada na Base Nacional Curricular, dos principais itinerários formativos

Existe bastante consenso de que a classificação oficial das áreas de conhecimento adotada na lei não é uma boa maneira de organizar um currículo , porque amplia demais a área de linguagens (juntando o estudo das línguas naturais com a educação física e as linguagens de computação), deixa a matemática isolada, junta todas as ciências naturais em um só bloco e não distingue as ciências sociais das humanidades.  Nesta proposta, propomos uma classificação mais condizente com as práticas internacionais, que podem se constituir em alternativas efetivas de formação.

Neste modelo,as escolas se organizam, pedagogicamente, em quatro ou cinco coordenações:

I – Matemática, ciências físicas e tecnologia

II – Ciências Biológicas e da Saúde

III – Ciências Econômicas e sociais

IV – Português, Letras, artes e literatura

V – Técnica / profissional (quando houver)

  • Cada uma destas coordenações estrutura um programa de ensino de dois níveis,  um introdutório e outro aprofundado (correspondentes a um “minor” ou “major”). Estes programas podem ser estruturados por uma combinação de aulas mais formais e desenvolvimento de projetos, sobre temas específicos, que requeiram os conhecimentos e competências das diversas disciplinas. Os conteúdos não cognitivos, emocionais, trabalho em equipe, empreendedorismo, etc., devem ser dados no contexto dos projetos.
  • Cada estudante opta por uma trajetória aprofundada, e completa a primeira parte, introdutória.
  • Os estudantes que seguem as trajetórias profissionais completam somente a parte introdutória das demais áreas.

Esta distribuição de tempos não deve rígida, e as escolas podem abrir espaço para outras disciplinas eletivas, de cunho regional ou local, etc., cursos de formação profissional de curta duração , etc. Tanto quanto possível as partes introdutórias de matemática e português devem ser dadas de forma integrada e sob a orientação dos coordenadores das respectivas áreas.

A formação técnica profissional deve ser proporcionada por escolas especializadas, como as do Centro Paula Souza em São Paulo, dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, do Sistema S, e outras públicas e privadas criadas especificamente com este objetivo. As escolas públicas regulares devem oferecer opções dentro da formação geral, e quando for possível estabelecer acordos de cooperação para proporcionar alternativas efetivas de formação profissional.

A reformulação do ENEM e dos exames de certificação profissional

A reforma do ensino médio não tem como avançar sem uma transformação profunda do ENEM. Ao invés de um exame único, é necessário que exista uma prova geral de aptidão, tipo SAT, provas específicas por grandes áreas de conhecimento, e certificações profissionais diferenciadas.  Com isto, o ENEM deixará de ser uma prova única com múltiplas funções, e cada universidade ou programa público que necessite de seus dados deverá utiliza-los conforme sua conveniência.

O atual ENEM se transforma em um conjunto de provas separadas, de livre escolha:

1 – Uma prova de competências gerais em uso de linguagem e raciocínio matemático, para todos os alunos

2 – uma prova de competências em matemática, engenharia e tecnologia (major)

3 – uma prova de competências em ciências biológicas e da saúde (major)

4 – uma prova de competências em ciências econômicas e sociais (major)

5 – uma prova de competências em português, letras, artes e literatura (major)

Na área de formação técnica e profissional, o Ministério da Educação, em parceria com o Sistema S e outras entidades envolvidas com o ensino técnico, prepara um conjunto de certificações profissionais para as  áreas de formação de maior demanda ou consideraras mais críticas, evoluindo aos poucos para um sistema nacional de qualificações profissionais e técnicas (metade das matriculas atuais em cursos técnicos se concentram em  agentes comunitários de saúde, analises clínicas, citopatologia, controle ambiental, enfermagem, equipamentos biomédicos, estética e farmácia). Os eixos tecnológicos utilizados no catálogo nacional de cursos técnicos mantido pelo MEC não são adequados para isto, porque reúnem profissões que podem ser muito diferentes.

 

 

 

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

4 thoughts on “Um modelo para o novo ensino médio”

  1. Caro Simon,
    Tenho acompanhado suas análises sobre a reforma do ensino médio e a BNCCEM.
    Suas sugestões são interessantes para o aperfeiçoamento da base e concordo com varias ideias propostas no documento.
    Meu ponto principal diz respeito ao seu posicionamento sobre a lei da reforma do médio. Na minha leitura, sua proposta é contrária à a lei da reforma, pois mantém as 2.400 horas; os itinerários sugeridos são alinhados com o aprofundamento acadêmico tendo em vista carreiras de nível superior; e a oferta de cursos técnicos profissionais mantém o esquema atual, ou seja 2.400 horas de formação de nível médio e mais 1000 ou 1.200 horas para itinerários técnicos em escolas especializadas. Gostaria que esclarecesse sua posição sobre a lei da reforma do médio para avançarmos o debate a respeito da BNCCEM. Eu defendo a reforma e sou favorável a ajustes na base.

    1. Cara Maria Helena,

      No quadro que eu fiz, eu usei como base 2400 horas porque esta é ainda a realidade de boa parte do ensino médio, mas poderia alterar os números para somar 3 mil horas mantendo a mesma ideia. Olhando bem o quadro, você vai notar que eu não estou propondo 2.400 horas e mais mil ou 1.200 para os cursos técnicos. Para todas as cinco trajetórias (quatro acadêmicas e uma técnica), o total de horas é o mesmo. A ideia central é que todas trajetórias tenham dois níveis, um introdutório, outro de aprofundamento, com os estudantes podendo optar por uma trajetória a fazer as demais de forma complementar. O mesmo vale para as trajetórias técnicas, em que os alunos escolheriam três áreas complementares, a de ciências econômicas e sociais e a de português, e uma entre ciências biológicas ou STEM. Acho que assim se resolve o problema de ter na base uma parte comum e outras partes, ainda por definir, de trajetórias. E não acredito que isto contraria a lei, porque ela diz que as trajetórias devem ser as mesmas das áreas comuns de formação, e abre espaço para diferentes adaptações, ou seja, não obriga que se mantenha a organização do curriculo em termos da classificação tradicional do MEC, desde que preservados os principais conteúdos. A outra parte fundamental de minha proposta é de reformar o ENEM para que ele seja coerente com a organização do ensino médio. São as avaliações ao final que balizarão o que será feito durante os cursos. Sem isto, é perda de tempo, me parece.

  2. Caro Simon
    Proposta muito interessante. Inclusive para a avaliação.
    Para se tornar completa e viável, até para discussão com mais fundamento, sugiro acrescentar à análise atual da BNCC do ensino médio, já no CNE, uma proposta para os componentes “ciências econômicas” e outra para “engenharias” como contribuição mais completa ao debate atual.
    Como a Base sinaliza currículos, ela deverá também comandar as avaliações e exames da educação básica.

    1. Cara Maria Inês,

      Fico contente que você ache a proposta interessante. Ao invés de “ciências econômicas”, acredito que a base deveria identificar os conteúdos e competências centrais de “ciências econômicas e sociais”; e, ao invés de “engenharias”, STEM – Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. Como estas áreas de formação são comuns a muitos países, não deve ser difícil encontrar modelos para adaptar. E o mesmo, claro, para as avaliações.

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