TEMPOS DE CAPANEMA
SIMON SCHWARTZMAN, HELENA MARIA BOUSQUET BOMENY, VANDA MARIA RIBEIRO COSTA
1ª edição: Editora da Universidade de São Paulo e Editora
Paz e Terra, 1984 - 2ª edição, Fundação Getúio Vargas e Editora Paz e Terra, 2000.
Prefácio à segunda edição, por Afonso Arinos, filho.
Agradecimentos
Nota
Introdução à primeira edição
Introdução à segunda edição
Parte I - Tempo de Política
Capítulo 1: De Minas para o Rio
1. Os intelectuais da rua da Bahia
2. No poder, em Minas
3. Capanema, Francisco Campos e a Legião de Outubro
4. O pacto com a Igreja
5. De Minas para o Rio
Capítulo 2: Políticas e Ideologias da Educação
1. O Movimento da Escola Nova
2. A renovação católica e a Revolução
de 30
3. O projeto fascista de Francisco
Campos
4. O projeto educativo das Forças
Armadas
5. A construção da nacionalidade
Parte II - Tempo de Ação
Capítulo 3: A Ação Cultural
1. Presença do modernismo
2. Cultura e propaganda
3. O canto orfeônico
4. O Palácio da Cultura e a Cidade
Universitária
Capítulo 4: Contenção das Mulheres, Mobilização dos Jovens
1. O lugar das mulheres
2. O Estatuto da Família
3. A Organização Nacional da
Juventude
4. A Juventude Brasileira
5. Os limites da mobilização
Capítulo 5: A Constituição da Nacionalidade
1. A política de nacionalização
2 A institucionalização da violência
3. Cidadania e nacionalidade
4. A nacionalização e a Igreja
5. Conclusão
Parte III - Tempo de Reforma
Capítulo 6: A Reforma da Educação
1. As premissas da Igreja
2. O inquérito sobre a educação
nacional
3. O Plano Nacional de Educação
4. A reforma do ensino secundário
5. Reações à Reforma
Capítulo 7: O Grande Projeto Universitário
1. O projeto
2. A extinção da Universidade
do Distrito Federal
3. A Faculdade Nacional de Filosofia
4. A Faculdade de Ciências Políticas
e Econômicas
5. O saldo
Capítulo 8: O Ensino Industrial
1 As origens
2. O conflito com os empresários
3. O projeto ministerial: a escola-modelo
4. Conclusão
Parte IV - Tempo de Transição
Capítulo 9: A Herança
dos Tempos
1. Os novos tempos
2. A proposta de um novo pacto
3. A herança
Agradecimentos
Este livro não poderia ter sido escrito sem a decisão de Gustavo Capanema
de abrir sua vida de homem público à pesquisa histórica. Foi uma intenção
que se manifestou ao longo dos anos, na coleta e organização de um vasto
arquivo particular destinado à posteridade; e que se concretizou na doação
e cessão dos direitos deste arquivo pessoal ao Centro de Pesquisa e Documentação
em História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas - CPDOC.
A Gustavo Capanema, pois, o nosso primeiro agradecimento.
Mais do que um centro de documentação, o CPDOC é hoje um núcleo significativo
de pesquisas sobre a história social e politica do país, dando a seus
pesquisadores as condições indispensáveis dc trabalho e liberdade de pensamento
sem as quais a pesquisa histórica não pode existir. Gostaríamos de registrar,
desde logo, o papel central que Celina do Amaral Peixoto Moreira Franco
vem desempenhando para o fortalecimento desta vocação acadêmica do Centro
que fundou e que dirige.
É difícil para o leitor avaliar a imensa massa de documentos que tiveram
que ser vistos, examinados e selecionados para a preparação deste volume.
Contamos, para isto, com a colaboração e paciência dos pesquisadores diretamente
responsáveis pela organização do arquivo Paulo Sérgio Moraes de Sá, Maurício
Lissovsky e Manoel Rolph de Viveiros Cabeceiras - que também leram o livro
em sua versão preliminar e contribuíram com suas críticas e comentários.
Queremos também agradecer a colaboração de Rosa Maria Barboza de Araujo
na preparação do capítulo sobre a Universidade do Brasil e o projeto da
Cidade Universitária.
