As causas da Pobreza |
Simon Schwartzman |
Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
2004 |
1. Apresentação
Até vinte ou trinta anos atrás, os temas que preocupavam
os cientistas sociais eram coisas como o desenvolvimento econômico, a modernização,
a participação política, a democracia e a mobilidade social. Hoje, o tema
da dominante é o da pobreza e da exclusão social. Não é que os temas da
pobreza e da exclusão não estivessem presentes no passado; mas eles eram
vistos como uma decorrência de problemas, deficiências ou desajustes na
ordem econômica, política e social, que seriam resolvidos e superados na
medida em que estes problemas, deficiências e desajustes fossem sendo equacionados.
Hoje, o tema da pobreza aparece no primeiro plano, requerendo atenção imediata,
e definindo o foco a partir do qual os demais temas das ciências sociais
se estruturam. Esta não é, somente, uma mudança de perspectiva conceitual,
mas tem implicações muito concretas, que vão desde as políticas de financiamento à pesquisa
de agências e fundações públicas e privadas, nacionais e internacionais,
até a própria agenda política brasileira, como vimos na última eleição
presidencial.
Os artigos reunidos neste livro foram escritos ao longo
dos últimos anos, e podem ser vistos como distintas aproximações ao tema
da pobreza e da desigualdade social, a partir de uma preocupação implícita
em restabelecer as pontes entre o tema da pobreza e os temais mais clássicos
das ciências sociais. Estas pontes, na realidade, nunca deixaram de existir,
e a preocupação com a pobreza e a exclusão social está nas origens das
principais tradições de pesquisa e análise social na Europa e nos Estados
Unidos desde o século XVIII, se não antes. O que muitas vezes dificulta
ver isto é que a questão da pobreza, assim como, de maneira mais geral,
a questão dos direitos humanos, tende a ser vista e vivida como uma questão
moral e muitas vezes religiosa, cuja urgência e necessidade deveria se
sobrepor a qualquer outro tipo de consideração.
Michael Ignatieff, que tem trabalhado com o tema dos direitos humanos na política
internacional, mostra como existe uma tendência por parte dos defensores destes
direitos a tratá-los como "trunfos", ou seja, como cartas que, ao serem
postas à mesa, devem prevalecer sempre sobre todas as demais[1].
Na verdade, argumenta ele, os direitos humanos, que incluem o direito a um mínimo
de recursos para a uma vida sem sofrimento e privações, formam uma agenda "negativa",
no sentido de que afirmam aquilo que as pessoas não deveriam deixar de ter, e
não uma agenda “positiva”, no sentido de estabelecer as causas da carência de
direitos e os mecanismos para sua satisfação. No dizer de Ignatieff,
Os direitos
humanos poderiam se tornar menos imperiais se eles se tornassem mais
políticos, ou seja, se
fossem entendidos como uma linguagem, não para a proclamação e cumprimento
de verdades eternas, mas como discurso para a adjudicação de conflitos.
Mas pensar nos direitos humanos desta forma significa aceitar que os direitos
humanos podem estar em conflito uns com os outros. Ativistas que supõem
que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma lista completa de
todos os fins desejáveis da vida humana erram ao não entender que estes
objetivos – liberdade e igualdade, liberdade e segurança, propriedade privada
e justiça distributiva – se conflitam, e, por isto, os procedimentos para
sua implementação também podem estar em conflito. Se os direitos conflitam,
e não existe uma ordem indiscutível de prioridade moral entre eles, então
não podemos falar em direitos como trunfos.(Ignatieff
e Gutmann 2001, p. 20- a tradução é minha.).
A idéia de direitos como “trunfos”, continua Ignatieff,
significa que, quando os direitos são introduzidos em uma discussão política,
eles deveriam resolver a discussão, pela sua superioridade moral. Na prática,
as tentativas de pensar nestes valores como direitos positivos e inalienáveis
eliminam a possibilidade de compromisso e negociação, levando a confrontações
irreconciliáveis e inegociáveis. A importância dos direitos humanos,
conclui ele, é que eles podem servir de ponto de referência e linguagem
comum para o diálogo, e para permitir que diferentes grupos e pessoas desenvolvam
um terreno comum dentro do qual possam se entender. Mas, para que haja
acordo, muitas outras coisas são necessárias, entre quais o respeito mútuo
e o reconhecimento da legitimidade das perspectivas e pontos de vista dos
outros.
