Do Centro D. Vital à Universidade Católica *
Tânia Salem
Publicado em Simon Schwartzman, organizador, Universidades
e Instituições Científicas no Rio de Janeiro, Brasília, Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), 1982, pp.97-134
Introdução
O panorama histórico
dos anos 20
A reação católica
O Centro D. Vital sob a direção de Jackson de Figueiredo:
a cosmovisão católica e o ideário educacional
O Centro D. Vital sob a direção de Alceu Amoroso Lima:
modificações processadas no caráter do movimento e a reaproximação da igreja com
o estado
1. A Igreja frente ao ensino primário secundário
e normal
2. A Igreja e o ensino superior
Conclusão
Fontes citadas
Referências Bibliográficas
Entrevistas
Outros
Documentos
Introdução
O propósito desse trabalho é o de reconstruir o trajeto verificado
entre a fundação do Centro D. Vital do Rio de Janeiro (1922) - de onde eclode
o movimento católico leigo nos anos 20 - e a criação das Faculdades Católicas,
futura Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1941. Enfocar-se-á
no ideário católico que justifica e impulsiona a criação de um estabelecimento
próprio de ensino superior e, paralelamente, se buscará depreender os elos institucionais
intermediários entre as duas referidas organizações. Ainda que o interesse central
se refira à atuação da Igreja na esfera da educação superior, incursiona-se
também na postura por ela assumida, nessas duas décadas, frente aos debates
pedagógicos sobre os outros níveis do ensino.
Após um breve histórico sobre a emergência do movimento de
"reação católica" na década de 20, dividiu-se o exame da questão segundo
um marco cronológico relacionado à dinâmica interna do grupo católico e que
se refere à mudança na chefia do Centro D. Vital. O primeiro período - que vai
de 1922 a l928 - cobre os anos em que a liderança do laicato coube a Jackson
de Figueiredo; o segundo compreende de 1928 a 1941, quando o movimento se encontrava
encabeçado por Alceu Amoroso Lima. Embora a presença de Alceu como presidente
da ação católica tenha persistido mesmo após 1941, o corte efetuado nessa data
se justifica por ser este o ano em que se funda a Universidade Católica - tratada
aqui como o coroamento do empenho da Igreja do domínio da educação superior.
A substituição na chefia do laicato, ocasionada pela morte
de Jackson de Figueiredo, implicou em uma nova orientação imprimida ao movimento
de um modo geral e que se refletiu, de igual maneira, na própria estratégia
de condução do grupo no setor educacional. Ademais, e não menos importante,
é o fato de que o critério cronológico proposto coincide, a grosso modo, com
duas outras ordens de fatores, externos ao movimento, que são também cruciais
para compreender a dinâmica do comportamento da Igreja frente à esfera do ensino.
Referimo-nos, de um lado, a acontecimentos políticos relevantes na conjuntura
nacional que conduziram a uma reavaliação do papel da Igreja enquanto agente
de sustentação social e política e, de outro, ao acirramento dos embates pedagógicos.
De fato, pode-se atribuir aos primeiros anos da década de
30 o caráter de um divisor de águas entre dois momentos bastante configurados
na história do grupo católico no que tange às disputas educacionais. No contexto
dos anos 20, o tema da educação adquiriu um lugar de proeminência na arena dos
debates no país. Alguns grupos políticos da sociedade civil, que no período
estruturavam projetos de reconstrução nacional, passaram a conceber a escolarização
como o instrumento-chave para responder às crises que assolavam a cena brasileira
e para afirmar as bases da nacionalidade. Os católicos já esboçavam, nesse período,
uma sistematização de seu ideário pedagógico e ensaiaram - ainda que de forma
tímida e pouco articulada, sobretudo se comparada com sua ação no momento subsequente
- suas primeiras reivindicações no campo educacional. Entretanto, sob a égide
da República Velha, a Igreja - embora adquirindo maior visibilidade pública
graças ao movimento de mobilização do laicato - não chegou a se constituir,
efetivamente, em uma força política expressiva, mostrando-se incapaz de fazer
valer suas demandas na esfera do ensino,
A derrocada da Primeira República forneceu à Igreja uma situação propícia para
suplantar o ostracismo a que tinha sido relegada pela Constituição de 1891, de
inspiração positivista. A debilidade endêmica da ordem política instaurada no
pais com a Revolução de 30 converteu-a em uma força social de peso para a legitimação
do novo arranjo de poder. Como ficará evidenciado, a questão educacional se configurou,
no período, em um importante elemento de barganha que viabilizou a reaproximação
entre a Igreja e o Estado. Assim, foi nesse segundo momento que as lideranças
leigas e eclesiásticas, em troca do suporte ao regime, conseguem ver realizadas
algumas de suas demandas centrais no setor de ensino. Além disso, a crescente
estruturação e afirmação alcançadas pelo movimento católico nessa etapa permitiram
também que o grupo empreendesse, em caráter particular, iniciativas relevantes
no campo da educação superior.
Pode-se afirmar que, em termos ideais, o projeto último da
Igreja era o de recuperar a posição privilegiada e quase monopólica por ela
desfrutada no universo cultural e educacional da Colônia. Segundo sua ótica,
este era o papel que lhe cabia, por direito sobrenatural, mas que lhe fora usurpado
no século XVIII quando Pombal expulsou os jesuítas do país. Na perspectiva da
liderança católica, reconquistar essa influência significaria, a um só tempo,
disseminar seu poder de influência na nova conjuntura e solucionar os impasses
que afligiam a Nação. Pautada nessas premissas, a Igreja formulou, no período,
um programa deliberado para recristianizar a sociedade e a própria instituição
do Estado - tarefa que se viabilizaria, basicamente, através da ressocialização
das elites dirigentes segundo os princípios cristãos.
No entanto, as pretensões pedagógicas católicas esbarraram
em propostas educacionais alternativas e mesmo antagônicas às suas que se articulavam,
com maior nitidez, nesse momento. O contexto dos anos 30 presenciou, sobretudo
até 1937, um aguçamento dos debates pedagógicos nos quais se destacou, como
o principal concorrente e opositor aos católicos, o grupo dos "educadores
profissionais" identificados com o movimento da Escola Nova. O Estado recém-implantado,
sem uma diretriz educacional definida e buscando sempre soluções conciliatórias,
oscilava entre as duas tendências, atendendo as reivindicações ora de um, ora
do outro grupo em litígio.
Aprofundando a concepção já elaborada no decênio anterior, a década de 30 conferiu
à escola o papel de agente de primeira ordem para modificações sociais mais
profundas. Em outras palavras, veicula-se a crença de que a reforma educacional
se constituía na peça chave para a reconstrução nacional. Essa supervalorização
ideológica do processo educacional, compartilhada tanto pelos católicos quanto
pelos escolanovistas, reforça a percepção do sistema escolar como um valioso
recurso de poder. Por conseguinte, a disputa pelo controle desse sistema deve
ser interpretada também como uma disputa política: o confronto entre as diversas
filosofias pedagógicas em pauta evidenciava, em última instância, a concorrência
entre projetos alternativos de reconstrução nacional, O objetivo desse trabalho
é o de delinear o projeto elaborado pelos católicos e ver como ele se retraduz
e se especifica no seu ideário pedagógico e nas suas conquistas no setor educacional[1].
Cabe ainda uma última observação: a própria estrutura altamente
hierarquizada da Igreja Universal impõe a necessidade de se pensar as Igrejas
de âmbito nacional como células desse conjunto mais amplo. As relações destas
últimas para com a Santa Sé se configuram como relações de nítida subordinação,
cujas orientações gerais a serem seguidas são ditadas e veiculadas sobretudo
por meio de encíclicas papais. No período sobre o qual versa esse trabalho,
alguns documentos foram emitidos por Roma, pronunciando-se não só a respeito
das diretrizes gerais a serem seguidas pela ação católica mas, também, de modo
mais especifico, sobre os princípios educacionais da Igreja. Essa contextualização
é importante para que se tenha em mente que aquilo que será aqui narrado, encontrava
suporte, em linhas gerais, em determinações superiores. Não obstante, esse artigo
não faz referências explícitas a esses comandos de Roma. Entre outros motivos,
essa decisão se justifica de um lado, pela própria flexibilidade relativa de
interpretações autorizada pelas encíclicas. E, mais importante ainda, porque
a concretização desses desígnios reside, em última instância, em fatores específicos
a cada país que escapam ao controle hierárquico da Santa Sé. No caso brasileiro,
por exemplo, o surgimento de lideranças eclesiásticas e leigas dispostas a fazer
reviver o catolicismo no Brasil e também as relações particulares que se estabelecem
entre a Igreja e o Estado se constituíram, de fato, nos elementos que possibilitaram
a mediação entre as ordens superiores de Roma e os resultados efetivamente alcançados.
Sustentamos que esses fatores intervenientes, mais do que as diretrizes da Santa
Sé, são os responsáveis últimos pelos sucessos alcançados pelo movimento de
reação católica dos anos 20.
O panorama histórico dos anos 20
O processo de diferenciação da economia brasileira a partir
do final do século passado e princípio deste - evidenciado na expansão da lavoura
cafeeira, no tímido desabrochar da indústria, no aceleramento do processo de
urbanização e na emergência de um mercado interno - foi acompanhado por uma
maior complexificação da estrutura social. O crescimento das camadas médias
urbanas, a constituição do proletariado e da burguesia industrial, o incremento
da imigração européia e a crescente organização e autonomia das Forças Armadas
acusam a presença de novos atores que passam a exigir uma ampliação nas bases
de representatividade do sistema vigente.
As aspirações políticas das forças sociais emergentes esbarram
com a rigidez da máquina político-administrativa, consolidada durante a primeira
república. Nessa configuração, as oligarquias agroexportadoras - sob a hegemonia
da burguesia cafeeira - detinham o controle sobre os principais recursos de
poder na sociedade, e seus interesses predominavam não só no plano federal mas
também no estadual, tanto no Legislativo quanto no Executivo.
No entanto, a crise decorrente da Primeira Guerra Mundial
(com a diminuição dos vínculos de dependência externa), os sinais de abalo e
desgaste no interior do próprio pacto oligárquico e a crescente pressão das
novas camadas sociais evidenciam, ao mesmo tempo que estimulam, o enfraquecimento
do regime político estabelecido,
A cena brasileira na década de 10 e, em especial, na de 20,
ver-se-á assolada por uma intensa mobilização da sociedade civil. Revelando
uma ambiência de insatisfação e de busca de novas alternativas, as camadas urbanas
se organizam em partidos de âmbito estadual, em movimentos político-sociais,
procurando impor seus projetos e demandas, que visavam ou à conservação ou à
reformulação da ordem social vigente.
Os conflitos sociais e a efervescência ideológica se manifestam
nas greves operárias e no maior grau de perturbação provocado pelas campanhas
presidenciais. O ano de 1922 é expressivo desse clima geral: presencia-se a
concretização da inquietude cultural e estética com a Semana da Arte Moderna,
a fundação do Partido Comunista do Brasil e a agitação nos quartéis, colocando
em cena os movimentos tenentistas,
Esses grupos descontentes ignoravam ou excluíam a Igreja de
seus programas e soluções. Como assinala Iglésias, as camadas mais importantes
da intelectualidade brasileira provinham, nesse momento, de círculos positivistas,
evolucionistas ou, pelo menos, indiferentes ao catolicismo (1971, p. 132). Diante
desse cenário em convulsão e sob a ameaça de se ver marginalizada do processo
político nacional, as cúpulas eclesiástica e laica deslancham uma estratégia
de autodefesa e se organizam dando início ao que se convencionou chamar de "reação
católica", Esse movimento assumiu posição de destaque no contexto brasileiro
a partir dos anos 20, configurando-se em um importante núcleo aglutinador da
sociedade civil, ainda que restrito, basicamente, aos estratos médios e superiores.
O "renascimento católico" se formalizou com a criação da revista A
Ordem (1921) e do Centro D. Vital 11922), instituição que congregou a intelectualidade
católica e da qual se irradiou, nas duas décadas seguintes, um amplo movimento
de apostolado.
A reação católica
O alcance e o significado dessa revitalização do catolicismo
brasileiro só podem ser corretamente avaliados e compreendidos, quando se considera
a posição e o papel desempenhado pela Igreja na Monarquia e nos dois primeiros
decênios da República.
De uma situação de inegável predomínio cultural na época colonial,
a Igreja é colocada, ao longo do Império, numa posição nitidamente subalterna
face ao poder temporal. Recorrendo, mais uma vez, a Iglésias:
"Como resultado da Constituição de 1824, a religião católica é a oficial;
estabelece-se o regalismo. A associação do Estado e da Igreja conduzirá a uma
Igreja submetida; o prestígio da maçonaria e o culto de valores leigos fazem dela
algo de convencional, sem maior vigor, uma força como as outras. A submissão ao
poder civil é reconhecida pelos próprios membros do clero, tão entranhado é o
espírito regalista, origem de questões que se arrastam ao longo do Império, em
que a religião é sempre vencida, em que se impõem os elementos leigos" (1971,
p. 131).
A relação entre a Monarquia e a Igreja só foi abalada pela Questão Religiosa
(1873) quando o bispo D. Vital, visando à transformação da Igreja em força atuante,
reivindica liberdade de decisão em matéria eclesiástica[2]. Mas, passado este incidente,
reacomodam-se as relações e a Igreja volta à situação de marasmo que a caracterizava.
A República, nascida sob inspiração positivista, declara-se leiga e promove
a separação dos dois poderes. Se por um lado a Igreja se viu privada dos privilégios
que desfrutava no Império, por outro passava a dispor, potencialmente, de uma
margem mais elástica de atuação decorrente da liberdade institucional e organizacional
obtida graças ao novo arranjo político, É nesse momento que surge, nos meios
católicos, uma proposta de radicalizar a conduta da Igreja. Ela é apresentada
por Júlio Maria, que defende o afastamento dos poderes dominantes em prol de
uma maior aproximação com as massas. A hierarquia eclesiástica, no entanto,
optou por aderir à ordem vigente. Por conseguinte, as relações entre Igreja
e Estado não sofrem abalos significativos e o ajustamento à nova conjuntura
se processa de modo não traumático. Os dois primeiros decênios do regime republicano
são caracterizados pela letargia e passividade nos meios católicos brasileiros[3].
O primeiro sinal mais vigoroso de oposição ao espírito acomodatício da Igreja,
e que se converte no baluarte da "reação católica" é a carta pastoral
de 1916 de D. Leme, recém-nomeado arcebispo da diocese de Olinda e Recife[4]. Nesse documento está preconizado o esboço dos principais fundamentos
que governam o movimento que se estrutura nos anos seguintes.
O pressuposto primeiro em que se baseia a pastoral é o da identificação do
Brasil como um país essencialmente católico. Embora constituindo a quase totalidade
da Nação, os católicos - acusados de se comportarem como um "grupo asfixiado
e inoperante" - tiveram solapada sua posição de direito na condução dos
destinos nacionais por uma minoria laica e descrente que encabeçava a república
positivista[5]. Mais do que uma humilhação para a Igreja, essa
situação é apontada como responsável pelos conflitos e desordens que assolavam
a sociedade brasileira naqueles anos. Interpretando a fragilidade de nossa estrutura
econômica, política e social como decorrente, em última instância, de uma crise
de ordem moral, D. Leme adverte que somente a recristianização da sociedade
seria capaz de restaurar a unidade espiritual do país, devolvendo-lhe seu equilíbrio
e harmonia naturais[6].