O passado é sempre visto com os olhos do presente, e por isto qualquer
estudo de eventos, intenções e ações pretéritas tem sempre uma grande
dose de subjetividade na escolha dos temas; fatos, evidências e interpretações,
da qual não estaríamos isentos. Para evitar, no entanto, maiores erros
de interpretação ou omissão, pedimos a várias pessoas que lessem e comentassem
este livro em diferentes etapas de sua elaboração. Nem todas as sugestões
recolhidas puderam ser adotadas, e nem todos concordaram com a nossa maneira
de ver e apresentar este ou aquele aspecto da história. É possível, assim,
que nem todos fiquem satisfeitos com o resultado final. Para nós, no entanto,
foi uma ajuda inestimável. Queremos agradecer de público e registrar,
entre esses leitores, os nomes de Alberto Venâncio Filho, Ângela Maria
Castro Gomes, Aspásia Camargo, Bruno Alípio Lobo, Edgar Flexa Ribeiro,
Jacques Schwartzman, João Batista de Araújo e Oliveira, José Murilo de
Carvalho, Lúcia Lippi de Oliveira e Pedro Nava. Queríamos agradecer ainda
à equipe de editoração do CPDOC - Cristina Mary Paes da Cunha, Carlos
Alberto Lopes e Elisabeth Xavier de Araujo pelo trabalho competente e
minucioso de preparação dos originais.
Finalmente, é importante registrar o apoio inestimável da Financiadora
de Estudos e Projetos - FINEP, da Secretaria de Planejamento da Presidência
da República, ao fortalecimento institucional e aos trabalhos de pesquisa
do CPDOC/FGV, sem o qual pouco do que é hoje este centro, bem como nosso
trabalho, poderia existir.
Apesar de toda a ajuda recebida, os autores reservam para si a total
responsabilidade pelos conceitos, interpretações e análises incluídas
neste volume, que de nenhuma forma podem ser tomados como refletindo a
opinião do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, da FINEP ou das pessoas
cuja colaboração e crítica ora agradecemos.
Nota
O arquivo Gustavo Capanema foi entregue ao CPDOC em 1978. É constituído
de aproximadamente 200.000 documentos - entre documentação escrita, fotografias
e recortes de jornais - que refletem com riqueza de detalhes a trajetória
privada e pública de seu titular.
O volume e a abrangência desse acervo recomendavam uma forma de organização
que resguardada a diversidade original, permitisse o acesso fácil e imediato
do pesquisador às matérias de seu interesse. Por esta razão, foi o arquivo
dividido em séries que acompanham principalmente as funções públicas desempenhadas
por Gustavo Capanema, contendo cada série, vários dossiês temáticos.
Encontram-se organizadas e abertas a consultas as séries relativas ao
"governo de Minas 1930-1933" (série e) e ao "Ministério
da Educação e Saúde 1934-1945: Administração (série]), Educação e Cultura
(série g) e Saúde e Assistência Social (série h)". Nas mesmas condições,
estão as séries de interesse geral como "correspondência" (série
b) e "produção intelectual" (série pi).
Como o trabalho de organização do restante do acervo ainda não está concluído,
a codificação dos documentos - utilizada como referência nesta publicação
- deve ser considerada provisória, sujeita a alterações que a organização
definitiva e completa obrigue.
Introdução à primeira edição
Não é possível falar de educação e cultura no Brasil sem a menção de
Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas de 1934
a 1945.0 edifício do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, construído
em sua gestão, segundo as linhas modernistas de Le Corbusier, simboliza
até hoje a imagem que ficou para muitos de uni ministro esclarecido, avançado
para a sua época, defensor da cultura e das artes, promotor da educação.
"As conseqüências do que ele fez", diz-nos Pedro Nava, "são
incalculáveis. Siga você o meu raciocínio. Sem o prédio do Ministério
da Educação (recebido na ocasião como obra de um mentecapto) não teríamos
a projeção que tiveram na época Lúcio Costa, Niemeyer, Carlos Leão e Cândido
Portinari. Foram entendidos por Capanema e seus auxiliares próximos (Drummond,
Rodrigo, Mário de Andrade e outros). Sem essa compreensão não teríamos
tido a Pampulha, concepção paísagística e arquitetônica prestigiada pelo
imenso Kubitschek. Sem Pampulha não teríamos tido Brasília, do mesmo Juscelino
Kubitschek, que desviou nosso curso histórico - levando o Brasil para
o seu Oeste. A raiz de tudo isto, a semente geradora, o adubo nutridor
estão na inteligência de Capanema e de seus auxiliares de gabinete."(1)
De fato, o arrojo dos murais e das linhas arquitetônicas do Palácio da
Cultura, no contexto intelectual daqueles anos, criou uma auréola de progressivismo
e coragem intelectual ao redor do ministro e sua equipe que até hoje se
mantém, e que se propaga para as outras atividades por eles também desenvolvidas,
na reforma do ensino secundário, na organização da Universidade do Brasil,
na implantação do ensino industrial, na criação do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nos grandes programas nacionais de saúde
pública, e tantas outras.
