O Instituto de Biofísica da UFRJ

Maria Clara Mariani

Publicado em Simon Schwartzman, organizador, Universidades e Instituições Científicas no Rio de Janeiro, Brasília, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), 1982, pp.196-208

A carreira de Carlos Chagas Filho

O Instituto de Biofísica

Diversas investigações

Pós-Graduação

Conclusões


A carreira de Carlos Chagas Filho

Carlos Chagas foi o segundo filho do descobridor da "doença de Chagas". Nasceu em 1910, um ano depois da grande proeza científica do pai que descobriu o agente patógeno, o hospedeiro e o transmissor de uma doença ainda não conhecida - a "tripanossomíase americana". A carreira científica no Brasil, até então obscura e caracterizada como de "sacrifícios", restrita portanto aos que tivessem outras formas de subsistência, começara a render frutos fora do seu campa específico. Os prêmios internacionais, a aclamação como membro especial da Academia Nacional de Medicina trouxeram, junto com o reconhecimento social, a legitimação pública de uma atividade até então restrita aos laboratórios. Carlos Chagas Filho socializou-se portanto num ambiente em que a carreira científica não estava ligada apenas a incompreensões e desestímulos, mas também a sucesso, ainda que esse sucesso não implicasse em compensações financeiras: a pobreza da família é enfatizada em todos os textos sobre Chagas pai, como uma espécie de tributo a ser pago pelo privilégio de participar da construção de um " novo" Brasil. O intenso convívio que o pai começou a manter a partir de 1921 com as comunidades científicas européia e americana permitiu também uma visão do campo bem mais estimulante do que se estivesse restrito à esforçada, mas ainda incipiente, "colônia" carioca. Quando, em 1926, entra para a Faculdade de Medicina, única opção da época para quem quisesse fazer ciências biológicas, dá apenas mais um passo num caminho que parece vir sendo traçado desde as visitas que, criança, fazia aos laboratórios de Manguinhos, onde o pai foi pesquisador e depois diretor. Formado em 1931, Chagas torna-se em 1932, assistente do professor Raul Leitão da Cunha na cadeira de Patologia, e em 1935 faz concurso para livre-docente de física biológica. Paralelamente fizera o curso de especialização de Manguinhos, recebendo forte influência de Carneiro Felipe, físico-químico formado pela Escola de Minas de Ouro Preto e um dos responsáveis pela introdução no instituto de métodos mais modernos do que os até então usados na pesquisa bacteriológica.

Até 1937 Chagas manteve-se vinculado tanto à Faculdade de Medicina como ao Instituto Oswaldo Cruz. Nesse ano, com a morte de Francisco Lafayete Rodrigues Pereira, catedrático de física biológica, abre-se concurso para a cadeira e Chagas apresenta-se, estimulado principalmente por Carneiro Felipe, que considerava importante levar para a universidade o "espírito" do instituto. Esse projeto não parecia muito viável à maioria da equipe de Manguinhos, e Evandro Chagas, irmão de Carlos, era um dos mais descrentes da possibilidade de realizá-lo. Para ele, há pouco tempo derrotado no concurso para substituir o pai na cadeira de doenças tropicais, a Faculdade de Medicina era um "cemitério de vocações científicas". Assim, a decisão de abandonar Manguinhos e atirar-se integralmente numa empreitada bastante arriscada implicava em ganhos ou perdas totais. Vencendo, receberia os louros de pioneiro, como o pai e o irmão (criador do Serviço Especial de Grandes Endemias do Instituto Oswaldo Cruz - SEGE). Perdendo, seria mais um dos tão desprezados catedráticos-fósseis da Faculdade de Medicina. Diante desse quadro compreende-se que Chagas tenha investido o possível no próprio sucesso. Preparou-se para o concurso com quem considera os seus três mestres: Carneiro Felipe, já citado; Costa Ribeiro, físico da Escola Politécnica; e Francisco Mendes de Oliveira Castro, do Instituto Eletrotécnico. Vencedor, nomeado e empossado, parte para a Europa, por um período de seis meses, em busca de subsídios para o projeto que tinha em mente: implantar uma mentalidade científico-experimental na faculdade, que considerava imprescindível na formação de médicos na era pós-pasteuriana. Além das dificuldades objetivas que teria que enfrentar, como a carência de pessoal e de material, existia um grande mito a ser vencido: o de que na Faculdade de Medicina era impossível fazer pesquisa científica; para confirmá-lo citava-se a presença no corpo docente de pesquisadores do gabarito de Carlos Chagas (de 1926 a 1934), Olímpio da Fonseca (desde 1928) e Álvaro Osório de Almeida (desde 1921) que nunca tinham conseguido realizar ali seus trabalhos experimentais. Álvaro Osório chegara a recusar a oferta de um laboratório completo feito por um "ilustre brasileiro" porque era "impossível fazer pesquisa na universidade".

