O Pensamento
Nacionalista e os "Cadernos de Nosso Tempo" Seleção
e Introdução de Simon Schwartzman
Brasília, Câmara de Deputados e Biblioteca do Pensamento
Brasileiro, Biblioteca do Pensamento Político Republicano, vol. 6, 1981
Introdução
Textos selecionados:
I - Ensaios
a. Três Etapas do Comunismo Brasileiro (1954)
b. Que é Ademarismo? (1954)
c. O Moralismo e a Alienação das Classes Médias (1954)
d. O problema do Negro na sociologia brasileira (Guerreiro Ramos, 1954)
e. Significação do Nacionalismo (Hermes Lima, 1955)
f. A política dos Estados Unidos (1955)
g. Análise existencial da sociedade brasileira (Oscar Lorenzo Fernandes, 1955)
II - O Modelo IBESP
a. a crise brasileira (Hélio Jaguaribe, 1953)
b. para uma política nacional de desenvolvimento (1956)
Introdução
EM AGOSTO de 1952, um grupo de estudiosos começou a se reunir, periodicamente,
para discutir os grandes problemas da época. Da agenda constava "o
esclarecimento de problemas relacionados com a interpretação econômica,
sociológica, política e cultural de nossa época, com a análise, em particular,
das idéias e dos fenômenos políticos contemporâneos e com o estudo histórico
e sistemático do Brasil, encarado, igualmente, do ponto de vista econômico,
sociológico, político e cultural". O Parque Nacional de Itatiaia, entre
Rio de Janeiro e São Paulo, serviu de ponto de encontro, com acomodações
cedidas pelo Ministério da Agricultura. Daí a denominação de "Grupo
de Itatiaia," pela qual o grupo ficou conhecido. Alguns meses depois,
já em 1953, ele levaria â criação do instituto Brasileiro de Economia, Sociologia
e Política - IBESP, responsável, entre 1953 e 1956, pela edição de cinco
volumes dos Cadernos de Nosso Tempo. A importância do IBESP e dos
Cadernos é que eles contêm, no nascedouro, toda a ideologia do nacionalismo,
que ganharia força cada vez maior no pais nos anos subseqüentes, e serviriam
de ponto de partida para a constituição do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros.
Seria evidentemente equivocado supor que todos os participantes do grupo
de Itatiaia, colaboradores dos Cadernos e futuros membros do ISEB,
tivessem uma maneira unívoca e coerente de ver as coisas. A própria história
mostraria que este movimento juntou, por alguns anos, pessoas com trajetórias
intelectuais e políticas bastante diversas. A lista de colaboradores dos
Cadernos é extensa: ela inclui a Alberto Guerreiro Ramos, Cândido
Mendes de Almeida, Carlos Luís Andrade, Ewaldo Correia Lima, Fábio Breves,
Heitor Lima Rocha, Hélio Jaguaribe, Hermes Lima, Ignácio Rangel, João Paulo
de Almeida Magalhães, José Ribeiro de Lira, Jorge Abelardo Ramos, Juvenal
Osório Gomes, Moacir Félix de Oliveira e Oscar Lorenzo Fernandes. A preocupação
com o subdesenvolvimento brasileiro, a busca de uma posição internacional
de não alinhamento e de "terceira força", um nacionalismo em relação
aos recursos naturais do país, uma racionalização maior da gestão pública,
maior participação de setores populares na vida política, tais eram, em
poucas palavras, os valores que pareciam unificar a todos.
Além deste mínimo, havia certamente diferenças, algumas de ênfase, outras
substantivas, como em relação à questão da socialização dos meios de produção,
tese central do documento de Jaguaribe de 1953 ("A Crise Brasileira").