O mesmo raciocínio de aplica às relações entre o tema da
pobreza e exclusão e as ciências sociais. Na historiografia, a versão “imperialista” e “triunfalista” dos
direitos humanos consiste em olhar todo o passado como uma luta constante
entre os princípios do bem e do mal, dominantes e dominados, santos e pecadores,
burgueses e proletários. Quando aplicada à realidade presente, esta visão
tende a produzir um quadro extremamente simplificado do mundo, em que tudo
depende do compromisso moral e dos valores éticos das pessoas, sem lugar
para a percepção e o reconhecimento de situações complexas, valores e interesses
contraditórios e efeitos paradoxais e inesperados das ações e preferências
individuais e de grupos. Este empobrecimento do entendimento da realidade
tem o seu preço, que é o de dificultar, muitas vezes, que os objetivos
que se busca sejam efetivamente alcançados.
A maneira mais imediata de restabelecer as pontes entre
o mundo dos valores e direitos e o mundo real é pela “desconstrução” dos
conceitos, isto é, pela reconstituição de sua história e pela identificação
de suas múltiplas conotações. Procedimentos de “desconstrução” costumam
ser usados na literatura chamada “pós-moderna” como forma de denúncia ou
desmascaramento, pela identificação daquilo que estaria “por trás” de determinados
conceitos, construções ou obras literárias. A idéia aqui não é esta, e
sim a de buscar refazer o caminho pelo qual os conceitos foram construídos,
sem que isto signifique invalidá-los[2].
O primeiro capítulo deste livro, As causa da pobreza,
percorre um pouco este caminho[3].
Ele parte de uma noção aparentemente
ingênua sobre as causas da pobreza, e depois volta, ainda que de firma
ligeira e rápida, às origens das discussões e debates sobre a pobreza no
início da revolução industrial. Depois, estes conceitos são aplicados ao
Brasil. Aqui, a história da tentativa da velha geração dos cientistas sociais
brasileiros, da primeira metade do século XX, de pensar e tentar explicar
o país em termos raciais já é bem conhecida; menos analisada, no entanto, é a
tendência da geração seguinte, que ainda persiste, a pensar tudo em termos
de classes sociais, ou no caso do Brasil, de sua falta. Se o que explica
o mundo são as relações e os conflitos de classe, mas a população brasileira,
em sua grande maioria, não se encaixa nos conceitos de classe tradicionais,
das duas uma: ou elas são deixadas de lado da análise, como inexplicáveis;
ou são encaixadas à força nos conceitos disponíveis. A partir desta perspectiva,
o capítulo discute diferentes interpretações correntes sobre a escravidão
brasileira, e apresenta um panorama do desenvolvimento de nosso “estado
de bem estar social”, e suas limitações.
O segundo capítulo, escrito em colaboração com Elisa Pereira
Reis, busca oferecer um panorama geral dos aspectos sociais e políticos
da pobreza e exclusão social no Brasil, como ponto de partida virtual para
uma ampla agenda de pesquisas sobre o tema[4].
O impulso inicial para este trabalho foi uma solicitação de pesquisadores do Banco Mundial, que estavam interessados
em olhar as questões da pobreza por uma perspectiva que não se limitasse às
análises quantitativas e econométricas que são mais típicas dos trabalhos
do Banco. Não há nenhuma relação direta entre este texto e as pesquisas
que o Banco vem estimulando ou desenvolvendo, mas, para o trabalho, foi
necessário fazer um amplo inventário dos temas e da literatura existente,
assim como revisitar os dados mais centrais sobre participação social no
país, que pode ser útil para explicitar o mundo de questões e problemas
que subjazem às questões aparentemente simples da pobreza e da exclusão
social.
O terceiro capítulo parte de uma reflexão mais ampla sobre as estatísticas públicas,
provocada pela experiência do autor de presidir, entre 1994 e 1998, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística.[5] As estatísticas públicas são um híbrido
extremamente interessante, tendo, por um lado, um conteúdo científico e técnico,
vinculado às tradições da estatística, da economia, da demografia e das demais
ciências sociais; e, de outro, uma natureza claramente política e institucional,
na medida em que criam direitos e afetam decisões de agentes públicos e privados.