O estágio europeu, em Paris com Wurmser e Fessard e em Londres com Downan e Hill ofereceu-lhe o modelo de trabalho científico que procurou transplantar para o Brasil: valorização do contato pessoal entre pesquisadores, inclusive como forma de circulação das informações geradas nos vários laboratórios e tolerância com a "curiosidade, o ímpeto, o desconhecimento e até a arrogância dos pesquisadores novos", condições que considerava essenciais para a manutenção da vitalidade do ambiente e afastamento dos riscos de hierarquização e burocratização excessiva.

Na volta, já com clareza quanto aos seus objetivos, e quanto aos métodos para alcançá-los, seu primeiro passo é organizar a equipe com que vai trabalhar. Sua preocupação é reunir um grupo suficientemente qualificado para superar os obstáculos materiais e burocráticos inevitáveis. Do primeiro grupo fizeram parte Tito Enéas Leme Lopes, Lafayete Rodrigues Pereira, seus colegas de faculdade, Almir de Castro, sanitarista experiente também de Manguinhos, e Oromar Moreira, José Moura Gonçalves e João Batista Veiga Salles, vindos da "escola" de Baeta Vianna na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, aos quais logo se junta Hertha Meyer.

A possibilidade de reunir essas pessoas em torno de um laboratório que mal se iniciava deveu-se em parte a um dispositivo da Constituição de 1937, que impediu a acumulação de cargos a nível federal, mas não criou condições para o surgimento de uma carreira de pesquisador, através do estabelecimento de salários adequados e do trabalho em tempo integral. Em função disso esvaziaram-se os institutos independentes já que como professores universitários as compensações eram maiores.

O trabalho no recém implantado Laboratório de Biofísica, nova denominação da cadeira, passou a ser uma opção viável para os que não queriam abandonar o trabalho de pesquisa nem desvincular-se da universidade. Em pouco tempo entrava em funcionamento o primeiro laboratório, o de "Cultura de Tecidos", dirigido por Hertha Meyer, do laboratório que a Fundação Rockefeller mantinha em Manguinhos, e João Machado. Os recursos provinham do SEGE, dirigido por Evandro Chagas, profundamente interessado na cultura de protozoários - Trypanosoma cruzi e Plasmodium avarium -, já que o conhecimento dos seus ciclos vitais era fundamental para as campanhas de saneamento que dirigia. Pesquisava-se também a bioeletrogênese do tecido cardíaco.

O segundo laboratório foi o do próprio Chagas com o qual colaborou Bernhard Gross, do Instituto Tecnológico do Exército. A pesquisa desenvolvida ali sobre a bioeletrogênese do Electrophorus eletricus, do poraquê da Amazônia, iniciou algumas práticas que se tornaram tradicionais no instituto, como a da colaboração entre instituições e o aproveitamento de estruturas biológicas características da ecologia nacional. Funcionou também como uma espécie de fio condutor do crescimento do instituto: à medida que foi se tornando mais complexa foi exigindo a introdução de novas técnicas que por sua vez abriram novos campos de investigação. Segundo publicação do instituto de 1971, a maioria dos pesquisadores que se formaram no instituto até a década de 50 estudou algum aspecto da eletrogênese ou da biologia do Electrophorus eletricus.