Para converter os católicos em força influente nos destinos
da nação e, simultaneamente, salvaguardar a nacionalidade. D. Leme proclama
a necessidade de um revigoramento de laços entre os leigos e a hierarquia eclesiástica
para que juntos, ainda que sob uma estrita subordinação dos primeiros aos comandos
da cúpula eclesiástica, desferissem a ação católica. Propondo uma política de
"saneamento dos saneadores", a cooptação de intelectuais é sugerida
como a estratégia básica para a irradiação da ampla obra de apostolado. Destacada
como elemento de vanguarda do movimento de reação, a intelectualidade teria
como tarefa combater as bases agnósticas e laicistas do regime, disseminando
a doutrina cristã pela sociedade e suas instituições, Assim, contrariando o
plano de Júlio Maria que determinava a recatolicização do pais por meio de uma
aliança entre Igreja e povo, a pastoral propõe que o mesmo objetivo seja alcançado
de "cima para baixo" - isto é, consolidando o conluio da Igreja com
a elite, sobretudo a intelectual.
O arcebispo aponta a falta de instrução religiosa como a principal causa do
indiferentismo e inércia dos católicos. Tornava-se premente combater o "catolicismo
de sentimento" e fundamentar a fé religiosa em um conhecimento mais aprofundado
dos ensinamentos cristãos[7]. Dessa ênfase num "catolicismo
mais intelectual" decorre o papel de extrema relevância que D. Leme confere
ao problema educacional. Como programa de ação sugere, de um lado, a luta contra
o ensino leigo - consagrado pela Constituição de 1891 - por meio da introdução
do ensino religioso nas escolas oficiais. Justificando que essa exigência não
se constituía em um privilégio mas em um direito que cabia à maioria católica
do país, o arcebispo demanda também subvenções, por parte dos poderes públicos,
às escolas confessionais, De outro lado, a pastoral já alerta para a necessidade
de criação de uma universidade católica com vistas ao recrutamento e socialização
de elites que, orientadas segundo princípios cristãos, se capacitariam para
promover a unificação moral do pais.
Nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, D. Leme transfere-se
para essa cidade em 1921. É nesse momento que encontra Jackson de Figueiredo,
que se converte no seu principal colaborador na reconquista da inteligência
brasileira, até sua morte, em 1928,
Foi a partir do encontro dessas duas personalidades que a
"reação católica" irrompe na cena nacional. O período que compreende
a década de 20 até meados da de 40 é marcado por um intenso trabalho da Igreja
que teve, como núcleo irradiador, o Centro D. Vital do Rio de Janeiro, Com o
decorrer do tempo, o movimento se ramifica em campos cada vez mais diversificados
com a criação de suborganizações de leigos, todas elas ajustadas e estruturadas
por D. Leme, que se constituiu no principal mentor da reação até sua morte,
em 1942. Escapa aos propósitos deste trabalho uma análise de todas as esferas
em que se lançaram os católicos, bem como a de seu posicionamento frente aos
aspectos problematizados da realidade nacional. No entanto, cabe frisar que,
ainda que ocupando um lugar de proeminência no seu programa, sua pregação educacional
se constituiu em apenas uma das áreas em que a Igreja desfere esforços para
fazer representar suas posições.
O Centro D. Vital sob a direção de Jackson de
Figueiredo: a cosmovisão católica e o ideário educacional
"Pode-se fazer a história do catolicismo no Brasil antes
e depois de Jackson de Figueiredo" (Iglésias, 1971, p. 110). De
fato, o movimento de reação encontra nesse personagem o mais ferrenho líder
leigo da militância católica. Ele é responsável pela aglutinação, em torno de
si, de um núcleo de intelectuais solidários com suas idéias e posições - como
Hamilton Nogueira, Perillo Gomes, Alceu Amoroso Lima, Durval de Moraes, Padre
Leonel Franca, dentre outros - que continua sua obra de apostolado mesmo após
sua prematura morte aos 37 anos.
Depois de ter sofrido, em sua juventude, influências do materialismo,
do evolucionismo e mesmo do anarquismo. Jackson de Figueiredo converte-se ao
catolicismo em 1917, sob influência de Faria Brito, Seu encontro com D. Leme
no Rio de Janeiro, em 1921, significou sua conversão definitiva e o início de
seu trabalho de irradiação apostólica.
A reação católica que desponta no Brasil nesse período estava fortemente pautada
no pensamento tradicionalista e reacionário francês, expresso pelos ideólogos
da Action Française[8]
e pelos doutrinadores da contra-revolução[9]. O substrato dessa
cosmovisão apoiava-se no suposto da existência de uma verdade tida como eterna,
imutável e essencial. Dessa perspectiva ahistórica decorria seu desprezo por
fatores sociais, econômicos e políticos - ou melhor, sua redução a um problema
de caráter moral.[10] Associado a essa
concepção estática e defendendo a desigualdade entre os homens como um dado
natural, essas correntes de pensamento tinham como fulcro a sacralização da
ordem. da hierarquia e da autoridade. Cultuando o passado e a tradição, insurgiam-se
contra qualquer tipo de revolução, enquanto manifestação que contrariava o status
quo.[11] Os tradicionalistas
desembocaram em um nacionalismo exacerbado e condenavam as ideologias e os regimes
liberais e democráticos como insufladores da anarquia e da subversão à "ordem
natural" do mundo.
A Igreja é tida como a cristalização da estabilidade e da
ordem e a Idade Média simbolizava o ideal a ser restaurado, A harmonia então
vigente havia sido sucessivamente perturbada, a partir do século XVI, com a
reforma luterana. promotora do cisma espiritual no Ocidente, com Descartes que,
ao conceder supremacia a dúvida e à razão, minara o saber único e cristalizado
e com a Revolução Francesa que, com seus ideais de liberdade e igualdade, acabara
por estimular a licenciosidade e a desordem, Esses movimentos são apontados
como as origens da crescente laicização da sociedade e do Estado, fator explicativo
para todas as crises modernas. Segundo essa perspectiva, o Estado Liberal -
personificando o liberalismo e o individualismo hipertrofiados contra a ordem
- teria como epilogo inevitável a implantação do Estado Comunista.
É nessa cosmovisão que Jackson de Figueiredo e seus pares
se abeberam ao iniciarem o movimento de ação católica. De acordo com tais pressupostos
proclamam que a única saída eficaz para debelar a onda revolucionária que se
espalhava pelo mundo, e que também atingia o Brasil, era uma reação espiritual.
Sustentando que a consolidação da nacionalidade dependia de um substrato moral
comum entre os indivíduos e identificando a nacionalidade brasileira com os
valores católicos, o grupo advoga a disseminação da doutrina cristã como a única
arma eficaz para combater o pluralismo político. sem o que seria impossível
restabelecer a unidade e a ordem no pais.
É com essa matriz de pensamento e com esse projeto de "salvação
nacional" que Jackson de Figueiredo cria, em 1921, A Ordem. A revista,
que se converte no mais importante instrumento de difusão do ideário católico,
pretendia combater as posições e ações indiferentes ou hostis à Igreja e, deliberadamente,
busca seus leitores entre os intelectuais do país. Declarando obediência à hierarquia
eclesiástica, a publicação destacava a figura de D. Leme como o guia diretor
do movimento que então se iniciava.
Irmanado à revista, surge, no ano seguinte, o Centro D. Vital com o objetivo de
promover estudos. discussões da doutrina religiosa e de congregar intelectuais
para uma ação apostólica. D. Leme recomenda a instituição a seus fiéis, justificando-a
como "uma obra destinada à penetração espiritual dos intelectuais, por meio
de bibliotecas e publicações de livros especiais etc... A generosidade que dispensarmos
a essa obra frutificará em uma nova geração de intelectuais" (apud Raja Gabaglia,
1962. p. 182).
É interessante contrastar o propósito inicial da organização, expresso na recomendação
do bispo, com o depoimento de figuras que dela participaram no período em que
esteve sob o comando de Jackson de Figueiredo. Segundo Alceu Amoroso Lima: "(o
Centro D. Vital) nasceu, ao mesmo tempo, no plano da doutrinação não apenas
de base intelectual, mas religiosa e ligado a uma intenção política de caráter
prático, embora não partidário: o da defesa do princípio da autoridade, que
lhe parecia (a Jackson de Figueiredo) o mais debilitado pela deliqüescência
do liberalismo burguês em 30 anos de República."[12] Em outro artigo,
Alceu ressalta que "a autoridade, o nacionalismo e a polêmica" se
constituíam nos pontos capitais do movimento que então se organizava.[13] Essa perspectiva é confirmada por Hamilton Nogueira:
"A Ordem foi uma revista de caráter político-religioso. Nós achávamos,
naquela época, que o movimento religioso deveria ser paralelo ao movimento político
de reação contra o liberalismo democrático" (apud Lima e Lima, 1973, p.
22).
Depreende-se dos depoimentos acima que a orientação jacksoniana - e, portanto,
também do grupo que reuniu à sua volta - mais do que cultural, conforme inicialmente
pretendida, foi predominantemente política.[14] Afirma-se, inclusive,
que Jackson de Figueiredo pretendia fundar um partido católico no país, no que
foi desestimulado por D. Leme. A revista e o Centro D. Vital parecem ter funcionado
como sucedâneos desse propósito.
No campo educacional já se esboçam, nesses anos, as duas vertentes
de atuação que acompanharam o movimento até os anos 40 com respeito à formação
de consciências. De um lado, no que tange à educação superior, reitera-se a
urgência de socializar as elites dirigentes segundo os princípios cristãos.
Artigos publicados em A Ordem, nesse período, insistem na perfeita compatibilidade
entre ciência e fé e glorificam a filosofia tomista como o único conhecimento
verdadeiro em oposição aos postulados materialistas e positivistas, acusados
de corroer os espíritos e a própria ciência (Cf. Velloso. 1978, p. 124 e 128).
Mas, do ponto de vista de uma ação mais pratica, não parece ter havido, entre
1921 e 1928, nenhum empenho concreto para a criação de um centro de cultura
superior. Pode-se, entretanto, sugerir que o próprio Centro D. Vital ocuparia
esse espaço com seus debates e reuniões semanais e com sua proposta de arregimentação
e conversão das elites ao catolicismo.
Por outro lado, com referência aos outros níveis de ensino,
os católicos se lançam ao combate da educação leiga vigente nas escolas oficiais.
apontada como uma afronta e desrespeito à maioria católica do país. Com essa
bandeira de luta, a Igreja desfere seu primeiro ensaio de reivindicação na esfera
política. Entre 1924 e 1926, quando se discutia, no governo Bernardes, a revisão
constitucional, os católicos se mobilizam e propõem a anexação de algumas emendas
que ficaram conhecidas como "emendas católicas" . A primeira delas
prescrevia a introdução do ensino religioso facultativo nas escolas públicas
e a outra reivindicava o reconhecimento da posição privilegiada da Igreja enquanto
culto da maioria nacional. Apesar da forte campanha deflagrada por A Ordem
e pelo Centro D. Vital, ambas as propostas foram rejeitadas. Esse fracasso denota
que o grupo católico, na Primeira República, não se constituía ainda num ator
suficientemente expressivo a ponto de conseguir impor seu programa na esfera
de decisões políticas.
Além dos católicos, outras correntes de pensamento também
articulavam, nesse momento, projetos próprios no domínio pedagógico. A década
de 10, especialmente a partir de 1915, e o princípio dos anos 20 presenciam
o surgimento de um amplo movimento ideológico que Jorge Nagle (1974 e 1977)
denomina de "entusiasmo pela educação". A decepção com o regime republicano
que, ao contrário do que era esperado, não havia resolvido mecanicamente os
desequilíbrios da sociedade brasileira, estimula a busca de novas alternativas
para solucionar os impasses nacionais. É nesse contexto que se estruturam correntes
de opinião que passam a conferir à educação o papel de força propulsora da sociedade
e de elemento saneador de todas as crises que assolavam o país is. Mais especificamente,
a disseminação da educação popular, através da multiplicação das instituições
escolares no molde das já existentes, passa a ser concebida como o mecanismo
básico de mobilidade social das camadas populares e como o fator-chave para
acelerar o desenvolvimento nacional. Assim, com uma tônica nitidamente nacionalista
e ainda que enfatizando diferentes aspectos com respeito aos alvos que se pretendia
atingir, organizações como a Liga da Defesa Nacional, a Liga Nacionalista de
São Paulo, o grupo da revista Braziléia, a Propaganda Nativista e a Ação
Social Nacionalista apresentam como bandeira comum de luta a erradicação do
analfabetismo.
Embora compartilhando com esses grupos uma superestimação
ideológica do processo educacional enquanto agente básico para transformações
estruturais, o movimento católico deles se distancia com respeito a propostas
de ação. Ou seja, seu empenho nesse setor se reduz, como assinalado, à luta
pela introdução do ensino religioso nas escolas oficiais. Referindo-se à postura
católica, sintetiza Nagle: "passa para segundo plano o problema da difusão
do ensino nos seus diferentes níveis e modalidades; principalmente, o esforço
para incrementar a atuação da escola primária ficou reduzida ao mínimo. Instruir
por instruir - argumentou-se - é tarefa ociosa e prejudicial; o que importa
é educar e para que haja educação é preciso impregnar o processo dos ensinamentos
da doutrina cristã, católica" (1974, p. 105).
Parece proveitoso tentar uma rápida avaliação do movimento
católico nesses sete anos, o que, de modo simultâneo, permitirá sintetizar alguns
dos principais pontos acima abordados. No que tange especificamente à educação,
pode-se concluir que, se por um lado, é fato que esse momento assinala a aparição
do grupo católico na arena pedagógica, de outro, - em termos de avanços concretos
-, os resultados atingidos são pouco significativos. Isso se evidencia, em parte,
na tentativa fracassada na inclusão das "emendas católicas" na revisão
constitucional. Ademais, o Centro D. Vital, que nasce com a proposta de recrutar
intelectuais com vistas à disseminação de uma cultura católica superior, também,
num certo sentido, não concretiza essa promessa. Não é despropositado afirmar
que a atuação do grupo no período se confunde com o posicionamento de Jackson
de Figueiredo frente ao mundo. Mais voltado para a ação e para o debate político,
o líder do laicato imprime ao centro uma orientação mais política do que cultural.
Por ocasião da morte de seu fundador, o número de sócios do Centro D. Vital
não ultrapassava a casa dos cinqüenta e as conferências e cursos lá proferidos
contavam com uma audiência bastante restrita. Em suma, a instituição se alijava
cada vez mais do grande público, formando um circulo fechado de uns poucos indivíduos
em torno do programa político de seu criador (Cf. Todaro, 1971, p. 119 e Iglésias,
1971, p. 157).
Não obstante, não se deve subestimar o saldo positivo legado
por esses anos. Foi graças a Jackson de Figueiredo, em conluio com D. Leme,
que se presencia pela primeira vez no Brasil o engajamento de intelectuais católicos
na vida pública. Segundo o depoimento de Alceu, foi a lealdade a Jackson que
impediu a desintegração desse pequeno núcleo de ativistas e que os incentivou
a dar continuidade à obra desse pioneiro após sua morte. A expansão e o aprofundamento
das iniciativas católicas na década de 30 se constituíram numa prova de que
os esforços de Jackson de Figueiredo não foram infecundos.
O Centro D. Vital sob a direção de Alceu Amoroso
Lima: modificações processadas no caráter do movimento e a reaproximação da igreja
com o estado.