As análises econômicas dos Cadernos não diferem, em essência, das
proposições da CEPAL; os diversos trabalhos de Alberto Guerreiro Ramos ("Padrão
de Vida do Proletariado de São Paulo." no. 1; "O Problema do Negro
na Sociologia Brasileira," no. 2; "A Ideologia da Jeunesse
Dorée," no. 4; "O Inconsciente Sociológico"; no. 5)
tampouco se integraram de forma clara ao que ficou mais tarde conhecido
como o pensamento isebiano; finalmente, a grande preocupação do IBESP com
temas relativos à politica internacional (que levou, inclusive, à publicação
de extensa documentação sobre a Conferência de Berlim de 1954, ocupando
a maior parte do número 3) parece responder ao clima particularmente agudo
da guerra fria no início da década de 50, não permanecendo no tempo a não
ser no esforço de aproximação com os novos países africanos, e uma idéia
de uma política externa independente que não deixaria de produzir seus frutos.
O que dá ao IBESP sua característica inovadora na história do pensamento
politico brasileiro é que, pela primeira vez, um grupo intelectual se propõe
a assumir uma liderança política nacional por seus próprios meios. Neste
sentido, o IBESP é radicalmente novo. Ele se diferencia dos pensadores políticos
do passado que acreditavam que seriam suas idéias, se corretamente aplicadas
- fossem elas liberais, católicas ou conservadoras -,que iriam transformar
a sociedade. E se diferencia, também, dos pensadores de influência marxista,
que se alinhavam, física e intelectualmente, com um setor da sociedade que,
acreditavam, viria um dia a liderá-la, ou seja, a classe operária. Para
os primeiros, as idéias políticas fariam tudo; para os segundos, elas podiam
pouco. Para o IBESP, eram os intelectuais, mais do que suas idéias ou partidos,
que poderiam, um dia, tomar o destino do país em suas mãos.
A evolução do IBESP de um mero grupo de estudos para um grupo intelectual
com projeto político próprio já é indicada na "Breve Introdução ao
IBESP" do no. 1 dos CNT: "o agravamento da crise brasileira e
a aguda consciência de que se impunha a necessidade de tentar a analise
de seus efeitos e causas em busca de soluções possíveis levou o IBESP, no
curso deste ano (1953),a suspender, por alguns meses, o programa de estudos
traçados no ano precedente, para se dedicar, predominantemente, à interpretação
da crise nacional". Efeitos, antes que causas, e soluções possíveis,
antes que estudos a prazo indeterminado: é a idéia de eficácia que emerge.
Existe ainda, por toda parte, a idéia de que o conhecimento da realidade
social tem que ser integrado, sistemático, abrangente. Esta é, na realidade,
uma condição necessária para uma visão da realidade que pretende ser uma
ideologia, e não um simples conhecimento aberto, diferenciado e tentativo.
Daí o grande apelo das formulações apresentadas pelo IBESP, como também
a explicação de muitas de suas falhas. Mas, afinal, que poderia fazer um
grupo de intelectuais?
Não existe, neste texto, uma visão clara a respeito do caminho que as elites
intelectuais deveriam seguir para desenvolver seu projeto. Ele fala, simplesmente,
da necessidade de promover a "circulação das elites", e da "formação
de um movimento social apoiado numa ideologia e orientado por uma programática,
apto a suscitar confiança no futuro e anseio pela realização dos objetivos
prefixados". Em "Para uma Política Nacional de Desenvolvimento",
publicado coletivamente pelo IBESP no último número dos Cadernos,
já surge uma formulação mais clara. A realização do programa político do
IBESP teria, essencialmente, duas condições: "o esclarecimento ideológico
das forças progressistas acima indicadas, a partir das mais dinâmicas -
burguesia industrial, proletariado e setores técnicos da classe média -
e arregimentação política destas forças. Tanto aquela como esta condição,
conforme se viu, requerem, para se realizar, a atuação promocional e orientadora
de uma vanguarda politica capaz e bem organizada". Quem comporia esta
vanguarda não está dito, mas pode ser facilmente intuído.
Seria desnecessário lembrar que a noção de ideologia adotada pelo IBESP,
e a visão de seu papel na transformação da sociedade, era multo particular.