Nesse período, Chagas já dá mostras do seu empenho e capacidade de superar obstáculos. Desafiado pela burocracia e penúria universitárias, procurou e encontrou soluções institucionais ou não, que permitiram a continuação do trabalho. Junto a Luiz Simões Lopes, então diretor do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) conseguiu que fosse criado o cargo de "técnico especializado" com um salário superior ao de professor assistente, o que foi um primeiro passo para a criação da carreira de pesquisador dentro da universidade. Acionando suas relações pessoais conseguiu doações, em dinheiro ou em material, que ultrapassaram os parcos recursos disponíveis. Desses doadores, o principal foi Guilherme Guinle, hoje patrono do instituto, que continuou com generosidade uma tradição de mecenato científico iniciada por seu pai, através da Fundação Gafrée Guinle. De 1946 a 1956 Guilherme Guinle, pessoalmente, suplementou os salários de toda a equipe do instituto, financiou a vinda de cientistas estrangeiros ou a ida de pesquisadores brasileiros para o exterior, além de doar integralmente o primeiro laboratório de Radioisótopos. Chagas recorreu também a amigos e parentes do Ministério das Relações Exteriores para resolver problemas políticos de pesquisadores franceses, alemães e italianos fugidos do nazismo e que chegaram ao Brasil de modo irregular.

O Instituto de Biofísica

 Assim, quando em dezembro de 1945 o laboratório foi transformado em Instituto de Biofísica, já tinha uma bagagem razoável de contribuições à ciência brasileira: introduzira e divulgara novas técnicas, tais como, registro de potenciais elétricos, cultura de tecidos. cromatografia, eletroforese, microscopia de reflexão, inferência e polarização, microrradiografia, citoquímica e radioisótopos; implantara uma prática de intercâmbio científico nacional (principalmente, com o departamento de Física da Universidade de São Paulo, Instituto Oswaldo Cruz e o Instituto Tecnológico do Exército) e internacional, recebera para estágios ou cursos mais ou menos prolongados mas sempre férteis, pesquisadores do gabarito de René e Sabine Wurmser, Charles Phillipe Leblond (da Universidade MacGill do Canadá, introdutor da técnica dos radioisótopos), Occhialini (Itália), Summer e Mathilda Brooks (dos EUA). Também já definira suas linhas de pesquisas básicas; o estudo do Electrophorus eletricus, suas características bioquímicas, equipamento enzimático, transformações energéticas e características principais de descarga de eletroplaca; o estudo da função tireoidiana; o estudo da depressão alastrante - "Leão Wave" - conduzido por Aristides Pacheco Leão, que vindo de Harvard. incorpora-se à equipe. Continuou, também, a busca das características da evolução do Trypanosoma cruzi.

Mas a contribuição mais importante do laboratório nesses nove anos de trabalho fora, sem dúvida, quebrar o mito de inviabilidade da prática científica na universidade e abrir caminho para o surgimento de novas instituições de pesquisa: na própria Faculdade de Medicina, o Instituto de Microbiologia, organizado em moldes semelhantes ao Instituto de Biofísica, e dirigido por Paulo de Góes; na Faculdade Nacional de Filosofia, o Centro de Pesquisas Genéticas; na Faculdade Nacional de Farmácia, o Centro de Produtos Naturais; o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, autônomo, mas intimamente ligado ao Departamento de Física da antiga Faculdade de Filosofia. Em todas essas instituições, procurou-se, como no Instituto de Biofísica, enfatizar o trabalho multidisciplinar e criar uma estrutura de apoio ao pesquisador, não apenas em termos materiais (salários, equipamentos) mas principalmente quanto ao intercâmbio científico. O isolamento seria o maior perigo a ameaçar o desenvolvimento da ciência brasileira, ainda referida ao modelo do cientista solitário pesquisando no seu laboratório particular assuntos do seu próprio interesse.