Durante sua juventude, quando cursava a Faculdade de Direito. Alceu sofre uma
forte influência do agnosticismo e do evolucionismo spenceriano.[15] Abandona a advocacia
pela literatura e crítica literária e assinala que durante esse período - que
vai até 1924 - não tinha qualquer interesse despertado nem pela vida pública
nem pelos problemas religiosos. Alceu destaca Bernanos, Chesterton e Maritain
como figuras marcantes que o conduziram a uma aproximação em direção à Igreja,
efetivada em 1928. Do primeiro, que classifica como um reacionário, absorve
a idéia da necessidade de uma atitude militante em resposta ao intelectualismo
descompromissado e ao ateísmo; do segundo, definido como um antitradicionalista
e um dos reabilitadores da liberdade dentro do pensamento da Igreja, incorpora
a noção do reformismo católico distributivista como uma síntese entre o capitalismo
e o socialismo. Maritain, por fim, se constituiu num de seus principais mestres
com seus conceitos de "democracia cristã", "democracia social"
e "humanismo integral".
No entanto, Alceu atribui a Jackson de Figueiredo a influência
mais decisiva por ele sofrida entre 1924 e 1928, período em que se consolida
seu processo de conversão. Segundo suas palavras: "a conversão e a influência
de Jackson sobre mim não chegaram a alterar minhas idéias liberais anteriores
(...) Jackson de Figueiredo, no entanto, viria a exercer uma ação póstuma
sobre mim. Com sua morte, completar-se-ia sua influência. Morto, terminaria
me vencendo apenas por um tempo" (apud Lima e Lima, 1973, p. 120 3 121).
De fato, sua conversão religiosa implicou numa adesão às crenças políticas jacksonianas;
durante os dez anos seguintes Alceu - bem como o grupo por ele liderado - assume
uma postura ortodoxamente autoritária, baseada no culto da disciplina e da ordem.
Segundo sua própria perspectiva, somente em 1938 começaria a se atenuar, em
seu pensamento, a força do esquema tradicionalista de Jackson de Figueiredo.
Volta-se, a partir dai, para as idéias professadas por Maritain, Thomas Merton
e Teilhard de Chardin que o reconduzem a uma postura liberal e a um catolicismo
comprometido com reformas sociais,
Três meses após sua conversão ao catolicismo e uma semana após a morte de Jackson,
Alceu é procurado por Hamilton Nogueira, Durval de Moraes, José Vicente de Souza
e Sobral Pinto para assumir o cargo de presidente do Centro D. Vital e de diretor,
junto com Perillo Gomes, de A Ordem. Em depoimentos, Alceu relata sua
resistência inicial em aceder ao convite e a decisão de aceitá-lo é por ele
interpretada como um "dever" para com o amigo morto e seu ideário.[16] Ainda que destacando a influência póstuma de Jackson de Figueiredo
sobre sua personalidade, o fato é que, ao concordar em assumir a presidência,
Alceu impõe como condição "afastar o centro totalmente da política militante
ou partidária."[17] Seus estatutos são revistos
e o Centro D. Vital passa a ter como propósito central "o desenvolvimento,
através de meios intelectuais legítimos, de uma cultura católica superior em
nosso meio."[18].
D. Leme elege o Padre Leonel Franca, que estava em contato com o centro desde
seus primórdios, para ocupar o posto de assistente eclesiástico do Centro D.
Vital. O sacerdote jesuíta, que tinha como foco principal de interesse "os
homens cultos e os universitários", desempenhou um papel destacado nas
lutas desenvolvidas pelo grupo católico no campo do ensino e da educação.[19].
Em suma, sob a tríplice liderança de D. Leme, Alceu e Franca,
o movimento sofre uma mudança de angulação. A idéia professada pelo bispo -
em concordância com os desígnios da Santa Sé - de que a função espiritual da
Igreja estaria estreitamente ligada a uma missão cultural, é estimulada por
esses dois colaboradores que, ao contrário de Jackson de Figueiredo, eram personalidades
intelectuais.
Os efeitos do perfil da nova cúpula logo se manifestam sobre
o caráter do movimento que, de predominantemente político, tem agora enfatizado
seu cunho cultural. Essa nova configuração, associada a outros fatores explicitados
mais adiante, é responsável pelo maior empenho dispensado pelo grupo do ensino
e, em especial, no da educação superior. Comentando a sucessão do Centro D.
Vital, afirma Villaça: "a mudança foi profunda. Ao político sucedia
o universitário, Começava a fase cultural do movimento católico no Brasil"
(1975, p. 13. grifo nosso).
A partir da década de 30, o movimento se expande geograficamente
com a criação de filiais do Centro D. Vital em várias outras cidades brasileiras.
Mas o núcleo do Rio de Janeiro permanece como a principal célula de irradiação
da doutrina católica e é ele que sofre o crescimento mais acelerado. Com propósitos
apostólicos e ainda sustentando que a solução dos impasses nacionais dependia
de uma regeneração moral das elites, a nova liderança procura ampliar o debate
cultural, investindo mais intensamente na cooptação de intelectuais. O número
de sócios que em 1928 era de 50 se expande para 500 em 1935. Congruente com
a nova orientação, as reuniões informais se transformam em cursos e conferências
sobre filosofia, sociologia ou assuntos relacionados com religião, atraindo
um público cada vez mais numeroso. Destinados, a principio, apenas aos sócios
do centro, esses encontros acabam sendo freqüentados por professores, intelectuais,
políticos e empresários mesmo que não formalmente vinculados à organização.
Dentre os conferencistas convidados destacam-se personalidades como Osvaldo
Aranha, Pedro Calmon, Américo Lacombe, Tasso da Silveira, Afrânio Peixoto, Maritain
e Bernanos. Ademais, deve-se também a Alceu a iniciativa de convidar para trabalharem
no Centro D. Vital intelectuais não católicos como, por exemplo, os poetas Murillo
Mendes e Jorge de Lima.
Paralelamente verifica-se a ocorrência, entre 1930 e 1935,
de um outro fenômeno de extrema relevância que confere um novo caráter ao movimento
- a saber, o desdobramento do Centro D. Vital em uma série de organizações e
associações leigas especializadas, Por meio desse mecanismo, a reação católica
se ramifica em campo cada vez mais diversificados, garantindo sua infiltração
em diferentes setores da vida nacional.
A Associação dos Universitários Católicos (1929) e o Instituto
Católico de Estudos Superiores (1932), que serão objetos de exame detalhado
adiante, são as duas entidades criadas especificamente para o desenvolvimento
de um trabalho no domínio universitário. A Confederação Nacional de Operários
Católicos e as Equipes Sociais - também geradas nesses anos - tinham por tarefa
exercer o apostolado junto aos trabalhadores urbanos, prevenindo a infiltração
comunista em suas fileiras. A Confederação da Imprensa Católica e a Associação
de Livrarias Católicas, por sua vez, se ocupavam da divulgação e publicação
de notícias e volumes católicos. Essas seis entidades, juntamente com o Centro
D. Vital, se constituíam nas sócias componentes da Coligação Católica Brasileira.
Fundada em 1929, a coligação representou um esforço de unificar, coordenar e
racionalizar o trabalho dessas diversas associações leigas. Em 1935 ela é substituída
pela Ação Católica Brasileira, que se converte na mais importante organização
laica da Igreja no Brasil.
O desdobramento do núcleo católico não se esgota nas instituições
mencionadas. Embora não formalmente ligados à Coligação Católica Brasileira,
outros sub-movimentos se formam nesse período, como a Congregação Mariana, os
Círculos Operários, a Associação dos Professores Católicos e a Liga Eleitoral
Católica, todos sob estrito comando da hierarquia eclesiástica. Essas duas últimas
organizações, que desempenharam um papel importante na luta dos católicos no
setor educacional, serão examinadas mais adiante.
A formação dessas diferentes frentes de trabalho interconectadas
aponta para a crescente eficiência e maturidade do movimento, permitindo sua
penetração em múltiplas instâncias sociais e culturais. Assim, pouco a pouco,
a cruzada militante vai perdendo a feição monolítica e fechada, característica
dos tempos de Jackson de Figueiredo, para ingressar, entre 1930 e 1945. na fase
de maior prosperidade e prestigio nacional.
O sucesso dessa investida não pode ser explicado apenas pelo
empenho e capacidade dos líderes do movimento ainda que este seja, sem dúvida,
um fator explicativo de peso. Entretanto, parece plausível afirmar que dificilmente
a Igreja teria atingido tal poder de influência se não fosse pela conjuntura
bastante especial dos anos que corriam. Os vitoriosos da Revolução de 30 não
constituíam um grupo homogêneo; pelo contrário, o Estado então instaurado era
sustentado por uma coligação heterogênea de interesses na qual nenhum grupo
tinha força suficiente para impor-se aos demais. Esse equilíbrio instável gera
um "vazio de poder" que, de um lado, reforça o papel do Estado enquanto
árbitro das tendências existentes e, de outro, converte a Igreja em uma força
política relevante para o suporte e legitimidade do governo provisório.
D. Leme estava cônscio do poder potencial que tinha nas mãos
e, na inauguração da estátua do Cristo Redentor em 1931, que mobiliza grandes
contingentes de católicos de todas as partes do pais, adverte: "O nome
de Deus está cristalizado na alma do povo brasileiro. Ou o Estado reconhece
o Deus do povo, ou o povo não reconhecerá o Estado", A advertência - que
pode ser interpretada, ao mesmo tempo, como uma mensagem de um possível apoio
- foi logo entendida por Vargas. A partir dai consolida-se, paulatinamente,
uma nova fase nas relações entre o poder temporal e o eclesiástico; de uma situação
de separação e desunião entre as duas instituições passa-se a uma de cooperação
e aproximação progressiva. Deve-se ter em mente que essa aliança foi viabilizada
pelo fato de a Igreja estar pautada num ideário e num tipo de atuação que se
encontravam em perfeita consonância com a ideologia autoritária e paternalista
então implantada. Ou seja, a persistência da linha interpretativa jacksoniana
com ênfase na "ordem" e nas "autoridades constituídas",
o trabalho da Igreja de prevenção à infiltração comunista em diferentes setores
através da ação católica, o prestígio moral e o apoio das massas católicas convertiam
a Igreja em uma aliada indispensável ao regime, Em troca ela obtém não apenas
alguns ganhos específicos - como a reintrodução do ensino religioso nas escolas
e a não legalização do divórcio - como também o seu reconhecimento quase oficial,
consagrado na Constituição de 1934.
Foi a conjugação favorável desses fatores internos e externos
ao movimento católico que propiciou uma arrancada mais agressiva por parte da
Igreja para impor suas propostas no espaço político nacional. As transformações
aludidas se retraduzem, com nitidez, na atuação do grupo frente ao domínio educacional.
Comparando-se os dois momentos pelos quais atravessa o movimento católico, nota-se
que permanece inalterável o lugar de destaque atribuído à educação no seu ideário.
Por outro lado, o período mais recente apresenta traços diferenciais importantes
com respeito à fase anterior. Sintetizando, a ênfase mais cultural imprimida
ao movimento a partir de 1928. a criação de organizações leigas especificamente
voltadas para um trabalho no setor de ensino e o maior poder de barganha da
Igreja vis-à-vis ao Estado - são elementos que propiciam as vitórias alcançadas
pelo grupo no campo educacional nos anos seguintes. Nesse sentido, esses fatores
evidenciam também o afunilamento da trajetória que os católicos percorrem até
desembocar na criação de um centro próprio de ensino superior.
1. A Igreja frente ao ensino primário secundário
e normal
Já em 1931 a Igreja obtém sua primeira vitória no setor educacional.
A promulgação do Decreto no. 19.941 de 30 de abril desse ano tornava facultativo
o ensino religioso nas escolas públicas, pondo fim a quarenta anos de vigência
de laicidade nesses estabelecimentos. Por meio desse ato governamental. D. Leme
veria concretizada uma das principais demandas expressas na sua carta pastoral
de 1916, e os católicos se veriam refeitos da derrota sofrida em 1926 quando
foi recusada a anexação das "emendas católicas" na Constituição.
Estudiosos do movimento de renovação espiritualista, bem como alguns de seus
próprios protagonistas, têm ressaltado a intenção e o sentido político subjacente
à promulgação do decreto, destacando que ele se constituiu no primeiro elo
de aproximação entre a Igreja e o Governo Provisório. Em um de seus depoimentos,[20] Alceu se refere a uma carta enviada por Francisco Campos a
Getúlio na qual, defendendo a necessidade de tentar uma reaproximação com a
Igreja, apresentava sua pasta de educação como um instrumento para restabelecer
tal ponte. O então ministro da Educação e Saúde já tinha mantido contatos com
D. Leme e o padre Franca que lhe sugeriram a conveniência e a oportunidade de
introduzir, em nossas leis, o ensino religioso nas escolas públicas. O jesuíta
foi encarregado pelo ministro de redigir a exposição de motivos que, após ser
aprovada pelo cardeal, foi entregue a Campos em 15 de abril. Quinze dias depois.
o decreto era promulgado. No seu livro Debates Pedagógicos, publicado
em 1931, Alceu enaltece a figura de Campos e atribui ao decreto o valor de "dissipar
40 anos de mal-entendidos entre a Igreja e o Estado da República" (1931,
p. 57).
A situação do debate educacional a partir de meados da década de 20 apresenta
alguns traços diferenciais importantes com relação ao momento imediatamente
precedente.[21] O movimento caracterizado como "entusiasmo
pela educação" - que se articula na década de 10 e no principio dos anos
20 - propugnava a difusão das escolas como uma forma de assegurar ao país um
lugar dentre as nações desenvolvidas. No entanto, por volta de meados da década
de 20, o "entusiasmo pela educação" cede lugar ao "otimismo pedagógico".
Ainda que também enfatizando a luta contra o analfabetismo, a perspectiva emergente
se diferencia da anterior por defender a necessidade de não apenas disseminar
a escola mas, sobretudo, de reformulá-la segundo um novo modelo pedagógico.
Presencia-se, paralelamente, o surgimento de novos padrões na forma de se abordar
a temática educacional. Esses assuntos são, pouco a pouco, retirados da esfera
de competência dos movimentos políticos e organizações partidárias, conforme
ocorria na década de 10, e passam a ser pensados, pela mentalidade dominante,
como um domínio especializado e autônomo da realidade social. Em outras palavras,
a educação se converte em um campo especializado gerando uma nova categoria
de técnicos e especialistas que, de fato, se profissionaliza em torno do tema.
Em 1924, o movimento ganha seu suporte institucional com a criação da Associação
Brasileira de Educação que institucionaliza e centraliza os debates promovendo
palestras, cursos, conferências e inquéritos na área. Dessa sociedade de educadores
participam importantes intelectuais como Heitor Lira, Sampaio Dória, Lourenço
Filho, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e outros. Integrando a burocracia
pública na área educacional, esses técnicos em educação convertem seus princípios
pedagógicos em políticas públicas ao empreenderem reformas de ensino em alguns
estados e no Distrito Federal.
Tomando-se em conta a ótica do grupo católico, pode-se sugerir
que o "entusiasmo pela educação" se constituía num movimento mais
inócuo que o do "otimismo pedagógico" pois, enquanto que o primeiro
proclamava apenas a disseminação da escola, o último apresentava propostas reformistas
que afrontavam diretamente os princípios católicos. A mobilização desse grupo
de profissionais com pretensões a monopolizar a planificação e as decisões nesse
âmbito aponta para a necessidade da Igreja de assumir uma posição mais agressiva
sob pena de se ver marginalizada de interferir num campo que, segundo seu ideário,
era antes de sua competência e da família do que do Estado ou de qualquer grupo
profissional laico.
