No debate sobre a Reforma do Ensino Superior realizado pelo O Globo em 10 de março, eu talvez não devesse ter comparado a Universidade a um restaurante, e ter dito que, se eu quiser abrir um restaurante em uma rua que já tem cinco, o Ministro da Educação não tem nada a ver com isto, a não ser que eu venda comida estragada (veja a matéria do jornal sobre o debate aqui). O Ministro Tarso Genro rebateu dizendo que para mim a educação não passava de uma mercadoria, enquanto que para ele era um bem público, de responsabilidade do Estado. Que havia uma questão de princípio, sobre quem deveria comandar, o mercado ou o Estado, e que ele era a favor do Estado. Que eu defendia a liberdade para o setor privado, mas era contra a autonomia das universidades públicas. Houve quem me aplaudisse, mas eu fui bastante vaiado, e disseram que eu me saí mal. Deve ter sido verdade.
Não é fácil participar de um debate público com um político experimentado como o Ministro da Educação, e expor com clareza as idéias. Ainda bem que a gente sempre pode tentar explicar melhor depois…
Eu já tentei esclarecer, em um blog anterior (vejam mais abaixo), a questão da educação privada como direito, que é como está na Constituição, ou como “função delegada”, como entende o Ministro da Educação. É inegável que a proposa de reforma do Ministério expressa um forte preconceito contra o mercado em geral, e contra o ensino superior privado em particular. O Ministro reconhece, quando fala, que existem bons e maus cursos superiores no setor privado, não só filantrópicos, mas inclusive empresariais. No entanto, ao invés de ver na liberdade de iniciativa do setor privado uma virtude, trazendo novas energias, investimentos, pluralismo e criatividade à educação, ele – e o projeto da reforma como um todo – trata o setor privado como um mal necessário, a ser no máximo tolerado, mas controlado com rédeas curtas. Esta demonização do mercado já não existe muito na economia, depois do muro de Berlim, mas, na educação, parece continuar presente com muita força.
Defender a importância do setor privado não significa ser contra a regulação. A questão é o quê e como se vai regular, e até onde deve ir o poder de intervenção. É importante manter a população informada sobre a qualidade dos cursos, garantir a transparência nas contas das instituições filantrópicas, e evitar situações de monopólio ou oligopólio. Além disto, o setor público pode estimular ou desestimular o crescimento de determinadas atividades através de incentivos fiscais, como já está fazendo através do Prouni, e financiamentos a programas. Além da ideologia estatista, uma das explicações para a obsessão com o controle da educação superior privada é a confusão que ainda existe entre formação e certificação para as profissões. A Lei de Diretrizes e Bases separou estas duas coisas, mas elas continuam confundidas, e é por esta porta que entra a idéia exdrúxula da “demanda social” como critério para autorizar ou não a criação de novos cursos. O que está por trás disto é a tentativa de controlar a expansão dos mercados de trabalho para as diferentes profissões, que não deveria ser preocupação do Ministério da Educação, e sim das respectivas corporações profissionais, através de exames de ordem, como já fazem os advogados, e outros sistemas de certificação.
Mas, se meu restaurante fechar, o capitalista perde seu dinheiro, e os fregueses buscam outro lugar para comer; se a Faculdade particular fechar, os alunos ficam sem escola. Não é diferente? Mais ou menos. Existem sempre riscos, da mesma maneira que há riscos em entrar em uma universidade pública e encontrar professores desmotivados ou em greves intermináveis. A melhor maneira de lidar com isto é estimular a competição pela qualidade e a responsabilidade pública das instituições, e isto se faz mediante sistemas adequados de incentivos à qualidade, transparência e acesso à informação, coisas que estão dentro da responsabilidade do setor público, e devem ser também de interesse do setor privado, que precisa criar suas prórpias instituições de controle de qualidade. O pior caminho é o do cartório das autorizações, que estimula a corrupção, ou a regulação minuciosa e detalhista da atividade das instituições, que só atrapalha, e que o setor público nunca teve condiçoes de gerenciar.
As universidades públicas devem de fato ter menos liberdade do que as privadas, porque elas vivem de dinheiro público, e não de investimentos privados, que assumem o próprio risco. Isto não significa que eu seja contra a autonomia universitária no setor público, e aí penso que minha discordância com a proposta do governo é menor do que parece, pelo menos em princípio. O governo tambem diz que as universidades deverão ter planos de desenvolvimento, e receber recursos em função de seu desempenho, e que autonomia não é o mesmo que soberania. A minha dúvida é se as atuais propostas estimulam de fato a responsabilidade e o compromisso com resultados ou, ao contrário, consolidam as situações de acomodação, má qualidade e mau uso de recursos que existem em muitas de nossas universidades públicas. O governo está prometendo aumentar os recursos para as universidades federais, mas não está dizendo que vai condicionar estes recursos a resultados. Isto seria para depois, quando a quase totalidade do dinheiro já tiver sido dada (se é que a área econômica vai concordar com esta generosidade), com a garantia de que o orçamento de cada ano nunca será inferior ao do ano passado, nem jamais contingenciado. Deste jeito, para quê PDI?