A partir de 1948 vemos o trabalho de Chagas desdobrar-se em duas frentes: ao mesmo tempo que continua presente no instituto, participando e estimulando a pesquisa e a formação de novos pesquisadores, tarefa considerada essencial para a ampliação do trabalho, inicia um trabalho de divulgação junto à comunidade "leiga", através de cartas a parlamentares, entrevistas a jornais e revistas, palestras na Rádio Ministério da Educação e discursos em solenidades públicas em que prega a necessidade de desenvolver a ciência brasileira. Enfatiza a relação entre a ciência forte e país independente, e apresenta sugestões concretas para o encaminhamento do problema. A principal delas, a criação de um Conselho Nacional de Pesquisas, veio se tornar realidade em 1951. O principal objetivo desse conselho seria dar ao pesquisador brasileiro segurança quanto às condições básicas de trabalho - tempo integral, equipamentos adequados, possibilidade de intercâmbio científico através de suplementação de salários, financiamento para material e concessão de bolsas de viagens para o exterior, ou de meios para a realização de algum projeto considerado relevante. Prega também a necessidade da criação de uma faculdade de ciências, que aliviaria a Faculdade de Medicina do seu duplo papel de formar médicos e cientistas, além de trazer claras vantagens para o ensino secundário e superior, laboratórios e instituições de pesquisa, colocando no mercado mão-de-obra adequada. A preocupação de Chagas com o ensino secundário traduz o seu ponto de vista de que a formação do pesquisador começa na idade escolar, e não faz sentido investir grandes somas na universidade sem que sejam cobertos os períodos de formação primária e secundária, durante os quais inúmeras vocações científicas se perdem, por absoluta falta de apoio.

Em 1951, quando completa cinco anos, o instituto já crescera bastante. Contando com quatro divisões administrativas - Físico-Químico-Biológica, Bioeletricidade, Biofísica Celular e Radiologia Médica - e onze Laboratórios - cultura de tecidos, histologia, Raios X, eletrônica, eletroforese, bioquímica, gás, bacteriologia, eletrofisiologia, medidas radioativas, medidas óticas - ampliaram a equipe original, com a vinda de Hiss Martins Ferreira, Gilberto de Freitas e A. Hargreves, além de Antônio Couceiro, morfologista vindo do Recife em 1940. O programa de intercâmbio científico, essencial na formação de cientistas, mantivera um ritmo intenso, e foi graças a ele que novas áreas de interesse se desenvolveram no instituto. A visita dos professores Lacassagne e Letarjet, do Instituto de Radium de Paris, deu origem ao Laboratório de Radiobiologia (1951) que se dedicou a estudar os fenômenos de restauração celular após radiação, e das sucessivas vindas de Denise Albe-Fessard, do Instituto Marey, de Paris (que a partir de 1953 tornou-se chefe do Laboratório de Métodos Biológicos) resultou um novo grupo de pesquisas no setor de Neurobiologia (1958). Os temas tradicionais do instituto, eletrofisiologia, função tireoidiana, depressão alastrante e o ciclo vital do Trypanosoma cruzi continuaram a ser aprofundados, graças a técnicas mais refinadas que por sua vez abriram novos campos de conhecimento, Por exemplo, o Laboratório de Eletroforese, instalado para permitir a análise das características bioquímicas do órgão elétrico do Electrophorus eletricus, tornou possível importantes estudos sobre venenos de serpentes brasileiras.

Nesse ano, com a criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), os recursos ampliaram-se e com eles a ambição dos projetos. Entre 1952 e 1957 instalaram-se duas unidades importantes, a de Microscopia Eletrônica e a de Ultracentrifugação Analítica, a primeira doada pelo CNPq e a segunda pela Fundação Rockefeller, além do novo Laboratório de Radioisótopos. financiado em parte por Guilherme Guinle. Intensificou-se a ida dos pesquisadores para estágios de aperfeiçoamento no exterior, com bolsas do próprio CNPq, da Fundação Rockefeller, do Conselho Britânico e da Unesco, que quando voltam para o instituto retomam seus projetos em bases mais elaboradas.