A crença. disseminada no período, de que a reestruturação do sistema escolar levaria,
de modo quase que automático, à resolução dos problemas nacionais, reforça a percepção
de que o controle sobre o sistema de ensino se constituía num elemento fundamental
de poder - ou seja, reconhece-se a escola como uma agência, de fato, política.
Em 1931, Franca pontificaria: "mais do que em qualquer outro teatro de luta,
é na escola que se fere a peleja constante que decidirá o futuro dos nossos destinos
(...) Quem conseguir plasmar nas suas mãos o maior número de almas novas, será
o senhor da sociedade e do mundo civilizado de amanhã" (apud D'Elboux,
p. 231, grifo nosso).
Portanto, a interpretação dos próprios atores em jogo denota
que a luta por impor seu projeto pedagógico extrapolava, em intenções e conseqüências,
a esfera especificamente educacional. As disputas pedagógicas assumiam uma colaboração
nitidamente política e o que estava na arena de debates era, em última instância,
a proposta de diferentes projetos de (re)construção nacional, Fernando de Azevedo
- um dos mais eminentes representantes da Escola Nova - atribui ao decreto de
1931 a responsabilidade pela intensificação da clivagem entre o grupo do qual
fazia parte e os educadores católicos, cujo confronto se prolongará abertamente
por quase sete anos (1964, p. 663). Escapa às nossas intenções uma análise minuciosa
dos princípios propugnados pelo movimento pedagógico renovador. Antes, com o
intuito de delinear esse debate, tentar-se-á fixar como os católicos, a partir
de sua própria perspectiva e princípios, interpretam e contestam os postulados
escolanovistas.
Já em 1931, Alceu e Franca - considerados os dois expoentes
do movimento de renovação cultural e educacional católico - publicam livros
nos quais estão expressos os principais pontos defendidos pela Igreja frente
ao confronto, A obra de Alceu consiste numa compilação de seus artigos escritos
no decorrer daquele ano. Nela, o autor polemiza, de um lado, com Francisco Campos
e Azevedo Amaral a respeito do problema da reorganização universitária e, de
outro, com diferentes correntes de opinião que se manifestaram contrárias ao
decreto, como grupos protestantes, parte da imprensa e ainda adeptos do escolanovismo
(Gustavo Lessa e Lourenço Filho). Por sua vez, o livro de Franca é uma apologia
do ensino religioso. Remetendo-se sempre à experiência de outros países, o autor
trata da questão sob o ponto de vista pedagógico, social e jurídico e apenas
o último artigo é, especificamente, dedicado ao decreto brasileiro.
A intelectualidade católica reitera, em primeiro lugar, a importância da revolução
espiritual como a base verdadeira de qualquer progresso e como a única capaz
de gerar o consenso necessário para o restabelecimento da ordem no país[22]. A civilização norte-americana é responsabilizada pelo alastramento,
por todo o mundo no decorrer do século XIX, de uma mentalidade laicista, individualista
e protestante, contribuindo assim para o enfraquecimento da espiritualidade
e, particularmente, do catolicismo. A busca de um perfil especificamente nacional,
por conseguinte, implicaria de modo inevitável numa repulsa aos dogmas importados
norte-americanos dada sua não identificação com a "alma católica"
do povo brasileiro. Em suma, a revolução espiritual é apontada como o meio de
recuperar a verdadeira identidade nacional, ameaçada pela "descaracterização
yankista ou soviética" (Lima, 1931, p. VII). Nessas colocações já se insinua
uma crítica aos escolanovistas. cuja matriz de pensamento provém dos países
protestantes, sobretudo dos EUA.
A veiculação dessa espiritualidade teria, como canal básico, o sistema educacional.
Assim, a filosofia pedagógica adotada não seria apenas responsável pelas condições
de ensino stricto sensu mas também, e especialmente, pelo tipo de sociedade
(leia-se, seu "estado moral") construída a partir dela. Visto sob
um outro ângulo, mais do que instruir, a escola deveria se voltar para a educação
de seu povo.[23]
O movimento da Escola Nova com seu "modernismo agnóstico"
fortemente influenciado pelas teorias de Dewey, é apontado como o causador,
nos dias que corriam, da "anarquia pedagógica" que assolava o país.
Segundo os intelectuais católicos, sua fragilidade - e também a razão principal
porque tinha de ser combatido - derivava do fato de não estar embasado, em
termos filosóficos, em um ideal pedagógico consistente. Submetendo a filosofia
à ciência e, portanto, ignorando o aspecto sobrenatural no ser humano, o "naturalismo
pedagógico" teria reduzido a psicologia a uma ciência puramente experimental
- ou melhor, a uma pseudociência pautada em pressupostos deterministas e mecanicistas.
Dada a impossibilidade de uma ciência positiva incorporar a moral verdadeira
aos seus domínios, a pedagogia dos reformadores apresentava um caráter fundamentalmente
utilitarista e pragmático[24]. E, deixando-se aprisionar pelo delírio da técnica
e do progresso material, incentivavam a crise espiritual dos nossos dias preparando
o campo para a implantação dos ideais comunistas na sociedade brasileira (Cf.
Lima, 1931, p. 154 a 160 e Franca, 1931, p. 14 a 19).
Segundo os educadores católicos, o traço distintivo básico de sua pedagogia com
respeito àquela propugnada pela escola de Dewey era sua orientação e subordinação
às ciências especulativas - isto é, à filosofia e teologia.[25] A conclusão que daí inevitavelmente se
retira é a de que "entre religião e pedagogia (existe) um nexo inscindível
(...) Se a educação não pode deixar de ser religiosa, a escola leiga que, por
princípio, ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar. Tal é o veredictum
irrecusável de toda sã pedagogia" (Franca, 1931, p. 20 e 25).
Justifica-se assim a principal bandeira de luta dos católicos frente ao debate
educacional - a saber, o combate à laicização do ensino. A escola leiga,
ponto-chave do programa dos escolanovistas, é responsabilizada por estimular
o egoísmo e a anomia moral da coletividade, conduzindo-a a comportamentos anti-sociais.[26] De modo inverso, só o ensino religioso era capaz de sedimentar
a reforma interior dos indivíduos, substrato último das reformas econômicas
e sociais.[27]
Um segundo ponto de dissenso entre as duas correntes pedagógicas
se manifestava nas respostas diferenciais fornecidas à questão sobre a quem,
por direito, competia educar. Interpretando as propostas escolanovistas
como pressionando em direção ao monopólio pedagógico do Estado, a intelectualidade
católica acusa essa corrente de postular o bem do Estado e da sociedade como
a lei suprema promovendo, em última instância, o aniquilamento da personalidade
individual. Também por esse motivo, sua filosofia estaria, aos olhos dos católicos,
abrindo brechas para a comunização do pais.
Em contraste, os católicos defendem a competência de três agentes na condução
do processo educacional: a Igreja, a família e o Estado, A primeira, enquanto
representante da sociedade sobrenatural, teria a missão de educar em virtude
de uma concessão divina, A família, por sua vez, é encarada como a agência natural
da educação. Antes de pertencer à sociedade temporal a criança pertence à família
e, por conseguinte, os pais dispõem de um direito e dever inalienável sobre
sua educação.[28]
Finalmente, concebe-se o Estado como dispondo apenas de um poder de coordenação
e orientação de modo a viabilizar os desígnios da Igreja e da família para a
expansão integral dos membros da comunidade. Ou seja. seus direitos na esfera
educacional seriam limitados pelos direitos anteriores e superiores das ordens
natural e divina.[29]
Seguindo esse raciocínio, o monopólio pedagógico estatal, bem como a laicidade
do ensino, são apontados como uma subversão da hierarquia natural existente
entre essas três entidades, além de representarem uma afronta contra a moral
da maioria católica do país. O combate a essas duas propostas se constituiu
nas principais bandeiras de luta do movimento católico na esfera do ensino primário,
secundário e normal.
A idéia de que os pais e a Igreja têm precedência sobre o Estado, no que tange
à educação, levou os intelectuais católicos a uma posição singular frente ao problema
da erradicação do analfabetismo. A gratuidade e obrigatoriedade da instrução -
outro ponto de destaque do ideário escolanovista - é interpretada, mais uma vez,
como uma interferência do poder público em uma esfera que não era de sua competência.
Ademais, sustentando que a difusão de conhecimentos no máximo instruía mas, de
fato, não educava, o movimento católico se opõe abertamente ao "democratismo
escolar" como, aliás, já o vinha fazendo desde a década anterior. Em seu
livro Política, escrito em 1932, Alceu - referindo-se ao fato de o Brasil
possuir naquele momento cerca de 67% de analfabetos - concluía: "essa alma
profunda da nacionalidade não precisa ler e escrever para ser humana e brasileira
(...) Sempre tive grande inclinação por fazer apologia dos analfabetos. Pois bem,
essa massa de brasileiros analfabetos é que conserva as nossas mais puras virtudes
de alma" (apud Jarbas Medeiros, 1978, p. 332. grifo nosso).[30]
O decreto de 30 de abril veio atender à principal demanda
do ideário da Igreja. No entanto, a vitória precisava ser consolidada. Em primeiro
lugar, segundo a perspectiva dos próprios educadores católicos, a lei apresentava
falhas sobretudo no que dizia respeito ao fato de estar destituída de qualquer
estabilidade jurídica. O artigo 11º do referido decreto autorizava
o governo a suspender o ensino religioso, por simples aviso do ministro da Educação.
A polêmica provocada pela promulgação do decreto era mais um motivo que deixava
os vencedores em sobreaviso. Alegando que o ato governamental feria a neutralidade
escolar e liberdade de consciência, diferentes setores pró-laicistas da sociedade
civil se mobilizam e, publicamente. manifestam seu agravo. A eles, a intelectualidade
católica responde que a escola leiga não é, nem podia ser neutra porque colidia
com os direitos e deveres da grande maioria da população[31]. Argumentavam, ainda, que o caráter facultativo do ensino religioso,
conforme estabelecido pelo decreto, respeitava integralmente a liberdade espiritual,
pois garantia que ele seria ministrado aos filhos das famílias católicas e que
dele seriam dispensados os alunos cujos pais assim o solicitassem.
Como já referido, o decreto provocou um aguçamento do confronto
entre os educadores católicos e os reformistas. Acusando seu cunho politiqueiro
e mesmo seu caráter inconstitucional, gs pedagogos escolanovistas insistiam
na continuidade dos debates sobre o ensino religioso, idvogando a necessidade
de uma Constituinte para discuti-lo. A clivagem entre os dois grupos se acentuou
de tal modo que foi impossível, a partir dai, estabelecer uma zona de consenso
entre as posições, como ficou atestado na IV Conferência Nacional de Educação,
realizada em dezembro de 1931. Esse congresso, conforme pedido do chefe do Governo
Provisório e do ministro da Instrução e Saúde às partes em litígio. tinha por
incumbência definir princípios que exprimissem a política escolar da revolução.
Entretanto, ele acabou por consumar o rompimento definitivo
entre os dois grupos que se consubstanciou com a publicação, em princípios de
1932, do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Ainda nesse ano, esse grupo
se reúne na V Conferência Nacional de Educação, promovida pela Associação Brasileira
de Educação, para apresentar sugestões de um plano nacional de educação para
o anteprojeto da Constituição.
A proximidade da Assembléia Constituinte, a mobilização e
cooptação dos pioneiros para cargos de destaque na burocracia estatal, bem como
a própria indefinição do Governo Provisório frente aos grupos em litígio reafirmam,
para os católicos, a idéia de que a vitória obtida com o decreto não era definitiva.
A fim de evitar um retrocesso, a intelectualidade católica organiza uma intensa
campanha de modo a revidar as ações dos escolanovistas e, paralelamente, garantir
a consagração de seus princípios na Constituição de 34. Através da revista A
Ordem e de outros órgãos de divulgação, o Manifesto dos Pioneiros é taxado
como um "documento socialista e comunizante". Acusa-se Anísio Teixeira
(seu alvo preferido), Fernando de Azevedo e Celina Padilha, dentre outros, de
professarem e disseminarem a ideologia comunista pelo país.
Em fins de 1931, sob a direção de Everardo Backhauser e do
padre Franca, iniciam-se as atividades da Associação dos Professores Católicos,
visando à aglutinação dos professores cariocas com o propósito de discutir problemas
pedagógicos e formular propostas de ação. Em 1933, a associação passa a ser
organizada nacionalmente com a criação da Confederação Católica Brasileira de
Educação que promove cursos e congressos com o objetivo de formular uma política
educacional com base na doutrina cristã. Essas duas entidades se constituíam
na contrapartida católica à Associação Brasileira de Educação. Entretanto, segundo
alguns estudiosos, sua atuação foi bastante medíocre e os congressos nacionais
promovidos pelos católicos apresentavam um nível bastante inferior aos dos escolanovistas
(cf. Danilo Lima, 1978, p. 75 e ss.)
Em 1933. os católicos enviam à comissão constituinte um memorial - as "Reivindicações
Católicas" - redigido por Alceu e Franca, no qual estavam estipulados os
princípios que a Igreja desejava ver consagrados na Constituição. A não inclusão
de suas propostas na Constituição de 1926 parece ter despertado os católicos
para a necessidade de se organizarem para pressionar a Assembléia Constituinte
de modo a garantir a incorporação de seus pontos na nova carta. Este é um dos
objetivos que leva, em 1933, à criação da Liga Eleitoral Católica que faz das
Reivindicações Católicas seu programa de ação. Ainda que afirmando estar subordinada
ao princípio da isenção partidária e insistindo que seu propósito era apenas
o de esclarecer a consciência católica em matéria eleitoral, o fato é que essa
entidade, organizada em escala nacional, se configura em um extraordinário instrumento
político nas mãos da Igreja. Sua posição foi a de que só seriam indicados ao
eleitorado católico aqueles candidatos à Assembléia Constituinte de 33 e ao
Congresso Nacional de 34, que apoiassem as reivindicações estipuladas pela Liga.
Seu programa totalizava dez pontos e, dentre estes, três eram apontados como
o programa mínimo a ser defendido, a saber, o reconhecimento do casamento religioso
pela lei civil e indissolubilidade do laço matrimonial; a incorporação do ensino
religioso facultativo nas escolas públicas e a regulamentação da assistência
religiosa facultativa às forças armadas, prisões, hospitais etc. A mobilização
do eleitorado foi tal que a Igreja garantiu que uma parte significativa dos
representantes na Constituinte fossem favoráveis à inserção de suas teses na
nova carta. De fato, após intensos debates, a Constituição de 34 confirma a
vitória dos católicos.[32] Não apenas seu programa mínimo
é incorporado na carta constitucional como também nela a Igreja obtém seu reconhecimento
quase oficial por parte do Estado. Os católicos, que defendiam o princípio da
distinção entre Igreja e Estado não na base de dissociação mas sim numa de "colaboração
recíproca", conseguem ver esse ponto prevalecendo na Constituição de 34.
O fato de os reformadores não terem conseguido impor seus
princípios de neutralidade e laicidade de ensino não autoriza concluir que foram
eles os derrotados absolutos no embate. A Constituição de 34 acabou por atribuir
ao Estado um papel intervencionista e diretor no Plano Nacional da Educação
e garantir a escolarização primária, gratuita e obrigatória. Ademais, seus representantes
continuaram a ocupar postos de destaque na burocracia estatal e a empreender
reformas de ensino em diversos estados. Nesse sentido, ambos os grupos vêem
acolhidas algumas de suas reivindicações, prevalecendo, em última instância,
uma situação de compromisso e acomodação, pelo menos formal, das perspectivas
em conflito.