Karl Mannheim distinguia as "ideologias parciais" das ideologias
"totais"; a primeira seriam as representações coletivas próprias
de grupos sociais colocados diferencialmente na estrutura social - classes
sociais, basicamente - e a segunda, a visão de mundo mais geral, ou weltanschauung
de uma época. O antagonismo das ideologias parciais não se resolveria
na ideologia total, como o texto sobre "A Crise Brasileira" parece
sugerir, já que elas se colocariam em planos diferentes. A solução clássica
de Lukács para a questão da verdade das ideologias, adotada mais tarde por
Lucien Goldmann, é que existiria uma ideologia "verdadeira", a
da classe operária, que teria em suas mãos o futuro da história; e ideologias
"falsas," as ideologias conservadoras das classes dominantes.
Mannheim, desprovido de uma visão apriorística do processo histórico, propõe
como saída a constituição de um grupo social acima das classes, a intelligentsia
, que teria condições de se colocar além das ideologias parciais e ter,
assim, uma visão verdadeira do conjunto.
O conhecimento obtido pela intelligentsia manheimiana não seria,
entretanto, necessariamente "ideológico." A sociologia moderna
tende a reservar o termo "ideologia" para se referir não a um
conjunto qualquer de valores, preferências e percepções de determinado grupo
social, mas a situações especiais em que estes valores, preferências e percepções
se apresentam fortemente estruturados como uma visão de mundo integrada
e coesa. As ideologias seriam, assim, somente um tipo extremo de "sistema
de crenças" políticas, que poderiam se apresentar com diversos graus
de estruturação. A experiência histórica em todo o mundo mostra que, em
geral, o nível de ideologização das sociedades é baixo, e só tende a se
acentuar em momentos de grandes convulsões sociais que mobilizam populações
inteiras ao redor de uns poucos líderes e algumas proposições muito gerais.
Ao postular a necessidade da formulação de uma ideologia e sua difusão na
sociedade como passo inicial para as transformações sociais que o país exigia,
o IBESP atribuía aos intelectuais, formuladores desta ideologia, um papel
muito mais importante do que o que Mannheim havia pretendido para sua "intelligentsia."
Havia, para isto, a condição implícita de que o processo político brasileiro
passasse por uma fase altamente revolucionária, o que era condição para
o surgimento de uma ideologia como o IBESP pretendia, mas contrariava seu
próprio projeto político, essencialmente reformista, e por isto mesmo pouco
ideologizado. Esta é uma contradição que não seria percebida na época, mas
que teria importantes conseqüências.
Independentemente dos resultados efetivos de seu projeto político, e da
validade ou não das interpretações que apresentava sobre a "crise de
nosso tempo", o IBESP foi responsável por uma série de ingredientes
que teriam uma presença duradoura no ambiente político brasileiro: o desenvolvimento
de uma ideologia nacionalista que se pretendia de esquerda, em contraposição
aos nacionalismos conservadores do pré-guerra ; a difusão das idéias de
uma "terceira posição" tanto em relação aos dois blocos liderados
pelos Estados Unidos e União Soviética quanto em relação aos pensamentos
marxista e liberal clássico; unia visão interessada a respeito do que ocorria
nos novos países da África e Ásia; a introdução do pensamento existencialista
entre a intelectualidade brasileira; e, acima de tudo, uma visão muito particular
e ambiciosa do papel da ideologia e dos intelectuais na condução do futuro
político do país.
Além do que antes se enumerou, os participantes do IBESP deixaram contribuições
importantes para o conhecimento e crítica da realidade política e social
brasileira. Somente a título de exemplo, é possível citar as análises sobre
o estado cartorial, o populismo, o moralismo das classes médias, feitas
especialmente por Hélio Jaguaribe, e as reavaliações da tradição do pensamento
político e social brasileiro propostas, de forma inteligente e mordaz, por
Guerreiro Ramos.
Pouco tempo depois de constituído, o IBESP estabelece um convênio com a
CAPES, liderada então por Anísio Teixeira, para a realização de uma série
de seminários sobre os "problemas de nossa época", e começou,
assim, o percurso que o levaria a se transformar em órgão permanente do
Ministério da Educação, como Instituto Superior de Estudos Brasileiros.
O impacto e as vicissitudes do ISEB não poderiam ser vistos aqui. Basta
lembrar que o ISEB foi, essencialmente, uma tentativa de levar à frente
os ideais do IBESP. Daí sua marca e daí, em última análise, o seu fracasso.
Rio de Janeiro, fevereiro de 1979
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