Diversas investigações

 O sistema de intercâmbio científico concebido por Chagas foi, segundo vários de seus colaboradores, um dos seus grandes achados. Consistia no envio, exclusivamente para laboratórios que tivessem trabalhos semelhantes, de pesquisadores brasileiros com vínculos profundos com o instituto, e que já tivessem um nível de desenvolvimento profissional que permitisse uma interação em bases igualitárias. Isto evitou uma série de problemas ligados a desajustes na volta para o Brasil, comuns a pesquisadores que, menos maduros, absorviam não só os métodos, mas os próprios objetos das pesquisas desenvolvidas no exterior e na volta não se adaptavam a trabalhar em condições menos "confortáveis".

Instalada a unidade de ultracentrifugação, o instituto iniciou um projeto em colaboração com médicos clínicos sobre a determinação do teor de lipoproteínas no sangue que teve grande repercussão na prática médica brasileira.

Do Laboratório de Radioisótopos surgiram duas pesquisas importantes: a primeira, em colaboração com o Departamento de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e o Departamento de Genética da Universidade do Paraná, contando também com apoio da Comissão Nacional de Energia Nuclear, propunha-se a fazer um levantamento minucioso das áreas de radioatividade natural existente no Brasil: Guarapari e Araxá; a segunda junto com a terceira cadeira de clínica médica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a pesquisar a possibilidade de aplicação dos isótopos radioativos à medicina; aprofundaram-se os estudos sobre a função tireoidiana, o que em 1961 permitiu a realização de um colóquio internacional sobre a tireóide. Foram organizados também pela primeira vez, cursos sobre a utilização de radioisótopos em biologia, medicina e bioquímica para divulgar a técnica no Brasil e na América do Sul.

Os novos projetos abriram a possibilidade de absorção da segunda geração de pesquisadores, que estava sendo "treinada" por Chagas desde os primeiros anos da faculdade. Convidando para trabalhar nos laboratórios os alunos que tivessem demonstrado no vestibular e nos primeiros anos do curso qualidades que considerava essenciais para um bom cientista (imaginação, persistência, combatividade), foi formando dentro dos laboratórios, segundo normas simples, mas constantes a equipe que iria permitir a ampliação dos trabalhos. Estimulava-se o contato direto do iniciante com o pesquisador mais velho, e a convivência direta com o problema experimental.

O crescimento do corpo técnico e a ampliação dos projetos obrigou a algumas modificações na estrutura administrativa do instituto. A concentração de todos os poderes e responsabilidades nas mãos de Chagas, que no período de implantação pode ter sido a condição básica do sucesso, deixou de ser viável. Em 1954 foi criado o cargo de vice-diretor e Manuel Frota Moreira, membro da equipe desde 1938, quando ainda era aluno do segundo ano de Medicina, ocupou o lugar, passando a ser o responsável por toda a parte administrativa.

Em 1955, mais uma vez a política de intercâmbio científico demonstra-se eficaz e é graças a visita do Professor B. I. Hoffman, da New York State University que se organiza o Laboratório de Eletrofisiologia Cardíaca, Essa nova frente de trabalho desenvolveu-se rapidamente, e em 1961 o instituto promoveu o "Simpósio Internacional sobre Tecidos Especializados do Coração". Até esse ano, o instituto já tivera seus trabalhos publicados em revistas de circulação internacional de alto nível como Parasitology, Journal de Physiologie, Nature, Acta Bioquímica, Experiência, Comptes Rendus de l’ Académie des Sciences de Paris, Journal of Neurophysiology, o que indica a qualidade de sua produção científica.

A segunda geração de pesquisadores, à medida que foi alcançando maturidade científica partiu também para estágio no exterior. De volta, desenvolvem projetos próprios e recebem nos laboratórios alunos para treinamento, dentro do mesmo esquema pelo qual tinham passado.