No entanto, é uma imagem que tem seus contraditores: "Tenho para
mim que a ação renovadora desse ministro no campo da cultura, ainda que
exagerada, através do apoio aos projetos de Niemeyer e Portinari, e das
atividades do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional entregue á clarividência
competente de Rodrigo Melo Franco de Andrade, tem levado a estender esta
atuação para o campo da educação, onde, no entanto, os resultados foram
inexpressivos." Nesta perspectiva, teria sido de fato "muito
pequena e inexpressiva a contribuição real de Gustavo Capanema aos destinos
da educação nacional".(2) Entender
como surgem estas imagens contraditórias, e em que consistiu, realmente,
a ação do Ministério da Educação naqueles anos, é um dos objetivos centrais
deste livro.
Nos seus onze anos à frente do Ministério da Educação e Saúde, assim
como nos demais anos de sua longa carreira politica, Gustavo Capanema
mostrou ser um homem de grande probidade pessoal, e totalmente dedicado
à realização de objetivos que considerava de grande interesse público.
A doação de seu vasto arquivo pessoal ao Centro de Pesquisa e Documentação
em História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas
só pode ser entendida como um gesto coerente com esse passado. Seu arquivo
contém milhares de cartas pessoais, recortes de jornais que cobrem várias
décadas, anotações e rascunhos de textos que mais tarde seriam - ou não
- convertidos em lei, textos de discursos, elogios e críticas de seus
opositores.
Um dos grandes méritos dos arquivos pessoais é que eles nos permitem
ir além das versões oficiais e públicas dos fatos, aproximando-nos das
pessoas de carne e osso que são os verdadeiros protagonistas da história.
A busca desta dimensão mais profunda não deve, no entanto, ser confundida
com a crença na existência de uma "história se-. creta" e não
confessada, em contraposição à versão pública e supostamente parcial e
enganosa das coisas. A pesquisa de materiais de arquivos pessoais não
tem o objetivo de descobrir o que "verdadeiramente" aconteceu,
dentro de uma visão conspirativa da história, e muito menos o de revelar
fatos e detalhes que só interessam à intimidade das pessoas. O que este
tipo de material permite é adquirir uma vido muito mais rica e complexa
dos fenômenos históricos, a partir das motivações e visões de seus protagonistas.
Que estes protagonistas fazem parte de um contexto muito mais amplo, sobre
o qual têm pouca in~ fluência, e que muitas vezes nem sequer chegam a
compreender, não precisa ser repisado. Entender suas motivações e os propósitos
de suas ações não significa, necessariamente, aceitar que as coisas ocorreram
como eles as viam, percebiam ou queriam. Significa, isto sim, compreender
como eles viam o mundo que os circundava, e como agiam a partir dessa
compreensão.
Através deste material é possível ir além da pessoa do ministro e ter
uma visão muito mais profunda e complexa daqueles tempos de Capanema à
frente do ministério do que a que poderíamos obter pela simples projeção
das linhas retas e harmônicas do edifício modernista que o simboliza.
Estudar os tempos de Capanema significa, acima de tudo, abrir uma janela
para o ambiente intelectual, politico e ideológico daqueles anos e, assim,
entender melhor o legado que deles recebemos. Foram tempos conturbados
e contraditórios. Nascido na passagem do século, Capanema se educou junto
à elite intelectual mineira, viveu a excitação revolucionária da década
de 1930 e ocupou, por muitos anos, uma posição central em relação aos
assuntos de educação e cultura no país. Estes foram também os anos da
ascensão do fascismo, da Guerra Civil Espanhola, da intensificação dos
conflitos ideológicos, do Estado Novo e do eventual alinhamento brasileiro
contra as potências do Eixo. Sua carreira, sua obra politica e administrativa
estão profundamente marcadas por estes eventos.