Após a consagração jurídica definitiva de seus princípios pedagógicos, a liderança
católica manteve-se vigilante para que a regulamentação do ensino religioso
fosse implementada. O último foco de resistência encontrava-se no Distrito Federal,
autônomo desde 34, e então governado por Pedro Ernesto. Anísio Teixeira, no
cargo de Secretário de Educação, procurava fazer passar uma lei para invalidar
no Distrito Federal o que a Constituição estipulara para os estados. Após uma
série de tramas políticas processadas por detrás dos bastidores e de articulações
interpessoais, D. Leme consegue ver posta a lei em execução em 1937.[33]
Comparativamente ao período de 1931/34, o número de artigos publicados em A
Ordem, nos três anos subsequentes, sobre a educação primária, secundária
e normal, diminui de modo significativo, E, os que aparecem, se preocupam apenas
em reenfatizar os princípios pedagógicos católicos já assinalados e/ou se limitam
a repetir as acusações aos educadores reformistas e seus princípios.[34]
Pode-se, portanto, afirmar que em 1934 praticamente se encerra
o trabalho do movimento católico com respeito ao ensino primário, secundário
e normal, Passar-se-á agora à análise do ideário e das estratégias de ação do
grupo no que tange ao ensino superior.
2. A Igreja e o ensino superior
O encontro de dois postulados centrais do ideário católico - a ênfase numa
reforma moral e espiritual associada à perspectiva elitista do movimento -
já evidencia o porquê de a educação superior e a criação de um estabelecimento
próprio de ensino terem se constituído, desde a década de 10, em metas prioritárias
do movimento de reação. Católica.[35] Não obstante, mais de três décadas
decorreram até que esse anseio fosse efetivado. O programa deliberado de cooptação
e doutrinação de elites - que já era o objetivo último da criação do Centro
D. Vital - foi assumindo, passo a passo, uma concretude e uma especificidade
cada vez maiores. O primeiro desses avanços se deu com a mudança na chefia do
laicato de Jackson de Figueiredo para Alceu Amoroso Lima, em 1928. Ainda que
não provocando qualquer alteração nos fundamentos filosóficos que norteavam
a ação do grupo, nem do diagnóstico particular elaborado sobre a situação brasileira,
e nem mesmo nas soluções sugeridas para a resolução da crise, verificou-se uma
mudança na inflexão do movimento, de predominantemente político a cultural.
Além disso, com a pulverização do Centro D. Vital em diferentes frentes de trabalho
de leigos, subordinadas à Coligação Católica Brasileira, a educação e, em especial,
a educação superior se converteu em um domínio. especializado do. movimento.
A Associação dos Universitários Católicos (1929) e o Instituto Católico de Estudos
Superiores (1932), embora com sentidos bastante distintos, foram as entidades
geradas para uma atuação da Igreja do domínio universitário. Essas são, em suma,
as instâncias mediadoras que remontam o trajeto entre a eclosão do movimento
católico, em 1922, e a fundação das Faculdades Católicas, em 1941.
Ao assumir a presidência do centro, Alceu se dispõe a ampliar a organização
por meio da participação de novos membros rompendo, assim, com o enfeudamento
característico do momento precedente. O primeiro setor da sociedade que se tenta
conquistar e, paralelamente, organizar a ação, é a juventude universitária.
Em 1929 nasce a Associação dos Universitários Católicos do Rio de Janeiro que,
em seus estatutos, anunciava como objetivo: "a) completar a instrução e
a educação religiosa de seus membros; b) preparar católicos militantes tanto
na vida particular quanto na vida pública; c) coordenar as forças vivas da mocidade
brasileira a fim de ser restaurada a ordem social cristã no Brasil". A
nova entidade sublinhava, ainda, o propósito de trabalhar em completa submissão
à ortodoxia da Igreja Católica e às autoridades eclesiásticas[36]. Padre Franca, que colocava como meta missionária principal
a "salvação da juventude universitária", foi nomeado por D. Leme para
o cargo de assistente eclesiástico da organização nascente.
A entidade passou a se constituir na seção juvenil do Centro D. Vital. As reuniões
semanais e os cursos por ela promovidos se realizavam no próprio centro e, segundo
Todaro, os encontros dos aucistas eram inteiramente dominados e dirigidos pelos
membros mais velhos do movimento (1971, p. 238) o que, aliás, estava em total
congruência com o espírito fortemente hierarquizado da organização. Em 1930,
a revista A Ordem abre uma seção especial - a Seção Universitária -
que passa a reproduzir artigos dos jovens militantes. No âmbito especificamente
universitário, os aucistas desenvolvem algumas lutas em prol da autonomia universitária
e por uma maior representação estudantil no Conselho Universitário. No entanto,
desde muito cedo, a associação acaba se transformando quase que exclusivamente
em uma liga do combate à infiltração comunista nas faculdades, sendo inclusive
responsável pela perseguição e expulsão de alunos e professores na década de
30.[37]
O fato de a primeira ramificação do Centro D. Vital ter se verificado
no campo da atividade universitária estava em perfeita congruência com o ideário
que governava o movimento, Os católicos criticam o caráter tecnicista e profissionalizante
dos estabelecimentos oficiais existentes em nível superior que, enfim, eram
responsáveis pela geração das novas camadas dirigentes do pais. Na ausência
de um templo próprio de ensino superior, a Igreja, através da Associação dos
Universitários Católicos, se infiltra nesse domínio com o intuito de catolicizar
essas consciências em formação e se opor, por meio de uma ação organizada, à
disseminação de valores contrários ou competitivos aos seus nesse meio.
Essa entidade que, em 1935, se converte na Juventude Universitária
Católica, não chega a se constituir em um antecedente direto da Universidade
Católica mas, por outro lado, ela consubstancia a primeira tentativa da Igreja
em cooptar, para o seu seio, as futuras elites dirigentes da nação, representadas
nos jovens universitários. O sucesso dessa investida, por suposto, garantiria
a ressacralização das instituições sociais e também a do Estado.
Três anos depois, o movimento consolida um avanço decisivo em direção ao fim
almejado com a criação do Instituto Católico de Estudos Superiores visualizado,
já na época, como o primeiro germe da futura Universidade Católica.[38] Criado em maio
de 1932, esse estabelecimento teve Alceu Amoroso Lima como idealizador e fundador
e foi dirigido por Sobral Pinto. O padre Franca também marca aí sua presença
como membro do corpo administrativo e docente. Na cerimônia de inauguração,
presidida por D. Leme, estavam presentes na mesa, Alceu, Fernando de Magalhães
(reitor da Universidade do Rio de Janeiro), Arquimedes Memória (diretor da Escola
de Belas Artes) e, como representante do Governo Provisório, o ministro da Educação
e Saúde, Francisco Campos. Tal fato atesta a aprovação - ou, pelo menos a condescendência
- do Estado frente à entidade que então nascia.[39]
Num sentido muito genérico, a finalidade do instituto coincide
com o propósito do Centro D. Vital e também com o da Associação dos Universitários
Católicos - qual seja, o de formar fileiras em torno da cristianização da inteligência
nacional. Entretanto, mais importante são suas diferenças - ou melhor, a especificidade
e particularidade que o instituto guarda quando confrontado com as associações
que o precederam.
Como a Associação dos Universitários, o novo centro de excelência
tinha por propósito atingir, especialmente, os alunos da Universidade do Rio
de Janeiro, visando complementar sua formação obtida nos estabelecimentos tradicionais
de ensino superior, de modo a integrá-los na ação católica (cf. Lima, 1932).
Entretanto, a predominância do caráter político (em sentido estrito) sobre o
cultural assumido pelo movimento aucista assinala a distância entre as duas
organizações. Ademais, e mais importante ainda, é o fato de que, com o instituto,
a Igreja concretiza seu anseio por um estabelecimento próprio para o adestramento
de elites católicas.
Ao assumir a presidência do Centro D. Vital, Alceu, coerente
com seu propósito de converter a organização em um "núcleo de estudos para
a formação de uma cultura católica superior", promove conferências semanais
sobre temas filosóficos, sociológicos, educacionais e mesmo religiosos. O nascimento
do Instituto Católico assinala um avanço nessa situação à medida em que passa
a oferecer cursos regulares de nível superior, sistematizados e programados
segundo um curriculum com a duração de dois anos. Nesse sentido, diferentemente
do caráter de célula indistinta do Centro D. Vital, a nova entidade se especializa
na tarefa de transmitir uma cultura católica superior abolindo o cunho de difusidade
e amadorismo das palestras e cursos até então vigentes.
O instituto estabelece, no seu primeiro ano de funcionamento, três disciplinas
obrigatórias - a sociologia, a filosofia e a teologia - oferecendo ainda três
facultativas: a introdução ao direito, à matemática e à biologia. Com o correr
do tempo, o curriculum se expande significativamente e a assistência se eleva,
em 40 meados de 30, para uma média de 200 pessoas por ano.[40] Em contraste
com a orientação mais cultural imprimida aos cursos e palestras que tinham lugar
no Centro D. Vital, o programa oferecido pelo instituto não escondia suas pretensões
"científicas". As cadeiras ministradas e as próprias pesquisas sociológicas
desenvolvidas pelos alunos procuravam seguir os cânones metodológicos universalmente
aceitos mas, paralelamente, procurava-se fundamentar os conhecimentos no paradigma
cristão de ciência.[41]
Enfatizava-se a perfeita compatibilidade entre ciência e fé como dois aspectos
de uma única verdade, e também entre a ação social católica e as ciências sociais,
sugerindo-se a sociologia como o meio para concretizar tal cooperação, Em suma,
a ciência passa a ser visualizada como o esteio intelectual para a ação católica
e, por conseguinte, instruir os alunos era, paralelamente, prepará-los para
a atividade militante.
Do ponto de vista de seus idealizadores, o Instituto Católico teria um papel
fundamental a desempenhar no quadro de ensino superior carioca. Na cerimônia
de abertura do novo centro de estudos, Alceu e Franca, em seus discursos, acusam
a orientação excessivamente profissionalizante e pragmática dos únicos cursos,
em nível superior, oferecidos ao público carioca - a saber, Engenharia, Direito
e Medicina. Em contraste, a originalidade e importância do núcleo católico estaria
no fato de ser ele pensado como "um instituto de estudos superiores, nobres
e desinteressados" (Franca, 1954, p. 126). Não houve, por parte dos católicos,
naquele momento, a intenção de requerer a oficialização da entidade e, por conseguinte,
os alunos daí egressos recebiam apenas um certificado de conclusão do curso
sem nenhum valor oficial.[42] Apesar disso,
a intelectualidade católica insistia no caráter pioneiro de seu empreendimento,
sustentando que ele vinha suprir o vácuo existente na área de humanidade no
Rio de Janeiro. De fato, por meio desse instituto, a Igreja impõe sua presença
numa esfera de saber até então desativada no Distrito Federal.
A urgência na implementação de um estabelecimento católico
de ensino superior parece ter se aguçado como uma resposta alternativa não apenas
ao tipo de ensino já vigente como também às propostas da reformulação dos cursos
nesse nível, que se consubstanciam no Decreto no. 19.851 de 11 de abril de 1931,
referente à reforma universitária apresentada por Francisco Campos. A insatisfação
e as criticas desferidas pelo grupo à legislação oficial estão condensadas na
polêmica travada por Alceu com o ministro da Educação e Cultura e também com
um de seus mais ardentes defensores, Azevedo Amaral (ver Lima, 1931, p. 7 a
66).
O decreto foi precedido por uma conferência pronunciada por Campos em março daquele
ano, na qual o ministro destacava o caráter católico inerente ao conceito da universidade[43]
O líder do laicato aplaude essas declarações mas, já num clima de desconfiança,
acusa a conceituação ambígua contida no discurso, advertindo que o "caráter
de catolicidade que a universidade recebeu da Igreja (...) não lhe concede nenhum
título de substituição, nem mesmo da autonomia em face aos dogmas da Igreja"
(1931, p. 9).
A exposição de motivos que acompanhava a reforma confirmava,
para os católicos, a suspeita do hiato que separava a concepção oficial de universidade
daquele por eles defendida. Em primeiro lugar, acusa-se o decreto de identificar
a pretensa base espiritual da universidade com um conceito mais amplo de "cultura
literária e artística", Portanto, ainda que a nível de intenção a reforma
tenha sido gerada para transcender o cunho profissionalizante do sistema vigente,
a intelectualidade católica sustenta que, ao desprezar as ciências filosóficas,
ela teria apenas confirmado a feição pragmática desses estabelecimentos, prolongando
o desastre do "laicismo pedagógico republicano". A própria criação
da Faculdade de Educação, Ciências e Letras que, seguindo a ótica católica,
seria o ponto de decreto que mais se aproximaria da ansiada Faculdade de Filosofia
e Teologia, teria sido reduzida a uma "Escola Normal Superior para a preparação
de professores pelo Estado à feição de seu laicismo burguês anticristão ou,
pelo menos, não cristão" (Lima, 1931, p. 24/25).
Os educadores católicos antevêem, na reforma propugnada, sinais
nítidos de "contaminação marxista". Essa infiltração se evidenciaria
nas duas propostas de reorganização dos cursos jurídicos existentes e, mais
ainda, na justificativa do ministro para tal procedimento. A primeira medida
suprimia a cadeira de filosofia do direito substituindo-a pela de introdução
à ciência do direito, e a segunda introduzia a cadeira de economia política
no primeiro ano do curso. Francisco Campos justifica a precedência do estudo
da ordem econômica sobre o da ordem jurídica alegando que "as relações
econômicas constituem quase todo o conteúdo ou matéria do direito (e portanto)
o fato econômico passa a ser um pressuposto de fato jurídico" (apud Lima,
1931, p. 26). Em resposta, o líder do laicato concluía:
“É o triunfo de Karl Marx! A crítica aos fundamentos da filosofia do direito foi
uma de suas obras iniciais, que ele sempre considerou como fundamental para a
sua ação revolucionária materialista. As expressões do senhor ministro da Educação
poderiam ser subscritas por qualquer marxista. E ainda se diz que é preciso combater
o comunismo! Mas o verdadeiro comunismo é esse comunismo dos espíritos, é essa
lenta penetração da filosofia materialista em todos os campos da atividade social,
(...) Conquistando a Faculdade de Direito como a está conquistando, obtêm o marxismo
o ponto estratégico fundamental para contaminar toda mocidade dos cursos jurídicos
e preparar assim o seu estado maior para os golpes que premedita" (1931,
p. 26/27).
O ministro parece não ter desprezado as críticas que lhe foram
desferidas, Tanto assim que em um outro artigo (1931, p. 55/66), Alceu alude
a uma entrevista de Campos na qual afirmava que na Faculdade de Educação, Ciências
e Letras figurava uma seção de filosofia, onde a Igreja poderia promover cadeiras
de filosofia tomista, mas advertia também que nunca tivera a intenção de criar
uma universidade católica. O articulista elogia a fala do ministro insistindo,
entretanto, no caráter eclético e materialista da nova legislação universitária.
Ainda que as relações entre o Governo Provisório e os educadores católicos
possam ter sido abrandadas, dezenove dias depois, com a promulgação do decreto
que facultava o ensino religioso nas escolas públicas, é inegável que a Igreja
se percebe como sofrendo uma derrota com a reorganização universitária proposta.
De fato, embora a legislação de 11/4/1931 tenha vindo a público como um esforço
de contemporização entre as diversas correntes de pensamento, ela estava, pelo
menos a nível de intenções, mais próxima do ideário escolanovista que do católico[44]. Por meio dela o sistema de ensino superior era
colocado sob forte tutela do Estado, e a Igreja alijada do papel que, segundo
sua perspectiva, lhe cabia por direito natural nessa esfera.