O capítulo começa com uma visão mais geral sobre a história das estatísticas públicas
na Europa, evolui para uma discussão sobre a experiência do IBGE, e termina com
uma análise dos diversos dilemas e alternativas que circundam a construção de
algumas das estatísticas públicas na área social, como as de emprego e de pobreza.
A parte sobre pobreza deriva, também, da participação do IBGE como instituição
responsável pela coordenação de um grupo de trabalho da Comissão Estatística das
Nações Unidas dedicada ao tema das estatísticas da pobreza (o chamado "Grupo
do Rio").
Os três capítulos seguintes tratam de temas específicos relacionados à questão
da pobreza. O primeiro, "raça e origem social", relata uma experiência
do IBGE em tratar de ir além dos das categorias de cor utilizadas pelo Instituto
para caracterizar as diferentes etnias brancas, negras e indígenas em suas pesquisas
e censos[6]. Sabe-se que existem fortes diferenças
de renda, ocupação e oportunidades no Brasil em função do pertencimento das pessoas
a estas diferentes etnias. No entanto, existem muitas controvérsias sobre como
classificar as pessoas em termos destas ou outras etnias, assim como qual o peso
específico do fator étnico, ou racial, da determinação destas diferenças, em relação
a outros fatores. A conclusão principal do artigo é que o caráter pouco nítido
e insatisfatório destas classificações, e outras que possam ser tentadas, não
decorre de um problema metodológico ou de mensuração, mas sim da pouca nitidez
das fronteiras entre as diferentes etnias e subculturas que coexistem no Brasil.
O capítulo seguinte trata do tema do trabalho infantil,
e tem como origem um estudo realizado por solicitação do escritório da
Organização Internacional do Trabalho no Brasil.[7] Utilizando os
dados da PNAD para a década entre 1992 e 2001, o estudo mostra como o termo “trabalho
infantil” encobre realidades muito distintas, que vão deste a tradição
de trabalho familiar na pequena agricultura doméstica nos estados sulinos,
que não parece afetar as crianças de maneira significativa, até a generalização
do trabalho para jovens entre 14 e 17 anos em quase todo o país. Uma das
proposições do capítulo é que, ao contrário do que muitas vezes se supõe,
o trabalho infanto-juvenil não parece ser, na maioria dos casos, uma forma
de complementar a renda das famílias, e sim um comportamento que se desenvolve
pela má qualidade do sistema educacional, que tem grande dificuldade de
reter os jovens a partir da adolescência.
O terceiro capítulo desta parte trata do tema da educação básica, cuja má qualidade
é considerada, de forma quase unânime, como principal responsável pela pobreza
e desigualdade social não só no Brasil, mas em toda a região latino-americana.
Este texto tem como origem um estudo realizado para o Escritório Regional da UNESCO
para a América Latina em 2000, sobre “o futuro da educação na América Latina e
o Caribe”.[8] Para este trabalho, várias
dezenas de especialistas da região responderam a um questionário, e a UNESCO patrocinou
a realização de um seminário, em Santiago, para discutir o tema. O estudo mostra
entre outras coisas que, na opinião dos especialistas, não é muito provável que
os governos latino-americanos consigam os recursos e os instrumentos para melhorar
a educação da região nos próximos anos. Por outro lado, eles manifestam uma crença
na capacidade da própria sociedade de se organizar, mobilizar e conquistar, por
ela própria, aquilo que o setor público não consegue proporcionar.
O último capítulo é uma reflexão um pouco mais ampla sobre o tema da política
e das políticas sociais, a primeira entendida como os jogos de interesse e as
disputas que levam à distribuição do poder e autoridade em uma sociedade, e a
segunda como as alternativas para a implementação das ações governamentais. O
texto começa lembrando que, na tradição brasileira, estas duas coisas aparecem
como confundidas, enquanto que, em inglês, existem palavras distintas para cada
uma delas – politics e policy. Na prática, existe uma relação forte
entre elas, sem que uma se esgote na outra. As políticas públicas se dão dentro
de um marco político definido, que se altera de maneira bastante significativa
quando o tema da pobreza é introduzido no discurso e nas políticas político-partidárias
e eleitorais. Várias das idéias e conceitos utilizados neste capítulo foram apresentados
em trabalhos anteriores.[9]
Quase todos os textos reunidos neste livro já foram publicados ou circularam de
uma ou oura forma, e suas versões originais podem ser encontradas na Internet,
conforme indicado na bibliografia. Para esta edição, eles foram revistos e, em
muitos casos, os dados foram atualizados. Alguns autores têm a capacidade de conceber
grandes projetos intelectuais, e construí-los passo a passo, como tratados integrados
e coerentes. Outros, como neste caso, trabalham por aproximações sucessivas, a
partir de diferentes pontos de vista, e a coerência que possa existir entre estes
trabalhos dispersos só se torna clara em um segundo momento, a posteriori.