Em 1924 o jovem Gustavo se forma na Faculdade de Direito da Universidade
de Minas Gerais e é eleito orador da turma. Volta, depois, para sua cidade
natal, Pitangui, onde advoga, dá aula de psicologia infantil e ciências
naturais na Escola Normal, e é eleito para a Câmara de Vereadores. Em
1930, vem para Belo Horizonte como oficial-de-gabinete de Olegário Maciel,
de quem se torna secretário do Interior após a Revolução de 30, da qual
participa ativamente. Assume interinamente a interventoria do estado em
1933, após a morte de Olegário Maciel, transferindo-a três meses depois
para Benedito Valadares. Antes, havia participado da fundação do Partido
Progressista Mineiro, que derrota o Partido Republicano Mineiro nas eleições
para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934. Assume o Ministério da
Educação e Saúde em 1934, nele permanecendo até a queda do Estado Novo
em 1945.
Os onze anos do ministério Capanema decorrem, assim, em presença de um
poder legislativo atuante, continuam pelo período de paroxismo do poder
autoritário implantado em 1937, e desembocam nos anos de progressiva liberalização
politica que se seguiram ao alinhamento brasileiro com os Aliados, já
na década de 1940. Eles incluem as rebeliões da Aliança Nacional Libertadora,
de 1935, e da Ação Integralista, de 1938, assim como as reações e expurgos
que a elas se sucederam. Em 1945, Capanema participa, à sua maneira, da
tentativa de dar continuidade ao governo Vargas de forma adaptada aos
novos tempos, e depois se transforma em líder preeminente do Partido Social
Democrático em Minas Gerais, que ajuda a organizar. É eleito deputado
federal por Minas em todas as legislaturas a partir de 1946, sendo eleito
senador pela ARENA em 1971, na qual havia ingressado em 1965.(3)
Este livro não pretende ser uma biografia acabada de Gustavo Capanema,
nem uma história exaustiva sobre sua gestão no Ministério da Educação
e Saúde. Não há aqui nenhuma tentativa de reconstruir a vida pessoal do
ex-ministro, sua personalidade, suas relações pessoais e familiares, seu
dia-a-dia. Não existe, tampouco, esforço em listar e analisar, com minúcias
de detalhe, todas as iniciativas e ações de seu ministério em seus onze
anos de atividade. Para a primeira tarefa, o arquivo de Gustavo Capanema
seria uma fonte muito limitada, já que os papéis ali reunidos se limitam,
quase sempre; à atuação política, educacional e cultural de seu titular.
Existem muito mais elementos para a segunda, desde que fosse complementada
por um levantamento sistemático da legislação pertinente. Seriam dois
trabalhos de valor histórico e documental inestimável. Optamos, no entanto,
por tentar uma linha distinta: tratar de reconstruir as grandes intenções
e projetos que mobilizaram o Ministério da Educação naqueles anos, buscando
ver, por um lado, suas matrizes políticas e ideológicas no ambiente da
época e, por outro, o que ocorreu quando tratou-se de levá-los à prática.
Para isto foi necessário acompanhar os anos de formação política de Capanema
até a sua entrada no ministério, suas principais influências e seus principais
contatos; traçar um quadro, ainda que sumário, das grandes correntes de
pensamento que, impulsionadas por instituições, movimentos e indivíduos
mais influentes, marcaram o clima do debate político sobre educação e
cultura naqueles anos; e ir até aos grandes projetos de reforma institucional,
geralmente corporificados em textos legais que eram posteriormente revistos,
discutidos, eventualmente sancionados e aplicados com maior ou menor sucesso.
A estrutura geral do livro é simples. O primeiro capítulo trata do ambiente
político e intelectual de Minas Gerais na década de 1920 e durante o Governo
Olegário Maciel, quando Capanema ingressa na vida pública e aspira, por
algum tempo, à sucessão do governo estadual. Datam dessa época seus vínculos
com o movimento de outubro, com Francisco Campos e mesmo com Alceu Amoroso
Lima, que teriam sobre ele grande influência. No capítulo seguinte, Capanema
já se encontra no Rio de Janeiro, como ministro da Educação, e o que se
procura é mostrar como as questões de política educacional eram vistas
pelos diversos grupos e correntes ideológicas de então. Fica claro, neste
capítulo, que as esperanças postas na Educação naqueles anos eram enormes,
e que todos esperavam, cada qual à sua maneira, que o Ministério da Educação
desempenhasse um papel central na formação profissional, moral e política
da população brasileira, e na constituição do próprio Estado nacional.