Em suma, essas circunstâncias reiteram para os católicos a convicção de que não
poderiam contar com o Estado para implementar o modelo de organização universitária
por eles propugnado[45]. E, dado a feição
anticristã - ou, pelo menos não cristã - dos estabelecimentos oficiais de ensino
superior, reforça-se também a urgência em preparar elites para disseminar os princípios
cristãos na sociedade e no próprio Estado.[46]
A conquista, em caráter privado, de um espaço próprio no âmbito da educação superior
se apresentava como a solução para concretizar, a um só tempo, ambos os objetivos.
O Instituto Católico nasce, assim, como o locus no
qual os católicos ensaiam e atualizam seu modelo alternativo de organização
universitária e como um centro de irradiação doutrinária preparando, em ambos
os sentidos, o terreno para a futura Universidade Católica.
A discussão sobre o modelo de universidade proposto pelos
católicos - mais especificamente. sua filosofia pedagógica e organizacional
- remete para o diagnóstico por eles elaborado acerca do "estado das ciências"
e da própria universidade no mundo e no Brasil. O universo científico é visto
como atravessando um momento de desordem e anarquia geral. Essa situação se
expressaria tanto em uma crise de finalidade de cada disciplina (desenvolvimento
científico para quê, com que fim) bem como no estado de anomia que caracterizava
o modo específico de relacionamento entre os domínios científicos no mundo moderno
(Cf. Lima, 1932 e Franca, 1954, p. 138 e ss).
As causas geradoras dessa situação remontavam à reforma luterana ao cartesianismo,
ao enciclopedismo e à supremacia, a partir do Século XIX, das ciências naturais
e matemáticas sobre as filosóficas e a metafísica. Esses diferentes movimentos
teriam rompido com a organização do pensamento escolástico e, promovendo um
crescente divórcio entre o pensamento religioso, o metafísico e o científico,
teriam contribuído para produzir o mito corrosivo do "cientismo" -
isto é, a crença de que a técnica e o progresso, por si só, solucionariam todos
os males que afligiam a humanidade[47].
Por outro lado, havia que se considerar o fenômeno moderno do avanço da divisão
do trabalho intelectual com a conseqüente pulverização e especialização do conhecimento
em diferentes esferas do saber. Esse processo não é apontado, em si mesmo, como
algo pernicioso; antes, o que lhe conferia um caráter anômalo e anômico no mundo
contemporâneo era sua subordinação à "tirania monista e positivista".
A violação da hierarquia natural entre as ciências teria acarretado a perda da
integralidade científica e a quebra de unidade no pensamento ocidental, atestadas
na situação de desordem e competitividade reinante entre os diferentes domínios
científicos. A propósito, sintetiza Franca: "cada disciplina encerrou-se
no isolamento do seu objeto limitado por uma abstração, desenvolveu-se no seu
domínio com omnímoda independência e esqueceu-se as coordenadas e subordinações
reais e hierárquicas que a prendiam ao conjunto das outras disciplinas, e não
raro, numa tentada usurpação de hegemonia pretendeu, com os elementos exclusivos
de sua competência, dar uma interpretação total da realidade (...) Rompeu-se a
harmonia e com ela a subordinação essencial do conhecimento à totalidade do seu
objeto. Em vez de um império legitimo das ciências mais elevadas, um imperialismo
invasor de cada disciplina fora de seus domínios" (Franca, 1954, p. 130/131).[48]
A organização dos centros superiores do saber refletia os
efeitos decorrentes dessa febre laicizante e, ao mesmo tempo, reforçava a dissolução
do pensamento e dos conhecimentos científicos contemporâneos, O regime universitário
medieval, caracterizado como uma "estrutura de solidariedade pedagógica,
de ordem, de disciplina e sobretudo de hierarquia entre as ciências" (Lima
1931, p. 10) fora substituído pela concepção "moderna" de universidade,
que vinga na França após a Revolução de 1789. Ao tomar por substrato as ciências
experimentais ou sociais, o modelo francês teria decretado a morte do espírito
universitário e da própria universidade, reduzindo-a a uma reunião inorgânica
de escolas sem nenhum elo entre si e atuando sem nenhuma finalidade coletiva.
Essa concepção racionalista, pragmática e profissionalizante de universidade
teria invadido o Brasil que iniciava, com a criação da Universidade do Rio de
Janeiro, em 1920, o seu movimento de secularização universitária.
No entanto, a partir do final do Século XIX, estar-se-ia presenciando o movimento
de formação livre das universidades católicas que tinham por modelo a Universidade
de Louvain (1834). Graças à restauração do primado do pensamento filosófico no
corpo de conhecimentos e à recuperação do papel da teologia enquanto orientadora
geral de todas as ciências, os produtos das ciências naturais e sociais estariam
readquirindo sentido, unidade e integridade plenos. Em outras palavras. o respeito
pela ordem natural hierárquica entre as disciplinas estaria devolvendo ao universo
científico sua capacidade de se expandir harmonicamente (Cf. Lima, 1932).
Enquanto embrião da futura Universidade Católica, o Instituto
Católico de Estudos Superiores pretendia se integrar no movimento internacional
do renascimento filosófico católico e, concomitantemente, servir como um modelo
alternativo de organização universitária no Brasil. Em verdade, a demanda última
era a de que o ensino superior se libertasse da tutela estatal para voltar a
pertencer â Igreja. Alegando que somente a universidade católica era capaz de
realizar a síntese orgânica do saber, Franca, no seu discurso de abertura do
novo instituto, advertia: "a universidade, por sua natureza, para não mentir
às promessas de seu nome e às exigências de sua função, deve ser católica; e
as universidades que deixaram de ser católicas viram-se, na mesma proporção,
diminuídas como universidade" (1954, p. 128).
Vinculado às justificativas de cunho mais acadêmico vislumbra-se também, no
discurso dos educadores católicos, o pape) político que um centro de excelência
católica teria a desempenhar na vida nacional. Tal questão remete ao diagnóstico
particular elaborado por essa intelectualidade acerca da situação brasileira
dos anos 30, bem como às soluções por ela sugeridas. Como ficará patente, a
análise desta realidade resulta de uma transposição mecânica dos fundamentos
filosóficos elaborados pelo pensamento tradicionalista e reacionário francês
e pelos doutrinadores da contra-revolução.
O período é definido como um momento de crise. Isso se evidenciaria nas sucessivas
revoluções civis e militares que eclodiram na década de 20, que culminaram com
a Revolução de 30 e que se perpetuavam mesmo após esta. Esse clima de anarquia
e subversão à ordem atestaria, essencialmente, a incompetência das camadas dirigentes
para conduzir os destinos da Nação. Desvirtuadas e internamente esfaceladas em
facções políticas, as elites se substituíam umas às outras no poder e, incorrendo
nos mesmos erros e padecendo dos mesmos defeitos, elas colocavam em risco a própria
nacionalidade. A explicação última da crise é reduzida à ausência de uma unidade
moral e espiritual entre grupos dirigentes - prelúdio de sua dissociação política
- e sua origem remonta à implantação do regime republicano que, violentando a
tradição católica do povo brasileiro, instaura e dissemina a mentalidade laicista
e materialista por todas as instâncias sociais.
O único caminho apontado como capaz de restituir às elites um projeto e um
elo moral comum era o de sua ressocialização segundo os princípios ético-religiosos.
o que implicava em devolver à Igreja o papel que por direito lhe cabia na condução
dos destinos do país. Em outras palavras, só pela subordinação dos poderes temporais
ao poder espiritual é que as camadas dirigentes poderiam superar o pluralismo
leigo corrosivo e corruptor, garantindo, assim, a unidade entre todos, a moralização
da vida pública e a preservação da nacionalidade. Segundo o ideário católico.
a reforma na consciência das elites só se operacionalizaria, basicamente, através
do sistema de ensino superior. Ou seja, a cosmovisão católica percebe a universidade
como o centro nevrálgico de toda a estrutura social, O diagnóstico de que "a
crise da civilização foi a crise da universidade" (Franca, 1954. p. 195)
sugere, do modo inverso, que sua reestruturação seria a pedra de toque para
instaurar um modelo alternativo de sociedade[49].
A atribuição à universidade do papel de peça chave para a reconstrução nacional
permite deduzir que o agente que efetivasse seu controle sobre esse sistema
estaria garantindo, paralelamente, a base para irradiar seu poder de influência
por todas as outras esferas sociais.[50] Nesse sentido, a Universidade Católica é pensada
pelas lideranças laicas e eclesiásticas do período como tendo duplo sentido
político, fortemente relacionados entre si: de um lado, ela se constituiria
em uma instituição de combate ao ensino e à mentalidade laicistas, garantindo
a resolução das crises nacionais e barrando a penetração da ideologia comunista
no pais; de outro, na medida em que se responsabilizasse pelo adestramento das
futuras elites dirigentes, a Igreja, por suposto, concretizaria sua meta de
recristianizar a sociedade e a própria instituição do Estado. Por conseguinte,
é plausível afirmar que o investimento da Igreja na esfera do ensino superior
extrapolava as fronteiras do "acadêmico" constituindo-se de fato,
também, em uma estratégia política para recuperar seu papel na condução dos
destinos da Nação.
A perspectiva acima delineada acerca das funções explícitas e implícitas de uma
universidade permanece inalterada no discurso católico nos nove anos que separam
o nascimento do Instituto Católico e a efetiva fundação das Faculdades Católicas,
em 1941, Entretanto, nesse intervalo, presencia-se a ocorrência de alguns eventos
que, embora não interferindo diretamente na criação da universidade no sentido
de apressá-la, se constituíram em fatores que se acrescentam ao ideário do grupo,
reafirmando-lhes a necessidade de continuar persistindo para alcançar esse fim
último (Cf. Lima, 1979 e padre Velloso, 1979).
A radicalização das clivagens ideológicas na primeira metade dos anos 30 se
reflete não só nos meios universitários como também se retraduz nas diferentes
correntes de pensamento pedagógicas, exacerbando os debates e as acusações mútuas
entre os grupos, pelo menos até 1937.[51] Assim, por exemplo, num contexto de forte exaltação
política no ambiente universitário carioca, Alceu disputa, nos anos de 1931
e 1933, as cátedras de economia política e introdução ao direito, respectivamente,
ambas na Faculdade Nacional de Direito, Nas duas tentativas saem vitoriosos
seus concorrentes - Leônidas de Rezende e Hermes Lima. Segundo o depoimento
de Alceu (1979) esse episódio foi interpretado, na época, como mais um
indício de que a universidade estava sendo tomada pelos comunistas e que os
professores católicos (identificados, pelo grupo opositor, como fascistas) tinham
sua entrada barrada nas universidades oficiais.
A criação da Universidade do Distrito Federal, em 1934, promovida por Anísio
Teixeira, foi muito mal recebida pela intelectualidade católica. Acusando seu
idealizador ora de americanizar a educação brasileira, ora de comunizá-la, os
católicos apontam a nova instituição como sendo não só puramente laica mas,
de fato, anticatólica.[52] Para conter o avanço da secularização da cultura superior brasileira
e a infiltração da pedagogia comunista nas políticas educacionais oficiais,
o grupo volta a insistir na importância da criação de um centro livre de estudos
superiores católicos.
A formalização desse desígnio ocorre no 1o Congresso Católico de
Educação promovido pela Coligação Católica Brasileira de Educação, realizada
no Rio, em 1934. A comissão especial destacada para estudar esse problema conclama
todas as forças educacionais católicas a reunirem esforços para fundar, o mais
rápido possível, uma universidade subordinada à Santa Sé e ao episcopado brasileiro
e, portanto, independente do Estado - ainda que conservando o direito à ajuda
monetária federal. Acentuava-se também que as faculdades de Direito, Educação,
Letras e Jornalismo deveriam receber prioridade enquanto centros de fundamental
importância para a irradiação da doutrina cristã.
O projeto foi comunicado a Roma e a Santa Sé - através da "Congregação dos
Seminários e Universidades" - não só aprova como estimula a intenção. Assim,
por volta de 1938, D. Leme se achava investido por Pio XI de um mandato especial
para resolver as questões relativas à futura universidade.
A última das grandes manifestações em favor da criação imediata de uma Universidade
Católica veio do 1o Concílio Plenário Brasileiro reunido na Bahia,
em setembro de 1939. Na pastoral coletiva de todos os bispos dirigida ao clero
e fieis, consagrava-se a importância e urgência do empreendimento, justificando-o
como "um instrumento imprescindível de sua irradiação ampla e benfazeja
em todas as esferas sociais" (apud Anuário das Faculdades Católicas
1(1941), p. 8).
Em 1940, D. Leme confia à Companhia de Jesus a direção pedagógica e administrativa
da futura universidade. Nesse mesmo ano, a comissão organizadora das Faculdades
Católicas. encabeçada por Alceu e Franca, inicia seus trabalhos fundando a Sociedade
Civil mantenedora da universidade, desenvolvendo uma ampla campanha financeira
para angariar fundos para a instalação dos cursos. Em outubro de 1940, o Conselho
Nacional de Educação vota, por unanimidade, a autorização prévia de funcionamento
às Faculdades Católicas e, nesse mesmo mês, Vargas assinava o Decreto no. 6.409,
que autorizava a instalação do curso de bacharelado da Faculdade de Direito e
dos sete cursos da Faculdade de Filosofia - a saber, Filosofia, Letras Clássicas,
Letras Neolatinas, Letras Neogermânicas. Geografia e História, Ciências Sociais
e Pedagogia.
Em 15 de março de 1941 ocorre a solenidade de abertura dos cursos. Nessa cerimônia
discursam o padre Franca - enquanto reitor das Faculdades Católicas - o ministro
da Educação, Gustavo Capanema, e ainda Alceu e Afonso Pena que falam, respectivamente,
em nome da Faculdade de Filosofia e da de Direito.
O motivo da escolha do curso de Filosofia como um dos núcleos iniciais da futura
universidade encontra perfeita consonância com o ideário pedagógico católico.
Em seu pronunciamento. Alceu (1941) sublinha a importância da orientação espiritualista
na formação do professorado secundário que, com uma educação impregnada de sobrenaturalismo,
se responsabilizaria por disseminar os dogmas cristãos pelos outros níveis do
ensino, Ademais, a presença de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
em conjunto com mais duas unidades, se constituía em uma das exigências oficiais
para que um estabelecimento de ensino superior recebesse a denominação de universidade.
De outro lado, considerando-se que as elites políticas e administrativas do
país eram compostas, basicamente, de juristas e advogados, a eleição da Faculdade
de Direito como a outra dessas células iniciais adquire bastante sentido. Por
meio dela, a Igreja pensava preparar uma escola de juristas para garantir que
as leis brasileiras estivessem pautadas segundo a doutrina cristã. E, adestrando
as novas camadas dirigentes. a Igreja penetraria na teia da administração pública,
logrando por suposto, ressacralizar a instituição do Estado.[53]
O corpo docente das duas faculdades era composto, em sua maioria, por professores
que lecionavam na Universidade do Distrito Federal e/ou na Universidade do Brasil
(antiga Universidade do Rio de Janeiro). Esse processo de escolha teria se pautado,
segundo Alceu, antes na qualidade intelectual dos membros do que em sua religiosidade,
ainda que tivesse sido evitada a contratação de professores declaradamente anticatólicos.
