Edmundo Campos
Coelho, Sociólogo Radical
Depoimento na homenagem a Edmundo Campos Coelho,
Rio de Janeiro, IUPERJ, 5 de outubro de 2001
Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Ora, para o homem, a raiz
é o próprio homem”
Edmundo se foi muito antes do que devia, mas a tempo de nos deixar um clássico
das ciências sociais brasileiras, As Profissões Imperiais (Coelho,
E. C. 1999) . Nele, Edmundo nos mostra todas as qualidades que já conhecíamos,
mas que não haviam ainda sido reunidas em um só lugar: o texto bem escrito,
a cultura literária, a amplitude da formação sociológica, a intimidade com
a história, a ironia e o sarcasmo com que trata seus personagens e interlocutores.
Nesta nota, escrita por ocasião da homenagem que o IUPERJ lhe presta, eu
gostaria de destacar uma faceta de Edmundo que sempre me impressionou, que
foi o seu profundo e intransigente radicalismo, no sentido mais fundamental
do termo, que é o da fidelidade a si mesmo, e ao que ele entendia como sendo
a verdade das coisas. Era um radicalismo que lembrava os personagens de
Salinger, que começava pela rejeição às formalidades e gentilezas da vida
quotidiana, e terminava pela recusa em participar das liturgias da vida
acadêmica. Ao longo de quase meio século de convivência, desde as salas
e corredores da Faculdade de Ciências Econômicas em Minas Gerais, aprendi
a respeitar seus silêncios, seu isolamento e ensimesmamento, que logo se
transformavam em diálogo vivo, por vezes ferino, quando o que se dizia lhe
parecia interessante, importante ou absurdo.
Como muitos de nossa geração, Edmundo passou um tempo no exterior, mas não
se submeteu aos rituais do doutorado, quase não freqüentava reuniões e conferências
acadêmicas, nem entrava no jogo dos concursos e da compulsão do publish
or perish. A aspereza que marcava suas relações com tantos colegas se
transmudava no afeto, carinho e generosidade que colocava no contato com
estudantes, assim como com pessoas do povo que não participavam do jogo
competitivo das aparências. Em um texto do ano passado, escrito na forma
de um conto “à clef”, Edmundo desenha um retrato de corpo inteiro do mundo
acadêmico que rejeitava, dos concursos ao pós-modernismo, passando pelo
bom-mocismo e a mediocridade pretensiosa. E termina com um comovente discurso
de renúncia de um sociólogo, Santo de Sá, às formalidades de sua profissão,
depois de confessar que
“Ele nada compreendia desse insondável mistério que é a existência
humana, individual ou coletiva; que escapava ao seu entendimento a mais ínfima
malha desse inextricável e infinito emaranhado de milhões de destinos individuais
que se entrecruzam e se separam por artes do acaso; que o mundo provavelmente
não tem, a rigor, qualquer sentido (e aqui reproduzia, de memória, uma confusa
citação) "porque, possivelmente, tudo que existe é fragmentado, incompleto,
abortado; eventos com término mas sem começo, outros com apenas o segmento intermediário;
coisas que tem a parte anterior ou a posterior, mas não ambas; e tudo isso boiando
como num prato de sopa no qual vez ou outra alguns fragmentos se juntam por
acaso para formar um todo"; que somente a Razão alucinada pode pretender
ser possível ordenar esse caos, descobrir causalidades nessa infinita cadeia
de acidentes” (Coelho,
E.C. 2000).
Se tivesse ficado nisto, Edmundo teria sido no máximo um crítico iconoclasta
como muitos, abrindo caminho pela crítica fácil às inevitáveis limitações
intelectuais e de caráter de seus semelhantes. Mas sua inteligência e seu
radicalismo não lhe permitiriam cair nesta armadilha, assim como não cairia
nas armadilhas das grandes teorias, do engajamento político da moda, do
politicamente correto, ou do populismo piedoso e compungido. Ao longo de
sua vida profissional, Edmundo mergulhou a fundo na literatura especializada,
buscando perspectivas novas e distintas, sempre subversivas em relação ao
que lhe parecia ser o pensamento convencional de seu meio. Suas idéias evoluíram
no tempo, até culminar na obra exemplar que é As Profissões Imperiais.
Em seus trinta anos de professor, Edmundo formou toda uma geração de sociólogos
e seguidores, no Rio e em Minas Gerais, de onde nunca realmente se afastou,
e estou seguro que, em breve, teremos um trabalho que recupere de forma
plena o legado intelectual e pessoal que nos deixou. Eu não teria como descrever
aqui este caminho, sem uma análise detalhada de seus escritos e a recuperação
da memória de seus cursos e artigos. Mas posso, como testemunha um pouco
distante de sua trajetória, lembrar alguns momentos que mais chamaram minha
atenção, e quem sabe estas lembranças possam sugerir algo para seu futuro
biógrafo.