Era natural, assim, que as atividades do ministério se desdobrassem em
dois grandes planos, que na realidade eram percebidos como profundamente
interligados: em um nível mais concreto, era necessário dar forma e conteúdo
a todo o sistema educativo, desde seu ápice, a universidade, até o ensino
industrial e agrícola para os trabalhadores urbanos e rurais, passando
por sua espinha dorsal, que era o ensino secundário. Em um nível mais
amplo, era necessário ir além das escolas e universidades. Era preciso
atuar diretamente sobre a cultura e a sociedade, criando as normas e instituições
que mobilizassem os jovens, definissem o papel e o lugar das mulheres
e trouxessem os imigrantes estrangeiros para o grande projeto de construção
nacional. Os capítulos subseqüentes tratam da ação ministerial nestes
dois níveis - o da mobilização e participação cívica - a ação cultural,
o projeto da juventude brasileira, o da regulamentação do papel da mulher
na família, o da nacionalização do ensino - e o das reformas educacionais.
Ao final, há um capitulo que caracteriza os momentos finais da presença
de Capanema no governo Vargas, e resume, pelo menos em seus pontos principais,
as conclusões de todo o trabalho.(4)
A presença do Ministério da Educação se dava ainda em um terceiro nível,
que não será tratado aqui, que é o da saúde. O arquivo de Capanema contém
extenso material sobre a ação do governo no combate às diversas doenças
tropicais, na construção de hospitais em todo o país, assim como sobre
sua participação em conferências e campanhas internacionais relacionadas
ao tema. E um material que merece estudo especializado, quando não seja
pelas inevitáveis marcas que aqueles anos deixaram para a futura organização
dos serviços médicos e sanitários do país. No entanto, os grandes dilemas
contemporâneos da área de saúde - medicina preventiva versus
curativa, previdência pública versus medicina privada, a questão dos custos,
a questão da saúde mental - não se colocavam naqueles anos com a mesma
intensidade que as questões educacionais e de formação ética e moral dos
cidadãos, e eram tratados de forma rotineira e não problematizada.
Finalmente, incluímos ao final deste volume uma seleção de quase cem
cartas recebidas ou enviadas por Capanema entre 1916 e 1945. Elas foram
escolhidas em função do significado histórico ou biográfico que possam
ter, e para melhor documentar as análises do estudo. A correspondência
de Mário de Andrade é a única que está apresentada na íntegra, pela sua
importância especial, que vai além dos temas tratados neste livro. Ao
todo, são dezenove cartas de Mário de Andrade, quinze trocadas com Alceu
Amoroso Lima, sete com Le Corbusier, quatro com Carlos Drummond de Andrade,
Francisco Campos, Cândido Portinari, padre Leonel Franca e Gilberto Freire,
e cartas isoladas com uma grande variedade de políticos, educadores e
intelectuais, incluindo George Dumas, Lúcio Costa, Francisco Negrão de
Lima, Ciro dos Anjos, Oliveira Viana, Augusto Frederico Schmidt, Menelick
de Carvalho, Emílio Moura, Rubem Braga e outros. Estão incluídas, também,
algumas poucas cartas que não de Capanema, mas constantes de seu arquivo
e relevantes para a temática deste volume. Exceto a carta de Francisco
Campos a Getúlio Vargas, de 1931, parte do arquivo de Getúlio Vargas,
todas as demais têm seus originais depositados no arquivo Gustavo Capanema.