Essa determinação de D. Leme, Alceu e Franca provocou uma certa celeuma dentro
dos próprios círculos católicos, já que uma das posições prevalecentes sustentava
que uma universidade católica só poderia absorver professores católicos (Cf. Lima,
1979). Por sua vez, conforme informações do Anuário das Faculdades Católicas,
de 1941, a grande maioria dos primeiros alunos inscritos - 14 para a Faculdade
de Direito e 70 para a de Filosofia - provinha de renomados colégios confessionais
como Notre Dame de Sion, Colégio Jacobina e outros. Além das disciplinas incluídas
no curriculum oficial, as faculdades católicas, em virtude dos dispositivos de
seu regimento interno, ministravam a todos os alunos um curso superior de cultura
religiosa.
Instalados os dois cursos e entrando em funcionamento em 1941, o passo seguinte
a ser dado dizia respeito ao reconhecimento oficial da nova instituição, O Estatuto
das Universidades Brasileiras de 1931 facultava a criação de faculdades particulares,
o que talvez explique a votação unânime do Conselho Nacional de Educação autorizando
o funcionando prévio das faculdades católicas, em 1940. Entretanto, essa medida,
aparentemente descentralizadora, era compensada pelo fato de a legislação deslocar
o cerne do problema para a questão da equiparação dos diplomas expedidos pelas
faculdades privadas aos das oficiais. Ou seja, por meio do instituto da equiparação,
o governo federal conservava sua função normativa e fiscalizadora sobre tais escolas
visto que a contrapartida de tal regalia se encontrava na obrigação do atendimento
total às normas e padrões ditados pela União, E, mesmo assim, o cumprimento de
tais exigências era um requisito necessário mas não suficiente para que os estabelecimentos
particulares tivessem garantido seu reconhecimento oficial, De fato, as leis brasileiras
delegavam a palavra final ao Conselho Nacional de Educação que deveria examinar
e decidir, caso a caso, os pedidos para tal reconhecimento.
A intelectualidade católica enfrentou algumas resistências ao tentar a oficialização
das faculdades católicas. Segundo o depoimento de Alceu (1979) - que era, desde
1931, o representante católico no conselho, juntamente com Franca - as dificuldades
provinham não tanto por nenhum pedido referente a um estabelecimento confessional
mas antes, do fato de haver, dentro do conselho, uma corrente francamente favorável
ao monopólio estatal do ensino superior. Essa posição era encabeçada por Reinaldo
Porchat que ocupava, naquele momento, o cargo de presidente do Conselho Nacional
de Educação. Frente a essa ambiência desfavorável, Franca e Alceu se lançaram,
dentro do próprio conselho, à tarefa de conquistar os votos dos membros ainda
indecisos ou mais receptivos à demanda dos católicos. Ao final, foi aprovado o
pedido de oficialização e, pelo Decreto Governamental n9 10.895, de 01/12/1942,
as faculdades católicas eram equiparadas às oficiais com o poder de expedir diplomas
de igual valor legal.
Em 1946 a Escola de Serviço Social do Instituto Social do Rio de Janeiro, fundado
em 1937, se agregava às faculdades católicas, completando assim o número de unidades
requeridas pela legislação oficial para a formação de uma universidade. Pelo Decreto
no. 8.681, de 15/03/1946, as Faculdades Católicas foram elevadas à categoria de
universidade, dando nascimento à primeira universidade particular do Brasil. No
ano seguinte, a Santa Sé agraciava a instituição com o titulo e prerrogativas
de Pontifícia, equiparando-a às suas congêneres que se espalhavam pelo mundo.
Conclusão
Sumariando, não parece despropositado afirmar que o ideário católico que
impulsiona a criação de um estabelecimento próprio de ensino superior estava inextricavelmente
relacionado a uma proposta mais ampla, elaborada pela Igreja no período, para
a (re)construção do Estado Nacional e da nacionalidade. Os princípios que embasam
esse projeto podem ser sintetizados nos seguintes pontos:
a) as origens mais profundas da crise brasileira seriam de ordem moral;
b) a tarefa de reconstrução nacional se operacionalizaria, basicamente, através
de uma reestruturação do sistema educacional;
c) a sedimentação da nacionalidade pressupunha, como medida mais importante, a
montagem de um programa deliberado de formação e treinamento de elites, enquanto
grupo responsável para concretizar tal objetivo. A natureza dessa elite, o tipo
de socialização a que fosse submetida, os valores que adotasse seriam, portanto,
os elementos-chaves na determinação dos resultados que se desejava atingir;
d) só uma elite homogênea. articulada e unificada em torno de princípios essenciais
seria capaz de se desincumbir da tarefa de construção do Estado Nacional;
e) os valores mundanos e materiais dividiam os homens enquanto que os espirituais
os agregavam. A filosofia pedagógica laicista comprometia não só a unidade do
pensamento científico mas também a unidade espiritual das elites e, por conseguinte,
a unidade política da nação. De modo inverso, os princípios sobrenaturais católicos
- que encontravam respaldo na maioria do nosso povo - formavam o substrato comum
da nacionalidade. Socializar as elites segundo tais princípios significaria recuperar
a hierarquia organizadora no domínio do conhecimento que correria paralelo à revitalização
moral dessas lideranças. Essa mudança na mentalidade dominante se projetaria,
por suposto, na esfera das realidades concretas, garantindo a restauração da ordem
na vida política nacional;
f) deriva daí que a universidade - enquanto locus especializado de geração
e socialização das camadas dirigentes - tinha de ser católica. Alertando para
que a missão de uma universidade não era a de preparar técnicos, mas sim "ensinar
os mais aptos para dirigir os outros" (Franca, 1954. p. 194). tais centros
de excelência teriam, por função primordial, gerar um esprit de corps de
forma a garantir que as elites daí egressas viabilizassem o projeto nacional;
g) a "recatolicização" das camadas dirigentes significaria, a um só
tempo, a ressacralização da sociedade e do Estado e, paralelamente, devolvem à
Igreja o papel que lhe cabia, por direito sobrenatural, na condução dos destinos
nacionais. O projeto da Igreja de se fazer representar no espaço do ensino superior
se consubstancia com a criação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
e com a disseminação, a partir daí, de estabelecimentos similares em outros estados
brasileiros, Nos dias de hoje, uma percentagem substancial de universitários tem
sido formada em centros católicos de ensino, denotando um rápido avanço da educação
católica superior nas últimas décadas.[54]
Entretanto, ainda que esses centros de excelência tenham alcançado inegável renome
nos meios acadêmicos, as aspirações últimas que a intelectualidade católica pretendia
ver realizadas por meio da implantação de uma universidade católica, certamente
não se concretizaram. Não cabe aqui discutir se houve, nos anos que passaram,
um amadurecimento ao nível de responsabilidade pública dos dirigentes nacionais,
nem se houve um avanço efetivo na construção da nacionalidade e nem mesmo em que
medida a Igreja recuperou seu papel de agente de peso no espaço político nacional.
Importa sim afirmar que, se algum desses avanços ocorreu, dificilmente eles podem
ser atribuídos à penetração da Igreja na esfera do ensino superior.
Mesmo abstraindo o que há de específico na ótica católica acerca das funções de
uma universidade, um erro de perspectiva permeia, de modo subjacente, seu ideário
educacional. Embora seja inegável que a universidade tenha por tarefa repensar
a realidade nacional e, portanto, gerar alternativas para a transformação da mesma,
por outro lado, supor que sua reorganização conduziria, de forma quase que automática,
a modificações estruturais mais profundas é, sem dúvida uma visão equivocada.
Essa perspectiva peca exatamente por pensar a universidade de modo descontextualizado
- ou seja, como uma instância imaculada, isolada e impermeável às pressões institucionais,
às leis de poder - internas e externas a ela, às injunções do mercado etc., que
desfiguram os rumos idílicos proclamados quando da sua criação.
No caso específico brasileiro pode-se sugerir que, entre outros fatores, um
dos elementos que contribuiu para a defasagem entre o trajeto idealizado para
a Universidade Católica e o trajeto possível e efetivado foi o estreito leque
de alternativas de cursos superiores e/ou vagas ofertadas ao público carioca
quando da criação desse estabelecimento[55]. Ademais, munindo-se de um corpo docente altamente respeitável,
a Pontifícia Universidade Católica garantia seu sucesso como centro de excelência
acadêmico mas, por outro lado, e de modo paradoxal, acabava por trair seu projeto
de universidade como veículo de evangelização. Em outros termos, a Universidade
Católica se institucionalizou antes como um estabelecimento destinado a atender
à elite em geral do que à elite católica e, nessa medida, seu perfil confessional
e seu caráter de obra militante se desvaneceram. Por conseguinte, o projeto
inicial pensado para a universidade - que podia, em si mesmo, ser equivocado
- não pôde nem mesmo ser testado. Morreu no nascedouro.
Caberia investigar, em profundidade, os rumos seguidos pela Pontifícia Universidade
Católica, seus sucessos e fracassos e, mais ainda, suas causas explicativas. Mas
esta é uma outra história que, certamente, merece ser contada.
Notas *
Trabalho realizado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ). Agradecemos ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil (CPDOC) na pessoa de Lúcia Lippi de Oliveira - coordenadora do Projeto
Brasiliana - por ter colocado à nossa disposição o material e as pesquisas realizadas
pela equipe sobre o movimento católico dos anos 20. Somos também gratos a Simon
Schwartzman, Regina Lúcia Morel e Renato Boschi pelos comentários e sugestões
feitos ao trabalho. E ainda, ao professor Alceu Amoroso Lima e ao padre Pedro
Belisário Velloso que nos concederam entrevistas, permitindo clarificar alguns
pontos obscuros da trajetória educacional católica.
[1] Em trabalho recentemente publicado, Cury (1978) analisa o
debate entre a visão pedagógica liberal - expressa no movimento da Escola Nova
- e a católica, para o período de 1930 a 1934. Sustenta o autor que o horizonte
intelectual dos dois grupos era comum no sentido de que as reformas por eles
propugnadas visavam, em última medida, à manutenção da ordem capitalista. Entretanto,
embora sendo representantes da classe dominante, católicos e liberais se constituíam
em dois segmentos da mesma. A própria pedagogia desenvolvida por cada um deles
apontaria para as frações de classe a cujos interesses serviam: a proposta católica
expressaria a "continuidade de uma política educacional mais adequada ao
modelo oligárquico" (p. 251), enquanto que a dos pioneiros buscaria "uma
adaptação da política educacional ao processo econômico gerado pelas novas forças
produtivas, bem como a adaptação do capitalismo dependente periférico pela reforma
educacional dentro do processo de urbanização" (p. 251). Num certo sentido,
essa perspectiva encontra suporte no trabalho de Velloso (1978) sobre a análise
temática da revista católica A Ordem para o período compreendido entre
1921 a 1937. A autora destaca a presença de artigos aí publicados que, com um
caráter nitidamente antiurbanista e antiindustrialista, apologizam a "vocação
ruralista natural" do brasileiro (p. 127 e 141). Embora não descartando
a importância desse tipo de discussão não há, por parte desse trabalho, o propósito
de aprofundar essa vertente explicativa. Tal tarefa exigiria uma investigação
mais cuidadosa em uma área que transcende os limites deste texto.
[2] 2 Sadek considera esse episódio como o primeiro ensaio da
"reação católica" que se consolida nos anos 20 (1978, p. 100).
[3] 3 Antes da virada do século, surgem algumas figuras de intelectuais
católicos - como Felício dos Santos, Afonso Celso, Eduardo Prado, Carlos de
Laet e outros - que tentam se organizar para fazer frente à ameaça da secularização
republicana. Sua investida, no entanto, não foi exitosa, ainda que possam ser
considerados como os precursores da futura militância católica. (cf. Todaro,
1971, p. 34 a 36).
[4] A transcrição de extensos trechos da pastoral podem ser encontrados
na obra de Raja Gabaglia (1962, cap. VI), biógrafa oficial de D. Sebastião Leme.
[5] O seguinte texto do documento é bastante expressivo: "
que maioria católica é essa, tão: insensível, quando leis, governo, literatura,
escolas, imprensa, indústria, comércio a to das as demais funções da vida nacional
se revelam contrárias ou alheias aos princípios práticos do catolicismo? (.
- ) Chegamos ao absurdo máximo de formarmos uma força nacional, mas uma força
que não atua, que não influi, uma força inerte" (apud Raja Gabaglia, 1962,
p. 68).
[6] 6 Nas palavras de D. Leme: "Para o espírito pensador,
a crise no Brasil não é uma crise política, cuja solução depende de formas de
Governo. É uma crise moral, resultante da profunda decadência religiosa. desde
o antigo regime, das classes dirigentes da Nação e que só pode ser resolvida
por uma reação católica" (apud Villaça, 1975, p. 81).
[7] Na perspectiva de Alceu Amoroso Lima: "D. Leme participou
da convicção possivelmente até exagerada de que o conhecimento e, portanto a
educação, era a base humana da fé" (Lima e Lima, 1973, p. 232).
[8] A Action Française se constituiu num movimento reacionário
que pretendia a restauração da Monarquia na França e teve como principais expoentes
Henri Messis, Auguste Viatte e Charles Maurras. O movimento acabou sendo condenado
pelo Vaticano em 1926
[9] Velloso (1978, p. 123 e ss.) assinala, entre 1921/28, a
presença de artigos em A Ordem que transcrevem e/ou analisam as idéias
centrais de seus principais defensores como De Maistre, De Bonald e Veuilliot.
10
[10] Nas palavras de Jackson de Figueiredo: "não creio
em soluções sociais. Só creio em finalidade moral. Aceito pois, as maiores
diferenças de fortuna como parte necessária do drama da vida" (apud Lima
e Lima, 1973, p. 26).
[11] Segundo célebre frase de Jackson de Figueiredo: "a
pior legalidade é melhor que a melhor das revoluções".
[12] "Notas para o centro D. Vital (III)" em A
Ordem. Vol. 58. no. 6, dez, 1957. Alceu escreve para a revista uma série
de doze artigos sob esse titulo, publicados entre outubro de 1957 e outubro
de 1958.
[13] "Notas para o centro D. Vital (V)" em A Ordem,
v5 59, no. 2, fev. 1958.
[14] Nesse período a revista se posiciona abertamente frente
às campanhas presidenciais defendendo três candidatos sucessivos: Epitácio Pessoa,
Artur Bernardes e Washington Luis. Jackson de Figueiredo trabalha na administração
de Bernardes como chefe de censura e depois no Ministério da Agricultura. Para
outras informações acerca da postura política assumida pela revista frente á
conjuntura nacional e internacional, ver Velloso. 1978, p. 123/130.
[15] Informações minuciosas sobre a formação intelectual de
Alceu podem ser encontradas em Lima e Lima (1973). Para um resumo de
sua biografia ideológica, bem como de seus principais livros, ver Jarbas Medeiros,
1976. p. 219/378. Os dados acima fornecidos foram retirados dessas duas obras.
[16] Ver "Notas para o centro D. Vital (I)" em A
Ordem, v. 58, no. 4, out. 1957 e "Notas para o centro D. Vital (II)"
em A Ordem, v. 58, no. 5, nov. 1957.
[17] "Notas para o centro D. Vital (III)" em A
Ordem, v. 58, no. 6, dez. 1957.
[18] Essa reorientação atinge também a revista. Alegando que
os novos rumos não representavam uma infidelidade ao seu fundador mas, ao contrário,
correspondiam às suas mais profundas intenções, Alceu, em editorial, propõe:
A Ordem perderá naturalmente o caráter político que em tempo possuiu
(...) e passa agora a ser uma revista católica de cultura geral, visando mais
à inteligência do que aos acontecimentos" Alceu Amoroso Lima, "Obedecendo"
em A Ordem v. 8. no. 1, dez. 1928).