As diferentes origens e motivações que deram origem aos capítulos deste livro
podem ter levado a algumas incongruências ou repetições, que, tanto quanto possível,
foram corrigidas. Por outro lado, quero crer que, ao mostrar as origens e a evolução
de cada um dos textos, este livro tem a vantagem de mostrar o processo real em
que o trabalho intelectual se desenvolve, sem a pretensão de ocultá-lo sob um
manto de coerência e integração que são, muitas vezes, meramente formais.
Notes
[1] Michael Ignatieff e Amy Gutmann. Human rights as politics
and idolatry. Princeton, N.J.: Princeton University Press. 2000
[2] Veja, a respeito, Bruno Latour. Science in action: how
to follow scientists and engineers through society. Cambridge, MA: Harvard
University Press. 1987
[3]Circulado originalmente como Simon Schwartzman. Notas
sobre o paradoxo da desigualdade no Brasil.Rio de Janeiro. 2001b
[4] Elisa Maria Pereira Reis e Simon Schwartzman. Pobreza
e exclusão social - aspectos socio-políticos.
Rio de Janeiro. 2002
[5] Publicado originalmente como Simon Schwartzman. "Legitimidade,
controvérsias e traduções em estatísticas
públicas." Teoria e Sociedade,
vol. 2, Pp. 9-38. 1997c.
[6] Simon
Schwartzman. "Fora de foco: diversidade
e identidades étnicas no Brasil." Novos Estudos CEBRAP,
vol. 55, Pp. 53-96. 1999
[7] Simon Schwartzman. Trabalho infantil no
Brasil. Brasília: Organização Internacional
do Trabalho. 2001c
(Nova versão, 2004)
[8] Simon Schwartzman. El futuro de la educación en América
Latina y el Caribe. Santiago: Oficina Regional
de Educación de la UNESCO para América Latina y el Caribe.
2001a
[9] Simon
Schwartzman. "Brasil: a agenda
social." em Bethell, Brasil, fardo do passado, promessa
do futuro: dez ensaios sobre política e sociedade brasileira,
Pp. 77-116. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002;
Simon Schwartzman. "A agenda social brasileira." em Reis, Retratos
do Brasil. a sair.
Referências
Elisa Maria Pereira e Simon Schwartzman. 2002. Pobreza e exclusão social - aspectos socio-políticos. Rio de Janeiro.
Ignatieff, Michael e Amy Gutmann. 2001. Human
rights as politics and idolatry. Princeton,
N.J.: Princeton University Press.
Latour, Bruno. 1987. Science in action: how
to follow scientists and engineers through society. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Reis,
Schwartzman, Simon. 1997. "Legitimidade,
controvérsias e traduções em estatísticas públicas." Teoria e Sociedade 2:9-38.
—. 1999. "Fora de foco: diversidade e identidades étnicas
no Brasil." Novos Estudos CEBRAP 55:53-96.
—. 2001a. El futuro de la educación en América
Latina y el Caribe. Translated by E. Leigh e C. Richard. Santiago: Oficina
Regional de Educación de la UNESCO para América Latina y el Caribe.
—. 2001b. "Notas sobre o paradoxo da desigualdade
no Brasil."
—. 2001c. Trabalho infantil no Brasil.
Brasília: Organização Internacional do Trabalho.
—. 2002. "Brasil: a agenda social." em
L. Bethell. Brasil, fardo do passado, promessa do futuro: dez ensaios
sobre política e sociedade brasileira, pp. 77-116, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
—. a sair. "A agenda social brasileira." em
Elisa P. Reis e Regina Zilberman, Retratos do Brasil, Porto Alegre, Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2004.