O que ocorria na área da educação e da cultura naqueles anos fazia parte
de um processo muito mais amplo de transformação do país, que não obedecia
a um projeto predeterminado nem tinha uma ideologia uniforme, mas que
tem sido estudado, mais recentemente, como um processo de "modernização
conservadora."(5) É um processo que
permite a inclusão progressiva dc elementos dc racionalidade, modernidade
e eficiência em um contexto dc grande centralização do poder, e leva à
substituição de uma elite política mais tradicional por outra mais jovem,
de formação cultural e técnica mais atualizada. É natural que os membros
desta nova elite, que vêem seus espaços se alargarem, se identifiquem
com as virtudes do novo regime, mesmo que percebendo, e freqüentemente
criticando, muitas de suas limitações. Isto explica, sem dúvida, a visão
contraditória que muitas vezes temos dos tempos de Capanema - tempos da
arte moderna, da educação moral e cívica, da criação da Universidade do
Brasil, do fechamento da Universidade do Distrito Federal, do estímulo
ao ensino industrial, do predomínio da cultura clássica sobre a científica
nas escolas, da organização nacional da juventude, do apoio ao rádio e
ao teatro, da censura ideológica e do apoio e abertura de espaço para
os intelectuais. Tempos conturbados, tempo real.
É possível que o leitor menos familiarizado com os tempos de Capanema
se impressione com a proximidade dos personagens da época ao pensamento
conservador e autoritário, assim como aos regimes fortes que então pareciam
dominar progressivamente a Europa. É preciso terem conta, no entanto,
que a guerra ainda não havia mostrado todo o horror no qual o fascismo
europeu desembocaria, e que o sistema político liberal estava sob forte
assédio tanto da esquerda quanto da direita. Derrotado o fascismo e instaurada
a democracia, o liberalismo e as formas políticas não-autoritárias ganharam,
naturalmente, novos conversos, e houve um processo quase inconsciente
de amnésia coletiva que encobriu muito das idéias, projetos e ações que
eram publicamente propalados e defendidos anteriormente. Mas não só as
lideranças políticas do país não se alteraram substancialmente no após-guerra,
como muitas das instituições por elas criadas se manteriam inalteradas
pelos anos vindouros, dando ao Estado brasileiro uma série de características
que se contrapunham ao liberalismo revigorado e recém-implantado pela
Constituinte de 1946. Hoje já é possível olhar para o passado com mais
tranqüilidade, e desta forma entender melhor o Brasil que estava sendo
gestado naqueles anos, e do qual somos herdeiros.
Notas à introdução
1. Pedro Nava, comunicação pessoal
a Helena Bomeny, 21 de janeiro dc 1983.
2. Alberto Venâncio Filho, comunicação
pessoal aos autores, 18 de outubro de 1983.
3. Para uma biografia abrangente de
Gustavo Capanema, ver o respectivo verbete no Dicionário histórico-biográfico
brasileiro editado pelo Centro de Pesquisa e Documentação em História
Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1985.
4. Partes deste texto circularam em
versões preliminares sob diversas formas: Simon Schwartzman. "O intelectual
e o poder: a carreira política de Gustavo Capanema", apresentado
no seminário sobre a Revolução de 30 organizado pelo CPDOC em outubro
de 1980 e publicado em A Revolução de 30: seminário internacional
(Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1983), pp. 365-398; e
"A Igreja e o Estado Novo: o estatuto da família", Cadernos
de Pesquisa (São Paulo, Fundação Carlos Chagas) 37, maio de 1981,
pp. 71-77; Simon Schwartzman e Rosa Maria Barbosa de Araújo. A Universidade
padrão (trabalho apresentado à 4a. reunião anual da Associação Nacional
de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, outubro de 1982); Helena
Maria Bousquet Bomeny. Organização do juventude: a política de mobilização
da juventude no Estado Novo e Nacionalização do ensino; a gênese do intolerância
(documentos de trabalho do CPDOC, 1981/1982); Vanda Maria Ribeiro Costa,
Educação e política no Estado Novo: a reforma do ensino secundário de
1942 (documento dc trabalho do CPDOC, 1982).
5. Sobre as teorias de modernização
conservadora ver, entre outros, Elisa Maria Pereira Reis, The Agrarian
Roots of Authoritarian Modernization in Brazil, 1890-1930 (tese de
doutoramento, Massachusetts Institute of Technology, 1979, 315 pags.);
e "Elites agrarias, State Building e autoritarismo", Dados
- Revista de ciências sociais (Rio de Janeiro), 25(3), pp. 331-348;
Octávio Guilherme Velho, Capitalismo autoritário e campesinato, São Paulo,
Difel, 1976; e "Modos de desenvolvimento Capitalista, Campesinato
e Fronteira em Movimento", Dados - Revista de ciências sociais
Rio de Janeiro, 13, 1976; e Simon Schwartzman, Bases do autoritarismo
brasileiro. 2 edição. Rio de Janeiro, Campus, 1982.