[19] Segundo suas próprias palavras: "a mim me parece que
meu campo de apostolado natural seria entre os homens e os acadêmicos"
(apud D'Elboux, 1953, p. 243).
[20] Entrevista concedida ao CPDOC em setembro de 1976.
[21] Essa discussão está apoiada em dois trabalhos de Jorge
Nagle (1974 e 1977) sobre o tema.
[22] Sobre os quarenta anos de laicismo republicano, Alceu conclui:
"a unidade espiritual da Nação deixou de ser para o liberalismo corrente
uma preocupação de ordem pública. Cogita-se de todas as formas de unidade: a
unidade política, a unidade jurídica. a unidade processual e a unidade fiscal.
A única de que o liberalismo político dominante se desinteressa é a unidade
espiritual que é, entretanto. a base de todas as demais" (1931. p. V-VI).
[23] "O homem não vale pelo que sabe mas pelo que é (...)
É sobretudo a consciência que faz o bom chefe de família, o bom cidadão, o bom
operário. o bom profissional, E a consciência não se forma com lições de gramática
ou de geografia (...) É a educação que plasma o homem; a instrução, quando muito,
prepara técnicos. A instrução dirige-se exclusivamente para a inteligência;
a educação abraça o homem na totalidade de sua natureza desenvolvendo-lhe harmoniosamente
todas as faculdades. A instrução é apenas um meio; a educação. o fim, a razão
de ser da atividade pedagógica" (Franca. 1931. p. 7e 8).
[24] "Como não têm um ideal, como não possuem um critério
de distinção entre o bem e o mal, optam pelo útil. E daí o pragmatismo pedagógico"
(Lima, 1931, p. XVIII).
[25] “É pela ciência especulativa que se encontra o ideal pedagógico
e não pelas ciências experimentais. A pedagogia se forma de acordo com nossa
concepção geral de vida (...) O ideal moral, portanto, governa o ideal intelectual
e social. A ética, por sua vez, se subordina à teologia pois não vivemos em
um estado de abstração filosófica ou moral e sim de realidade histórica. E pela
teologia conhecemos os dados revelados da nossa posição real no mundo"
(Lima, 1931, p. XI).
[26] Apoiando-se em informações estatísticas de vários países.
Franca conclui pela relação inversa entre ensino religioso e taxas de suicídio,
delinqüência e criminalidade.
[27] "A educação interior das almas é condição imprescindível
da organização externa da sociedade. Assim, o problema da reforma social se
reduz, em última análise, a um problema de formação de consciência, isto é,
a uma questão ético-religiosa" (Franca, 1931, p. 28/29).
[28] "A criança não pertence ao Estado; aos pais, incumbe
o dever e assiste o direito de lhe ministrar a educação física, intelectual,
moral e religiosa a que tem direito inviolável (...) A escola, continuadora
da primeira formação, é o complemento do lar: deve prolongar-lhe a obra educadora,
não destruí-la ou embaraçá-la. O professor, público ou particular é, por função,
um delegado e um representante da autoridade paterna. (Por tanto. a função educadora
(é) inerente e inseparável da missão natural da família". (Franca, 1931,
p. 60/61).
[29] (A educação) ''caberia simultaneamente à família, à Igreja
e ao Estado, cada qual com sua esfera de ação e sem que este possa negar, de
qualquer modo que seja, o direito de precedência que as duas instituições, natural
e sobrenatural, cabe, na organização social do ensino e da educação nacional''
(Lima, 1931 . p. XIII).
[30] Quase dez anos depois Alceu, em discurso proferido na inauguração
das Faculdades católicas, reiterava essa posição ao afirmar: "a instrução
generalizada mas superficial, quase sempre mais perniciosa que a própria ignorância,
(tornou as massas) mais dóceis do que nunca às seduções dos falsos cultos e
à contaminação dos fanatismos. Se a verdadeira cultura leva à independência,
as tinturas de instrução facilitam o servilismo" (em A Ordem, v. 25, no.
25, abril de 1941).
[31] "A escola leiga é evidentemente contrária á consciência
católica (...) O Estado que vasa pelos moldes do laicismo toda sua instrução
oficial, ultrapassa as raias de sua autoridade, lesando os direitos espirituais
de uma parte da população. Ante a escola leiga e as prescrições de sua moral
os católicos se vêem numa penosa e injusta alternativa: ou se privam dos benefícios
da instrução pública ou transgridem, sob a pressão de uma violência moral, as
leis de sua consciência religiosa. É este porventura um regime de liberdade
espiritual?" (Franca, 1931, p. 69).
[32] Para uma síntese das discussões travadas na Assembléia
Nacional Constituinte sobre as questões educacionais, ver Cury, 1978, p. 112
e ss.
[33] Para uma descrição detalhada desse acontecimento, (ver
Raja Gabaglia, 1962, p. 350 e ss).
[34] Essa conclusão pode ser retirada a partir do trabalho de
Mônica Pimenta Velloso (1977. 1o. vol.), no qual foi realizado um
levantamento bibliográfico exaustivo dos artigos publicados pela revista para
o período de 1921 a 1937. O material, não publicado, e dividido. em três volumes,
encontra-se nos arquivos do CPDOC.
[35] Em verdade, a aspiração por uma universidade católica antecede
em muito a década de 20. Pelo que se tem noticia, foi Cândido Mendes que, pela
primeira vez, em 1866, proclama a necessidade da criação de um centro de irradiação
doutrinária. Em 190, durante o I Congresso Católico Brasileiro, reunido na Bahia,
os congressistas votaram pela introdução, nas academias de estudos superiores
existentes, de duas cadeiras, uma de filosofia e a outra de teologia, o que
não se concretizou. A primeira realização efetiva nesse sentido ocorreu em 1908
quando, por iniciativa de D. Miguel Kruse e contando com o apoio de Alexandre
Corrêa e Leonardo Van Acker - formados em Louvain - funda-se a primeira Faculdade
Católica de Filosofia e Letras em São Paulo, mas sem reconhecimento oficial.
Quando no cargo de arcebispo em Recife, D. Leme tinha por propósito implantar
a universidade nessa cidade, idéia que só veio a se concretizar em 1941 no Rio
de Janeiro. (Cf. Anuário das Faculdades católicas I (1941), Rio de Janeiro,
1942, p. 5 e ss).
[36] "Estatutos da Associação dos Universitários Católicos
do Rio de Janeiro" em A Ordem, v. l0, no. 7, junho de 1930).
[37] Ainda segundo informações de Todaro, o governo apoiava
publicamente a organização sendo que Campos, Capanema e Osvaldo Aranha freqüentaram,
algumas vezes, as reuniões do grupo, encorajando suas ações (1971, p. 240).
[38] Em discurso proferido na sessão de inauguração do instituto,
Alceu concluía: "E que nossa pequenina iniciativa possa vir a ser a semente
de uma grande árvore frondosa para que há muito apelamos: a Universidade Católica
Brasileira" (em A Ordem, v. 12, no. 28, junho de 19321. A mesma
idéia estava expressa no pronunciamento proferido por Franca nessa mesma cerimônia
(1954, p. 133).
[39] A repercussão dessa iniciativa do Centro D. Vital extravasou
os meios católicos e não recebeu, por parte de alguns setores, uma acolhida
favorável. Em nota publicada em A Ordem, (v. 12, no. 28, junho de 1932),
alude-se a um artigo de Carlos Lacerda publica do no Diário de Notícias,
em 25/05/32. no qual o jornalista afirma que o empreendimento colocava em perigo
o Estado leigo. Obviamente a revista critica a posição, argumentando contra
seu sectarismo (Cf. Velloso, 1977, 2o. vol.).
[40] A título de ilustração, do programa para o ano letivo de
1939 constavam as seguintes áreas, cadeiras e professores responsáveis: a) Área
de Estudos Teológicos: estudos teológicos (Martinho Michler O.S.B.) e ação católica
(Alceu; b) Área de Estudos Filosóficos: filosofia geral (frei Sebastião Tauzin
O.P.) e história geral (João Gouveia Vieira); c) Área de Estudos Morais e Políticos:
economia política (Romeu Rodrigues Silva), sociologia (Luiz A, do Rego Monteiro),
pedagogia experimental (D. Helder Câmara), pedagogia geral (Theobaldo Miranda
Santos) e história da civilização (Eremildo Luiz Vianna); d) Área de Estudos
Biológicos: biologia e antropologia (Hamilton Nogueira); e) Área de Estudos
Literários: literatura brasileira (Alceu), Latim (Guilherme Ribeiro) e filosofia
da linguagem (Silvio Edmundo Elia). Folheto sobre o programa letivo do ano
de 1939 do Instituto Católico de Estudos Superiores, publicado pelo Centro
D. Vital.
[41] A partir de 1935, A Ordem transcreve algumas teses
de alunos do Curso de Sociologia. Ver, por exemplo, Sebastião Pinheiro Magalhães
Bastos, "Um Inquérito Social" (versando sobre as condições de vida
dos moradores do morro do Querosene no Rio de Janeiro); Maria de Lourdes Gomes,
"Como pode a Sociologia Contribuir para a Reforma Cristã da Sociedade"
e Antônio Gabriel de Paula Fonseca, "A Reforma Cristã da Sociedade".
Os dois últimos trabalhos se encontram publicados em A Ordem, v. 14,
n9 59, jan. 1935 (Cf. Velloso, 1977, 3o vol.).
[42] Em um de seus depoimentos, Alceu Amoroso Lima (1979) ressalta
que um dos motivos que desestimulou os católicos a requerer o reconhecimento
oficial do Instituto Católico era a presença de correntes de opinião do peso
na sociedade brasileira francamente desfavorável à privatização do ensino superior.
[43] "Por suas origens, por sua formação, por seu caráter
de universalidade, a universidade é uma instituição católica e o espírito universitário
tem de ser um esforço de totalização espiritual (...) universidade é, portanto.
organização, cooperação e instrução na ordem do simbólico e do espiritual. Por
aí se revelam as indiscutíveis afinidades da universidade com a Igreja, organização,
ordem, estrutura e disciplina". (Francisco Campos, apud Lima, 1931, p.
8 e 9).
[44] Cf. Fernando de Azevedo, 1964, p. 661-2 e Simon Schwartzman,
1977, p. 171.
[45] Após avaliar a Reforma Francisco Campos, Alceu concluía:
"não resta aos católicos senão contar com suas próprias forças. Só eles
estão em condições de organizar uma universidade de base verdadeiramente espiritual"
(Lima, 1931, p. 28).
[46] Em abril de 1932 A Ordem, em editorial, proclamava;
"é inútil tentarmos influir nos destinos da Nação e do Estado sem possuirmos
uma elite realmente adestrada que esteja em condições de por em movimento as
grandes massas eleitorais em torno de nossas idéias construtoras. E que possam
resistir à pressão das ideologias que as cada momento nos assaltam". (em
A Ordem, v. 12, no. 26, abril de 1932). Tais palavras prenunciam não
só a criação da Liga Eleitoral Católica mas também a do Instituto Católico de
Estudos Superiores, fundado um mês após a publicação do editorial.
[47] O pensamento católico elabora uma distinção entre "ciência"
e "cientismo" afirmando que, enquanto a primeira aceita um finalismo
teológico, o segundo se caracterizaria por sua oposição à metafísica. Da mesma
forma, distingue-se o conceito de "progresso'' do de "evolução";
o primeiro denotaria apenas os aspectos materiais ao passo que o ultimo abrangeria
também os aspectos morais de uma sociedade.
[48] É notório que o diagnóstico referente ao domínio científico
é equivalente, tanto no que tange às causas como também aos efeitos, ao diagnóstico
proposto para explicar as crises nas outras instâncias sociais. A propósito,
escreve Alceu; "Deu-se com o positivismo e o monismo científico o mesmo
que se deu com o individualismo social. O bem próprio superou o bem comum. Ao
mesmo tempo que, nessa fase da civilização, cada indivíduo procurava sua máxima
autonomia, cada ciência também procurava libertar-se e crescer sem medida e
sem se preocupar com sua posição no complexo dos conheci mentos humanos"
(1932). Como ficará evidenciado, essa equivalência se reproduz também a nível
das soluções propostas.
[49] Numa certa medida, essa postulação distancia a retórica
dos católicos da dos escolanovistas frente à questão educacional enquanto elemento
chave para promover mudanças sociais mais profundas. Supondo que todos os males
nacionais seriam sanados através da democratização e adaptação do sistema de
ensino às novas necessidades geradas pela sociedade urbano-industrial, o ímpeto
dos renovadores é sobretudo canalizado para reformas no ensino primário, secundário
e profissional. Isso não significa que, a nível de discurso, seja desprezada
a articulação de uma rede de ensino voltada para o adestramento de elites; mas,
sem dúvida, em termos de uma ação concreta, o ideário escolanovista não consegue
penetrar com a mesma intensidade no ensino superior. Os católicos. ao invés,
ainda que também procurando intervir em todos os níveis do universo escolar,
elegem - em congruência com seus pressupostos elitistas - o sistema universitário
como seu campo estratégico de ponta.
[50] Transcrevemos, mais uma vez, a afirmativa de Franca sobre
a importância da escola: "Quem conseguir plasmar em suas mãos o maior número
de almas novas, será o senhor da sociedade e do mundo civilizado de amanhã"
(apud D'Elboux, p. 231).
[51] Nesse ano, o golpe do Estado abafa, pela autoridade, os
conflitos pedagógicos, Isso não significou, como é óbvio, a supressão efetiva
dessas perspectivas contrárias; elas continuam persistindo na sociedade brasileira,
disputando o reconhecimento de suas propostas e deslocando o debate para outras
arenas menos visíveis como, por exemplo, para dentro do Conselho Nacional de
Educação.
[52] Após o expurgo da Universidade do Distrito Federal, ocorrido
em 1935, Alceu assume o cargo de reitor desse estabelecimento por alguns meses
entre fins de 1937 e princípios de 1938.
[53] No seu discurso de abertura das Faculdades Católicas, Afonso
Pena afirmava; "os homens de direito, os juristas de profissão têm sido,
ordinariamente, os homens de direção e de mando. Nem o camarada Lênin fugiu
a essa norma, pois o revolucionário de todos os tempos também era jurista. Como
a Igreja poderia despreocupar-se com a formação de dirigentes, da formação dos
que podem conduzir o Brasil para o bem e para o mal?" (em A Ordem.
v. 52. no. 52, abril de 1941).
[54] Em fevereiro de 1979, o reitor da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro professor João Augusto McDowell
declarava que 70 a 80% do corpo discente universitário brasileiro estudava em
estabelecimentos católicos (Jornal do Brasil, 14/2/79).
[55] Por exemplo, a Escola Politécnica da Universidade Católica,
exatamente por ser um curso estritamente técnico, não constava da agenda de
prioridades dos católicos. No entanto, ela foi implantada em 1948, em resposta
a um apelo dirigido ao padre Franca pelos professores da Escola Nacional de
Engenharia. em virtude da reduzida capacidade de matriculas que essa escola
- a única existente no Rio na época - podia ofertar ao público (Cf. Padre Velloso,
1979 e Padre Franca, 1954, p. 140). ( • I Os artigos do autor assinados sob
o pseudônimo de Tristão de Ataíde estão indiferenciadamente inseridos nesse
tópico.
* Os artigos do autor assinados sob o
pseudônimo de Tristão de Ataíde estão indiferenciadamente inseridos nesse tópico.
Fontes citadas
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