Pós-Graduação

A comprovação dos bons resultados desse sistema fez com que se tornasse uma espécie de plano-piloto para o projeto de pós-graduação que a Universidade do Brasil pretendia implantar nas áreas de biologia e medicina, Em 1962 com apoio do CNPq, da Capes - órgão do Ministério da Educação e Cultura, e da Fundação Ford, iniciaram-se formalmente os cursos de Física, Química e Biologia, que foram precursores da atual pós-graduação. Essas novas fontes de recursos vieram de certa forma liberar o instituto da dependência que tinha de doações esporádicas de empresas particulares ou públicas e permitir planejamento a mais longo prazo.

Em 1964, Chagas foi escolhido diretor da Faculdade de Medicina. Embora isso não tenha implicado num afastamento de fato do instituto, que funcionava no mesmo prédio da faculdade, caracterizou-se a necessidade de formalizar uma equipe dirigente para responder pelo seu funcionamento, Criaram-se então três departamentos: Administrativo (Eduardo Pena-Franca), Científico (Darcy de Almeida) e Didático (Antônio Paes de Carvalho) com autonomia de planejamento e execução nas suas áreas específicas mas ainda sem existência legal. Continuou nas mãos de Chagas a "identidade" do instituto. É ele quem negocia verbas, distribui os recursos internos, realiza convênios, enfim, concebe e põe em prática as linhas diretrizes do instituto. Por isso, quando foi em 1966 para a Unesco instalou-se um período de vazio institucional. Manuel Frota Moreira, vice-diretor, ocupou interinamente a direção e a decisão do reitor, a quem caberia escolher o substituto, custou a ser tomada. Finalmente foi escolhido Aristides Pacheco Leão, por ser o pesquisador de maiores qualificações acadêmico-científicas.

Os três departamentos foram fortalecidos e transformados em subdiretonias, embora sem personalidade jurídica. Funcionam até hoje como um colegiado interno responsável pela administração do instituto. O período de 1966 a 1970 foi marcado por uma grande expansão das atividades do instituto. Na jornada interna de 1971 foram relatados e discutidos 44 projetos de pesquisa e a equipe dos chefes de laboratório atingiu, através do trabalho de ensino e pesquisa, um grau de maturidade que permitiu a superação das dificuldades trazidas pela saída de Chagas. Mantiveram-se as linhas de pesquisa tradicionais, criaram-se e se aperfeiçoaram técnicas extremamente "finas", e os trabalhos sobre a poluição radioativa, realizados pelo Laboratório de Radioisótopos (Eduardo Pena-Franca) adquiriram uma importância ainda maior em função das explosões atômicas realizadas no Hemisfério Sul. O setor de radioisótopos ao qual pertence o laboratório foi credenciado pelo Serviço Nacional de Medicina e Farmácia para avaliar os diplomas do curso de Medicina Nuclear, e os programas dos setores de radioisótopos e radiobiologia fazem parte do Plano Nacional de Energia Nuclear, dirigido pela Comissão Nacional de Energia Nuclear. Criou-se um Laboratório de Radiobiologia Celular, atualmente integrado à rede internacional da Organização Mundial de Saúde. O setor de Biologia Molecular, decorrente da expansão dos interesses científicos dos pesquisadores do instituto, criou métodos próprios de cultura de larvas que permitiram o isolamento de excelente material para estudos genéticos (cromossomos politênicos). Os laboratórios de Contração Muscular e Comunicação Celular surgiram do desenvolvimento dos estudos sobre a eletrofisiologia da fibra cardíaca isolada (Antônio Paes de Carvalho). O setor de Neurobiologia (Carlos Eduardo Rocha Miranda e Eduardo Oswaldo Cruz) concentrou-se no estudo de marsupiais e publicou trabalhos detalhados sobre a organização cito-arquitetônica do seu cérebro.