Primeiro, sobre questões de método. Nossa geração foi formada na leitura
dos sociólogos franceses e dos pensadores e filósofos que os alimentavam,
de Hegel e Marx aos “Marxiens” revisionistas, passando pela leitura obrigada
da obra efêmera de Georges Gurvitch, e tentando entender o que eram o existencialismo,
a fenomenologia e a lógica. Mais tarde, descobrimos que existia a pesquisa
empírica, os métodos quantitativos, as teorias de alcance médio e o mundo
da tradição intelectual anglo-saxã. Não saberia reproduzir como Edmundo
se colocava diante disto tudo, mas o conto sobre a “sociologia assassinada”
mostra que ele não punha muita fé em nossos esforços de decifrar a Phénomenologie
de l’Esprit e partir daí para a militância revolucionária. Em algum
momento, creio que por ocasião de seus estudos na California, Edmundo descobriu
as vertentes mais sofisticadas das metodologias quantitativas, os modelos
causais e a “path analysis”, e minha impressão era que por este lado ele
construiria sua competência e desenvolveria suas contribuições. Mais tarde,
no entanto, ele se volta para as correntes que, ao invés de tentar melhorar
as metodologias quantitativas, preferiam criticá-las, buscando construir
uma sociologia mais densa de significados e vivências - a etnometodologia
e a sociologia fenomenológica. Posso estar equivocado, mas creio que Edmundo
se manteve fiel a esta vertente metodológica até o momento em que o irracionalismo
e o desconstrutivismo pós-moderno entram na moda, de braço dado com o que
havia sobrevivido do funcionalismo marxista francês – Foucault e Bourdieu.
Contra eles, Edmundo valoriza o uso da razão, a clareza de idéias, o respeito
à empiria, o entendimento adequado dos conceitos, temperados pelo
ceticismo e as sutilezas da literatura, sem a arrogância dos que pretendiam
tudo entender e tudo explicar, mas sem sucumbir, tampouco, aos que pretendem
substituir o entendimento pela intuição, a indignação moral ou a estética.
Depois, quanto aos conteúdos. Os primeiros trabalhos de Edmundo, que o colocaram
no mapa das ciências sociais, foram sobre os militares. Eram os anos de
chumbo, em que os intelectuais de esquerda interpretavam a atuação dos militares
em termos de lutas de classe e guerra fria, e Edmundo vai recuperar a tradição
sociológica que procura entender a instituição militar, e, mais amplamente,
a lógica interna das corporações e organizações fechadas.[1] Para entender os militares, era necessário entender as
organizações, e para isto era indispensável conhecer os textos de Max Weber.
Edmundo não somente estuda a Weber, mas introduz no Brasil as teorias organizacionais
e o pensamento weberiano nesta área, em uma antologia que é, na verdade
seu primeiro livro. (Coelho, E. C. e Weber, M. 1966); (Coelho, E. C. e
Uricoechea, F. 1980).
O segundo grande tema é a criminalidade, e aqui Edmundo também enfrenta
os convencionalismos, penetrando no mundo da violência e da repressão, mostrando
que ele não pode ser escamoteado; não basta, para reduzir a violência, entender
as condições sociais dos criminosos, e tratar dos problemas da pobreza.
O crime precisa ser combatido, a impunidade não pode persistir, as “oficinas
do diabo” das penitenciárias precisam ser reformadas, os órgãos de segurança
reestruturados. A questão da violência urbana precisa ser estudada
e compreendida, novas práticas precisam ser desenvolvidas. Edmundo
inaugura os estudos sociológicos sobre a criminalidade e a violência
no Brasil, colocando temas de uma agenda que se tornariam prioritárias
nos anos posteriores. (Coelho, E. C. 1987).
O terceiro grande tema, que começa a se esboçar no final dos anos 80, é
o da universidade, da pesquisa acadêmica e das profissões. Que eu saiba,
esta foi a única vez em que discordamos abertamente. A organização das
universidades brasileiras a partir da reforma de 1968, que consagrou o princípio
da “indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão”, havia gerado,
ao lado de muitas iniciativas interessantes, um terreno onde florescia uma
nova casta de funcionários públicos, produzindo pouco mas se mantendo à
custa de uma ciência que, na maioria das vezes, ou não existia, ou não merecia
este nome. A Sinecura Acadêmica, publicada em 1988, foi uma crítica
devastadora a esta situação, com a qual eu compartia, mas chegava a conclusão
oposta (Schwartzman, S. e Castro, C. d. M. 1986). O que eu dizia, como
ainda digo, é que o erro principal estava em tentar impor a todos o modelo
da “research university”, que já era tempo de aceitar que uma boa parte
de nossas instituições superiores nunca teriam condições de se desenvolver
como centros de pesquisa, e que seria ótimo se elas pudessem, pelo menos
dar cursos competentes e serem reconhecidas por este trabalho. Para Edmundo,
o problema não era tanto institucional ou organizacional, como ético e moral:
ela preciso denunciar esta sinecura da falsa pesquisa, e recriar, nas universidades,
as condições necessárias para um trabalho de pesquisa honesto e competente.
Para ele, aceitar o ensino sem pesquisa seria compactuar com uma situação
inaceitável, ao invés de denunciá-la com o vigor que a situação merecia.
(Coelho, E. C. 1986); (Coelho, E. C. 1988).
