Velhos e novos doutorados

(publicado em O Estado de São Paulo, 9 de janeiro de 2015)

O novo modelo de pós-graduação que está sendo introduzido pelas universidades paulistas, facilitando a passagem do mestrado para o doutorado, é muito bem-vindo,  embora mais tímido do que poderia ser e sem uma consideração adequada, me parece, das diferenças de propósito dos programas de mestrado e doutorado, fruto da maneira pela qual os programas de pós-graduação foram criados e se desenvolveram no Brasil.

Quando a Universidade de São Paulo foi criada em 1934, ela trouxe da Europa a instituição do doutorado, em que um candidato, querendo se dedicar à carreira de ensino e pesquisa, desenvolvia um projeto sob a orientação de um professor catedrático. Para prosseguir na carreira, era preciso, depois, fazer uma tese de livre-docência, e finalmente de professor titular, quando havia vaga. A reforma universitária de 1968 trouxe para o Brasil um modelo totalmente diferente, o das graduate schools americanas, com cursos de pós-graduação organizados em unidades administrativas próprias, com currículos organizados e sistemas regulares de avaliação dos candidatos. Nas graduate schools, a seleção dos estudantes é feita pelos departamentos, e não pelos professores, e só depois de um período inicial de estudos  e exames é que eles definem um projeto de tese e são formalmente promovidos a candidatos ao doutorado, aí sim sob a orientação de um professor. As duas grandes vantagens do sistema americano, que começou a ser introduzido no início do século 20 e hoje é adotado em todo o mundo, é que os doutores se formam com uma base de conhecimentos muito mais ampla, e em muito maior número do que no sistema artesanal europeu.

A  dificuldade para a adoção do modelo americano no Brasil foi que a USP era, na época, a única instituição com capacidade de dar títulos de doutorado, mas no modelo europeu, enquanto as universidades federais, em sua quase totalidade, no máximo conseguiam reunir massa crítica para organizar cursos iniciais de mestrado.  Aos poucos, a USP foi se adaptando ao novo modelo, organizando programas de pós-graduação e instituindo mestrados como etapa inicial de formação, enquanto as demais universidades, também aos poucos, foram se capacitando para criar programas de doutorado próprios. O resultado é que os mestrados, que deveriam ser cursos curtos de complementação e formação especializada para o mercado de trabalho, como em todo o mundo, se transformaram, no Brasil, em pré-requisitos para os doutorados, ou mini doutorados destinados a suprir a carência de professores qualificados nas universidades públicas.

Entre as virtudes da pós-graduação brasileira estão que ela pôde contar, desde o início, com um sistema de avaliação dos cursos organizado pela CAPES; que os cursos são gratuitos; e que boa parte dos alunos recebem bolsas de estudo para se manter.  Com o tempo, o sistema foi crescendo, e começaram a surgir os problemas: os alunos que o faziam demoravam demais em completar os doutorados, e as avaliações da CAPES eram demasiado acadêmicas. Apesar disso os mestrados, na prática, foram se aproximando do modelo do resto do mundo, de formação complementar ao ensino de graduação, em que os estudantes estão mais interessados em obter uma melhor colocação no mercado de trabalho do que completar o doutorado com a perspectiva de se seguir uma carreira de professor universitário e pesquisador. A CAPES tentou lidar com isso criando os mestrados e doutorados profissionais e modificando o sistema de avaliação, ao mesmo tempo em que se criou um grande mercado privado e não regulado de cursos de MBA e especialização, hoje três vezes maior do que o de pós-graduação estrito senso.

O novo modelo das universidades paulistas pretende lidar com estes problemas facilitando a passagem do mestrado para o doutorado após um primeiro ano de cursos gerais e de empreendedorismo, dando bolsas mais robustas para os alunos selecionados para o doutorado após este primeiro ano, e uma formação complementar a nível de mestrado para os demais. O modelo é tímido porque ele poderia, simplesmente, facilitar o recrutamento de estudantes de doutorado diretamente dos cursos de graduação, deixando o projeto de tese para após um período inicial de formação, como nas graduate schools americanas; e peca por dar a entender que os mestrados seriam, simplesmente, prêmios de consolação para os que não conseguissem entrar nos doutorados, e não uma alternativa de formação válida em seus próprios termos.

E peca também, me parece, por pretender que a questão do pouco vínculo das universidades e programas de pós-graduação e pesquisa brasileiros com o setor produtivo possa ser resolvida com cursos de empreendedorismo ou mudanças de currículo de um tipo ou outro, quando a dificuldade está, sobretudo, na falta de competitividade e estímulo à inovação da economia brasileira, fechada e protegida como é. Com ou sem  cursos deste tipo, se houver demanda por inovação, e os profissionais tiverem formação sólida em suas áreas de informação, ela virá. Se não houver, não serão cursos de empreendedorismo ou mudanças pedagógicas que farão a diferença.

Author: Simon Schwartzman

Simon Schwartzman é sociólogo, falso mineiro e brasileiro. Vive no Rio de Janeiro

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