Em 1970, ano em que Chagas voltou da Unesco e reassumiu a diretoria, apesar de todas essas conquistas a situação financeira do instituto não era boa. O valor das bolsas do CNPq já não era significativo, e o desnível entre os salários pagos pela Universidade do Rio de Janeiro, a USP e a Universidade de Brasília ameaçava a tradicional estabilidade da equipe. A solução encontrada foi apresentar ao Fundo de Desenvolvimento Científico (FUNTEC) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico um projeto de apoio institucional, que incluía o pagamento de técnicos, a organização de uma infra-estrutura de trabalho e o fortalecimento do programa de pós-graduação. O auxilio do FUNTEC permitiu a profissionalização da parte administrativa da pesquisa, até então a cargo de cada pesquisador, individualmente. Permitiu também o reequipamento geral do instituto, inclusive a instalação de uma nova unidade de microscopia eletrônica e um computador adequado ao tipo de investigação desenvolvido.

A concepção do projeto foi trabalho comum da equipe. Eduardo Pena-Franca, coordenador administrativo, Darcy de Almeida, coordenador científico e Antônio Paes de Carvalho, coordenador de ensino, ficaram com a responsabilidade executiva em cada área. A nova estrutura do instituto, mais formal, determinada pelo seu crescimento e pelas novas instalações da Universidade Federal do Rio de Janeiro não quebrou o clima extremamente pessoal que o caracteriza desde a sua fundação. Talvez a chave desse clima seja a organização em torno dos laboratórios, o que permite o relacionamento intenso de grupos pequenos de pesquisadores. Os laboratórios com interesses afins são por sua vez organizados em departamentos. Atualmente o instituto conta com 25 laboratórios, três unidades - microscopia eletrônica, ultracentrifugação e microcinematografia que, apesar de vinculadas a determinado departamento têm seus serviços acessíveis a todos os laboratórios, e quatro departamentos: Radiobiologia, Neurobiologia, Biofísica Molecular e Circulação e Biomecânica. Existe um diretor, escolhido de uma lista tríplice pelo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e três coordenadores - de administração e finanças, ensino (graduação e pós-graduação) e científico, indicados pelos chefes de laboratório, que formam o que é chamado de "colegiado interno". Esse colegiado, que não tem existência legal, é mencionado como prova do clima de harmonia que se mantém no instituto. O cargo de diretor seria mais simbólico do que real, e as decisões seriam sempre tomadas pelo grupo. A busca de consenso é enfatizada mesmo que para isso as coisas tenham ir que andar um pouco mais devagar.

O sistema parece funcionar, Esse ano (1976) termina o contrato com a FUNTEC e a tendência é que esta fonte seja substituída pelos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, administrado pela Finep. Importante é que todos os objetivos e prazos foram cumpridos. O curso de pós-graduação está classificado entre os melhores do Brasil pela Capes e a qualidade da produção científica mantém-se estável. Os trabalhos dos pesquisadores do instituto são aceitos nas melhores revistas especializadas e é freqüente a vinda de pesquisadores estrangeiros atraídos pela possibilidade de intercâmbio científico e de trabalho num ambiente estimulante.

Esse ambiente está extremamente ligado à identidade do instituto, e sua especificidade está mais ligada ao "clima" em que se trabalha do que propriamente à sua produção. Uma das grandes preocupações da equipe é exatamente manter esse clima. Como exemplo, é citado o problema do consenso no concurso para professor titular realizado em 1977. Havendo apenas uma vaga, decidiram escolher internamente um candidato, no caso Antônio Paes de Carvalho, que se apresentaria sozinho, para afastar um tipo de competição que consideram negativa e inevitável numa disputa institucionalizada por um cargo para o qual vários estão igualmente qualificados.