Uma universidade pública realmente autônoma, para não se transformar em uma república irresponsável, precisa de um sistema forte e adequado de incentvos associados ao desempenho (o que supõe uma avaliação externa permanente, e orçamentos baseados em demonstrações claras de custos); estruturas gerenciais modernas, com sistemas de controle de custos e definição de prioridades; lideranças escolhidas por sua capacidade executiva; e autoridade para mexer na parte mais rígida do orçamento, que é o pessoal, hoje parte do serviço público,e praticamente “imexível”. A questão não é, portanto, a eleição direta do reitor ou não, embora a experiência internacional mostre que este tipo de eleição tende a politizar e partidarizar as universidades, fazendo com que os interesses das corporações internas predominem sobre o interesse público.
Mauricio, acho que estamos de acordo no fundamental. No entanto, faço alguns comentários
A idéia de autonomia universitária na América Latina não vem da época dos regimes militares recentes, mas do movimento da “Reforma de Córdoba” de 1918, que depois se espalhou por toda a região. Na prática, a autonomia que o Movimento da Reforma preconizava era mais proxima do conceito de “soberania”, que incluia coisas como a proibição da polícia ou dos militares entrarem nos campus. Mas as universidades continuavam dependendo dos governos, que deveriam pagar a conta e não perguntar nada. Claro que isto é absurdo hoje, quem paga a conta tem direito de saber o que está sendo feito com o dinheiro,
As universidades não podem ser soberanas (e muito menos com dinheiro alheio), mas precisam ser autonomas para gerir suas atividades cotidianas livres da intromissão externa de atores que não entendem o que elas fazem. A questão então é como combinar autonomia intelectual, acadêmica e também administrativa e gerencial, que são essenciais, com responsabilidade ante os diferentes públicos que as mantêm e têm expectativas em relação a elas – estudantes,acadêmicos, governos, empregadores.
Parece dificil, mas na prática as boas universidades conseguem fazer isto,multiplicando suas fontes de financiamento, e criando pontes de comunicação entre elas e os seus diferentes “stakeholders”.
O mesmo problema que existe na relação entre as universidades e a sociedade existe também em seu interior, quando os departamentos e escolas se consideram soberanos em relação ao que fazem, sem tomar em consideração as responsabilidades e mecessidades mais gerais da instituição à qual pertencem.
um abraço,
Simon,
Todo mundo com um mínimo de informação sabe da trajetória do Ministro e os paradigmas ideológicos nos quais ele desenvolveu a sua carreira política.
Fico motivado a escrever porque tem um tempo que me sinto agoniado com a discussão sobre a autonomia das universidades públicas. Quando nasce este conceito na América Latina? Do período da luta contra as ditaduras militares, onde direitos sindicais ou autonomia universitária faziam parte da resistência democrática contra as ditaduras. Em toda a região, “autonomia”, era percebida como um aspecto nevrálgico da luta política, como um “pulmão” que oxigenava o obscurantismo do totalitarismo.
Hoje vivemos outras realidades. Não vejo muito clareza que autonomia é essa por parte dos que a defendem, mas com certeza não é autonomia em relação ao conhecimento e à excelência acadêmica. Vejo nesse discurso a defesa da autonomia em relação à oposição sobre o controle democrático da utilização de recursos públicos, à rejeição total de padrões de qualidade e, óbvio tudo isto leva a um discurso contra o mercado. Autonomia contra o mercado??
Vejo um discurso da defesa da autonomia nos mesmos molde e princípios dos anos da ditadura. Quando este discurso não muda e contexto sim, o resultado é o anacronismo.
Da minha parte, estou realmente em contra dessa autonomia. A sociedade tem o direito sim de controlar a universidade pública. Saber como se gasta, quais os resultados e se tudo estiver errado, também tem o direito de implementar uma reforma universitária. Que os rumos dessa reforma devem ser debatidos de forma plural todos somos a favor. Mas não é mais tolerável que a sociedade seja interditada nestes direitos com a excusa da autonomia, demonizando o mercado ou a comparação com um restaurante.
Com a amizade e o respeito que sinto por você, me permito escrever este breve comentário.
Mauricio Blanco