O tema das profissões ocuparia a atenção de Edmundo ao longo de toda a década
de 80, culminando na obra prima que é As Profissões Imperiais. O
tema que percorre o livro são as tentativas de nossas elites acadêmicas
de, em nome de sua suposta ciência, controlar a sociedade, decidir quem
pode e quem não pode trabalhar, e usufruir dos benefícios destas posições
de privilégio[2] Mas, ao contrário
dos seguidores brasileiros de Foucault e Bourdieu, Edmundo não acredita
que elas tenham conseguido seus objetivos. Mais além destas pequenas elites,
com sua arrogância e pretensão, dispostas sempre a sufocar a liberdade dos
demais para aumentar seus privilégios, existia um mundo de pessoas
que nem tomavam conta de sua existência, e continuavam trabalhando e vivendo
sem se importar com o que ocorria no pequeno e acanhado mundo destes pretensos
portadores da ciência e da razão.
Eu não tentaria reproduzir aqui a discussão mais teórica que acompanha esta
interpretação, nem a conclusão a que Edmundo chega, ambos colocados por
ele mesmo em termos muito tentativos e gerais. Me parece que, entre os
positivistas que queriam o fim dos privilégios corporativos mas defendiam
uma ditadura republicana, e os democratas que se opunham aos poderes do
Estado e à liberdade dos indivíduos em nome de seus privilégios corporativos,
Edmundo prefere não tomar partido. Ele descrê das tentativas de interpretar
a sociedade brasileira em termos corporativistas, das teorias opressivas
dos franceses, ou das interpretações neo-marxistas de Magali Sarfati. A
todas estas teorias ele contrapõe a realidade amorfa, difusa, e em grande
parte indeterminada da sociedade brasileira, que não se deixa enquadrar
nas categorizações simplistas dos sociólogos.
Mas, ao contrário de seu personagem Santo de Sá, Edmundo nunca deixou de
fazer uso e dialogar com as teorias e os conceitos da sociologia, que sempre
tomou como referência, ainda que para mostrar suas limitações e criticar
seus excessos. Em todos os temas que abordou, a questão central era
lembrar sempre que, por das construções intelectuais, sociais, institucionais
que estabelecem hierarquias e garantem privilégios, existem pessoas
simples de carne e osso, tentando viver com dignidade seu quotidiano, e
tendo que enfrentar a arrogância e as pretensões dos que acreditam, mas
em vão, serem superiores aos demais. É nesta denúncia, pelo trabalho
intelectual, pelo estilo pessoal e profissional e, mais recentemente, pela
literatura, que reside, basicamente o radicalismo de Edmundo Campos Coelho,
e sua grande contribuição.
Referências
Barros, Alexandre S. C., "The Brazilian Military - Professional socialization,
political performance and state building", Tese de Doutoramento, University
of Chicago, 1978).
Coelho, Edmundo Campos. 1976. Em busca de identidade o Exército e a política
na sociedade brasileira. 1. ed Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
Coelho, Edmundo Campos. 1986. "Ensino e Pesquisa: Um Casamento (ainda)
Possível". Em Pesquisa universitária em questão. Simon Schwartzman
e Cláudio de Moura Castro. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
Coelho, Edmundo Campos. 1987. A oficina do diabo - crise e conflitos
no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Espaço e Tempo. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
Coelho, Edmundo Campos. 1988. A Sinecura academica - a ética universitária
em questão. Sao Paulo: Vertice e IUPERJ.
Coelho, Edmundo Campos. 1999. As Profissões Imperiais: Advocacia, Medicina
e Engenharia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Editora Record.
Coelho, Edmundo
Campos, "Crônica da Sociologia Assassinada ou Ao Mestre, com Carinho,"
Insight Inteligência III (11) (2000).
Coelho, Edmundo Campos e Alexandre S. C. Barros. 1986. "Military Intervention
and Withdrawal in South America". Em Armies and Politics in Latin
America. 2nd. edition ed. Abraham Lowenthale J. Samuel
Fitch. New York: Holmes & Meier.
Coelho, Edmundo Campos e Fernando Uricoechea. 1980. Estudos organizacionais.
Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Apoio Pequea e Mdia Empresa.
Coelho, Edmundo Campos e Max Weber. 1966. Sociologia da burocracia.
Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Schwartzman, Simon, "A força do novo,"
Revista brasileira de ciencias sociais. 5:2: 47-66 (1987).
Schwartzman, Simon and Cláudio de Moura Castro. 1986. Pesquisa universitária
em questão. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.
[1] Alexandre Barros e José Murilo
de Carvalho, cada qual em seu estilo, trabalham na mesma linha, e entre
os três desenvolvem uma versão muito mais rica e complexa para o entendimento
do autoritarismo militar brasileiro do que o pensamento convencional até
então havia conseguido fazer. Veja a respeito (Coelho, E. C. 1976); (Barros
1978); (Coelho, E. C. e Barros, A. S. C. 1986).
[2] Eu também tratei deste assunto
em um texto bem menos ambicioso, que creio que Edmundo não chegou a conhecer
(Schwartzman, S. 1987).
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