Aparentemente, esse clima é partilhado pelos alunos tanto de graduação quanto de pós-graduação. Na medida em que é muito claramente colocada a necessidade de adequação ao modelo de convivência do instituto, tem-se a impressão que os não assimiláveis praticamente se auto-excluem. O "caráter" do instituto é bastante conhecido entre os estudantes. Procura estágio ali quem já está interessado em trabalhar dentro daquele padrão. É condição essencial ter um pequeno projeto orientado pelo chefe do laboratório, que é quase sempre financiado pelo Programa de Iniciação Científica do CNPq. Assim o estagiário trabalha em condições profissionais, o que faz com que tenha um vínculo bem mais intenso com o trabalho do que teria se fosse um "auxiliar" de pesquisa do professor. Mas isso não impede que esteja todo o tempo participando da evolução da pesquisa do chefe do laboratório, e absorvendo o que chama de "copa e cozinha" do laboratório. Com relação aos pós-graduados vindos de outros centros a situação obviamente se complica. A seleção é feita através de uma prova de conhecimentos objetivos e não há maneira, nem intenção, de testar a "personalidade" dos candidatos, A tática adotada é não permitir que o número de "novos" ultrapasse uma certa proporção, para permitir a sua absorção pelo grupo, Os pós-graduados, além de uma pesquisa própria, têm o compromisso de dar aulas nos cursos de Biofísica e Fisiologia que o instituto ministra nas várias faculdades e institutos do Centro de Ciências da Saúde.

Conclusões

Para terminar é importante, na medida que se enfatizou tanto o "clima" do instituto, mencionar os mecanismos acionados para criá-lo e mantê-lo.

O principal talvez seja a identificação a uma "família". Atualmente uma "família" suficientemente grande para que se possa prever a necessidade de reformular suas regras de funcionamento. É fácil imaginar que nos primeiros os tempos, em que o grupo era pequeno e a burocracia imposta pela universidade era pouca, o modelo "familiar" possa ter funcionado a contento. O relato dos pesquisadores "criados" por Chagas, descrevendo, por exemplo, a distribuição de equipamentos ou material de trabalho em função das necessidades imediatas de cada um, dá a entender que qualquer formalização seria mais do que inútil, contraproducente. Partindo desse pressuposto, considerava-se dispensável qualquer controle de horário ou produtividade dentro da idéia de que o trabalho científico é uma atividade dotada de um ritmo próprio, sobre o qual não se pode intervir sem graves danos. Para Chagas a organização de um instituto de pesquisa dentro de um modelo burocrático eqüivaleria a esvaziar a ciência do seu caráter especifico. Um cientista que precisasse de livro de ponto para produzir não seria um cientista mas um burocrata, e seu trabalho seria sempre de baixa qualidade, por mais rigoroso que fosse o horário cumprido.

A maior parte da equipe do Instituto de Biofísica participa desse ponto de vista. A freqüência, por exemplo os encontros informais realizados depois das cinco horas em vários laboratórios, é extremamente valorizada. Nesse encontro são discutidas as várias pesquisas em andamento e trocam-se informações e idéias, e definem-se os vários subgrupos existentes no instituto, construídos não apenas em função do interesse científico mas também da afinidade pessoal.

Até agora esse modelo tem funcionado. Os atuais chefes de laboratório foram submetidos a um tipo de socialização semelhante por Carlos Chagas, o que dá uma grande unidade à equipe. Essa "escola" enfatiza a prioridade da imaginação criadora e boa metodologia sobre aparelhagem sofisticada e dispendiosa, a necessidade de estar permanentemente ligado à "realidade brasileira" e a obrigação de formar novos cientistas dentro de um padrão "ótimo" de qualidade, garantindo a continuidade do trabalho. Foi a partir dessas premissas que o instituto cresceu. E cresceu em tais proporções que foi necessário mudar a sua estrutura funcional-administrativa, que adquiriu um caráter mais formal. A nível do funcionamento dos laboratórios os princípios propostos por Chagas continuam dominantes. A possibilidade de conciliar os dois modelos é atualmente uma preocupação para toda a equipe, colocada diante de um problema comum a muitas instituições científicas: como se manter dentro de dimensões que preservem sua identidade sem perder a possibilidade de competir no seu campo especifico?



* Trabalho realizado no âmbito do Centro de Estudos e Pesquisas da Finep. Publicado inicialmente em Interciencia, vol. 3, n9 5.1978, p. 320-325. A responsabilidade pelos conceitos emitidos é da autora.